IX - Base Fora do Tom

28 de Agosto de 2022

Um pardal esperto roubava faíscas de bolo da mesa logo abaixo da janela da cozinha, desde quando aquilo estava lá eu não fazia a mínima ideia, dava pulinhos tentando escapar das garras da Catarina que não desistia de capturar o seu café da manhã, pobrezinho magro daquele jeito não serviria nem pra sujar as frestas do dente. Eu dormi sentado, o sofá de casa não era la essas coisas já estava na madeira não tinha nenhuma espuma que pudesse dar algum conforto para o nosso traseiro.

Evandro se encontrava na mesma situação que eu, mas este ainda parecia um motor de caminhão, estava de uma maneira tão desleixada e em uma posição que eu não imaginava que seria possível, estava sentado mas seu pé direito estava em cima do sofá e o outro normalmente no chão, sua cabeça estava tão inclinada para o lado esquerdo que tive a impressão de que ela fosse se descolar do pescoço. Acredito que pela sua magreza ele possuísse uma melhor mobilidade em seus membros, se ele investisse na carreira de bailarino se sairía muito bem.

Os primeiros raios de sol entravam preguiçosos pelas janelas, um deles se atreveu a clarear intensa a face de Evandro que como de forma instantânea acordou e esperou seu Windows reiniciar. Enquanto isso eu olhava atento, será que ele se lembraria daquele bigode roxo? Uma hora ele teria de ir ao banheiro e se ver no espelho, e mesmo que por falta de atenção uma hora ele teria de lembrar do ocorrido na noite passada, ambas as questões ele não teria como tirar aquilo.

Quando se deu por fim reiniciado, ele me olhou de maneira estranha e se levantou sem dizer um A. Foi então que vi ele se encaminhar rumo ao seu desespero novamente, tranquilamente me levantei e fui para a cozinha, no momento em que eu virava o leite no copo inclinado e observava-o escorrer pelas paredes de vidro, um grito, que mais parecia um fone furreca de camelô perdendo o som aos poucos, chegou ao meu ouvido como uma melodia, das piores.

"Pelas barbas do meu cachorro, o que é isso ?!"

Já de pé escorado na porta do banheiro eu observei o garoto que olhava horrorizado para o espelho, por um momento ele não disse nada. Uma vez enquanto eu andava pela escola  vi uma menina fazer exatamente essa careta com o olhar fixo para "o nada", eu caminhei devagar e passei em frente a ela mas nem sequer piscou os olhos. Uma de suas amigas parecia surpresa com a cena suas mãos passavam em frente a visão da garota que não dava nenhum sinal de vida, "Ela ta tendo uma crise existencial" disse a outra. Seja la o que fosse essa crise acredito que Evandro estava passando pela mesma coisa, diferentemente ele segurava uma bucha de banho.

"Você quase arrancou a pele ontem tentando tirar isso"

"E a escola?"

"Sei la"

"Eu não vou assim pra escola tribufu !"

"De que jeito vai tirar isso então espertalhão? Vai colar fio de cabelo aí pra fingir ser barba?"

Foi então que seus olhos se desviaram do espelho se encontrando com os meus que pareciam se conectar uns aos outros, por segundos ele me fitou esperando que eu respondesse alguma coisa. Mas não, eu não fazia a mínima ideia do que ele havia pensado mas sabia que um plano infalível do cebolinha viria por aí. Evandro quis saber se minha mãe já havia acordado, eram 10 da manhã e eu tinha plena certeza de que ela estava em seu ritual de exercícios complicados em cima de uma tapetinho que na verdade era um cobertor de cachorro.

Eram poucas as vezes que eu ousava entrar em seu quarto naquele momento, encostar um único dedo ali era pedir para que faíscas flutuassem pelo ar de um gato de energia prestes a entrar em curto. E por uma situação pior ainda era meu trauma toda vez que eu via aquele cobertor, aquele treco era tão liso que eu não sei como minha mãe conseguia se manter equilibrada em cima daquilo, não tivera o mesmo azar que eu até hoje minha bunda ainda parece sentir o impacto do chão gelado.

Evandro passou dos limites da boa noção, pisou naquele campo minado e entrou feito um furacão que levava tudo consigo em instantes. Me apavorei vendo aquela cena, cheguei a porta do quarto e vislumbrei minha mãe sentada e com um pé na cabeça, lentamente seus membros voltavam ao estado comum para sedentários como eu juntamente com os seus olhos que corriam para a direção de Evandro. Esperei o insulto lançado aos ares, mas nada, tranquilamente ela se pôs em pé e perguntou o que aquele sem noção queria, quando Greg passou dias na casa do Chris sendo tratado feito um rei, eu me senti no mesmo estado que ele se sentiu ao ver a mãe fazendo coisas que por ele, ela não fazia.

"A senhora pode me emprestar algumas maquiagens?"

"O que vocês vão aprontar? Saiba que custou o olho da cara essa base"

Eu não queria dizer nada a Evandro mas tenho uma vaga lembrança de algum momento ter visto a previsão no celular durante a madrugada quando minhas pálpebras pareciam carregar minis bigornas. Sei que isso não poderia condizer com a realidade, até porque as previsões mentem mais que todos do meu colégio em coletivo, apenas me calei enquanto estava escorado na porta do banheiro observando o garoto passar a maquiagem de uma maneira ágil que aparentava uma habilidade adquirida por grandes experts no assunto.

Apesar de que ele tivesse uma irmã e uma mãe, não consigo imaginar ele observando elas se maquiando, afinal, seu passatempo maior era jogar Minecraft. Mesmo que houvesse passados anos que a gente não se via mais, no fundo eu sabia que aquele garoto esquisitão do cabelo bagunçado continuava o mesmo de antes, a não ser pelas pernas e braços que esticaram feito um macarrão de varinha nesse tempo.

"E aí o que achou?"

Minha mãe tinha o tom de pele um pouco mais escuro