Capítulo 14

Aquela postura de menina sofredora que enfrentou todas as adversidades do mundo me irrita. Ela se comporta como se fosse o fim do mundo estar longe do seu tão precioso trono e entregue aos perigos da floresta. Coitadinha. Duvido que sobreviveria cinco minutos nas minas. Duvido que manteria seu cabelinho arrumado e seu queixo empinado. Duvido que continuaria se achando a dona do mundo se passasse pelo que eu passei — e descobrisse, no fim, que não é dona nem do próprio corpo.

Vossa Majestade está montada no cavalo, remexendo no pingente do cordão em seu pescoço e encarando as Ruínas à frente. Todos nós estamos. Não demorou mais do que meia hora para chegarmos aqui depois de deixarmos o acampamento e eu não estou vendo castelo nenhum.

O príncipe bonitinho está parado ao lado dela — como sempre, como o bom cão de guarda que vem sendo — e diz alguma coisa que a faz revirar os olhos. Além de tudo é mal-agradecida; se eu tivesse um homem desses aos meus pés desse jeito jamais o trataria dessa forma. Mas essa é a verdade sobre a vida: aqueles que mais têm, não dão valor ao que os cerca. Quando se cresce pobre e explorada como eu fui, até o menor dos gestos tem um valor infinito. Mas não para a herdeira do Norte, não. Todo mundo lambeu o chão que ela pisou desde que nasceu, nunca aprendeu a dar valor a nada. Duvido que sequer tenha lavado um prato.

Príncipe Tobiah a ajuda a descer do cavalo, apoia suas mãos em volta da cintura ela. E ela o afasta. Não consigo evitar de bufar. Não sei se me irrita mais a arrogância dela ou o fato de isso fazer com que ele sorria.

— Há uma música antiga sobre uma mulher que morreu envenenada em sua própria inveja — Cathal diz, se aproximando silenciosamente, como os guardas das minas que sorrateiramente se aproximavam na esperança de flagrar algo que justificasse fazer de nossa vida uma tortura sem fim. Não que precisassem de algo para justificar qualquer coisa.

— Não é inveja. Só é difícil aceitar que a vida é tão injusta — reclamo — E por favor não comece a defender a princezinha, já basta o Príncipe vomitando palavras doces sobre aquele poço ambulante de arrogância o dia inteiro.

— Não tenho qualquer motivo para defender a honra da Rainha. Estou aqui para garantir sua segurança, nada mais — ele responde, encarando o horizonte coberto pelas Ruínas.

— Qual seu segredo, senhor? — pergunto. Príncipe Tobiah está aqui porque claramente quer entrar nas saias da Rainha. O filho do comandante não parece ter qualquer interesse do tipo, então por que arriscar a própria vida? Ele me olha profundamente nos olhos e inclina a cabeça levemente para a direita.

— Qual o seu? — pergunta, e não há nenhuma provocação ou sarcasmo em sua voz. É uma pergunta genuína. Quase sem perceber, esfrego meus antebraços cobertos pelas mangas compridas da minha camisa. Estou derretendo debaixo desse pano pesado — obviamente não tenho como arcar os o fino algodão que seria necessário para sobreviver a essa temperatura alta.

As cicatrizes que cobrem minha pele estão muito bem guardadas debaixo das minhas roupas, e assim vão ficar. O meu segredo é meu, e assim vai continuar sendo. Ter sido mandada para cá já é penitência o suficiente; não preciso desses nobres de nariz em pé me tratando como lixo. Que minha penitência sirva ao menos de férias daquilo que sofri por toda a vida. Há uma vantagem que posso tirar dessa história, e talvez não tenha sido um mal negócio vir até aqui.

Ninguém me perguntou se eu queria ser jogada nessa viagem, apenas assumiram que eu ficaria muito grata por ser arrancada das minas. "Você agora é uma mulher livre, pare de ser uma escravazinha mal-agradecida e mostre como está feliz pela oportunidade de sair deste buraco", disse o guarda que foi me buscar naquela tarde. É uma pena que essa tenha sido a última coisa que saiu da sua boca nojenta.

Olho para as Ruínas a minha frente e tudo que penso é em todas as preciosidades que estão escondidas ali, se as histórias forem verdadeiras. Pedras preciosas o suficiente para comprar a liberdade da minha família. Não imaginei que fosse chegar viva até aqui, mas cá estou. Então o guarda estava certo. É uma ótima oportunidade. O único problema é que as histórias também contavam sobre a loucura. Sobre aqueles que se arriscaram nas Terras Distantes ilegalmente, indo contra a proibição do Rei do Norte e encontrando a morte na sua jornada. Aqueles que não morreram foram consumidos pelo desespero e perderam a cabeça. Alguns conseguiram voltar ao Sul como homens maníacos que foram logo largados às margens para morrer, como párias que não sabiam o que diziam.

Pelo menos é o que as histórias contam. Eu não estava lá para ver. E no demais, estou aqui pela ordem dos próprios Deuses, não estou quebrando ordem de Rei do Norte nenhum, pelo contrário. A Rainha está exatamente aqui comigo, e vou ter certeza de pisar exatamente onde ela pisa para não correr o risco de enfiar meu pé em uma armadinha. Se bem que depois da cena do rio talvez não seja muito seguro a seguir tão de perto.

O filho do Comandante ainda está do meu lado, mas acho que ele desistiu de esperar minha resposta. Agora é ele que encara o casal. Os dois herdeiros conversam alguma coisa que não consigo ouvir daqui, a Rainha acena a cabeça concordando com o que quer que ele esteja dizendo. O Príncipe mexe no cordão que está no pescoço dela e encara o objeto com atenção. Cathal olha a cena. Há fogo em seus olhos.

— Tem razão, Laurunda — ele diz por fim — A vida é injusta.

Não entendo o que ele quer dizer e nem tenho tempo de perguntar, porque ele sai andando na direção do casal e se põe entre os dois, dirigindo a palavra à Rainha. Decido me juntar a eles.

— E não podemos desperdiçar a luz do dia — ouço-o dizer e parece ser o fim de uma explicação.

— Concordo — a Rainha responde — Obrigada por seus serviços, Cathal. A locomoção seria muito mais difícil sem alguém com o seu treinamento. Fico feliz que tenha sido você a se juntar a nós — ela solta uma risada — E pensar que eu quase pedi Adaliz para mandar o noivo de minha irmã. Que ideia tola, colocar o rapaz em risco por nada. Layla jamais me perdoaria — ela leva a mão ao peito de Cathal — Por favor não se ofenda.

Ele acena com a cabeça e... Espere, o que? A Rainha não sabe que o homem na sua frente é noivo de sua irmã? Tudo bem, não é exatamente o tipo de informação que seja espalhada aos quatro ventos, eu só fui saber disso há alguns dias quando ele acidentalmente deixou escapar a informação. Mas é a sua irmã. Ela deveria saber. E por que Cathal não disse nada?

Parece que a Arrogante Real é mais fácil de ser tapeada do que ela imagina. E não é sempre assim? Quando mais certeza se tem de si, mais fácil de ser derrubado. De qualquer forma, não é problema meu.

A única coisa que me interessa são as pedras escondidas atrás daqueles muros. Seguimos a pé guiando os cavalos em direção às Ruínas, amarrando os animais do lado de fora da estrutura. A Rainha entrou primeiro, com o Príncipe em seu encalço. Não presto muita atenção a nada em específico enquanto ando; procuro especificamente pelos pequenos objetos que guardam o meu futuro. Com a desculpa de que vou procurar por algo que possamos usar, me distancio do grupo e vasculho os cômodos vazios tentando não tropeçar nos tijolos caídos por todos os lugares. Parece que existe mesmo um motivo para se chamar Ruína.

As paredes mal de aguentam em pé e o teto não existe em várias partes da construção. Buracos e mais buracos por onde entram faixas de luz se espalham pelas paredes e eu me pergunto se esse lugar tem alguma coisa além de poeira. Me deparo com uma escada que não parece segura, tenho certeza que vai se partir aos pedados se eu tentar subir. Estico o pescoço e tento ver para onde vai, mas parece que termina no nada, para um andar que não existe mais. Enquanto tento decidir de me arrisco ou não, ouço um grito ecoando pelas paredes caídas. Corro na direção do grito.

Não consigo descobrir de onde ou de quem veio o grito, porque assim que os alcanço sinto meu braço ser puxado e sou arrastada. Aos tropeços, corro sendo arrastada por Cathal, até que trombo com ele em um baque duro quando o homem abruptamente para.

— Nessa direção! — o Príncipe grita e Cathal corre da direção da voz, e eu o sigo. Ouço um estrondo e um pedaço da parede desaba, seguido por mais e mais pedaços. O lugar está indo abaixo. Olho ao redor e vejo o lugar desmoronando, a fraca estrutura desabando ruidosamente e levantando uma nuvem densa de poeira cada vez que algo atinge o chão.

A poeira entra nos meus olhos e nariz, e eu tusso. Sinto meus olhos e garganta arderem e não consigo enxergar muito bem para onde estou indo. Um pedaço de tijolo cai sobre o meu braço e corta a minha pele no momento em que encontro a saída daquele castelo. O que sobrou do castelo que aquilo foi um dia. E que agora vem ao chão por completo, não sobrando nada além de poeira.

— Estão todos bem? — Cathal pergunta, tossindo. Levo a mão ao meu braço e sinto sangue no corte.

— Sim — minto, cobrindo o antebraço com a mão.

O que acabou de acontecer? Essa coisa tinha que resolver cair logo agora? Logo quase na minha cabeça? Espere. Não na minha cabeça. É o rio de novo. Alguma coisa nesse lugar está querendo a cabeça da Majestade. Droga, e tinha que ser logo quando eu estou junto?

— Kya? — ouço o Príncipe chamar — Kya?

Olhamos ao redor. A nuvem de poeira aos poucos se dissipa no ar e não vejo nenhum rastro da Rainha.

— KYA!!

Ela sumiu. Era realmente só o que faltava.

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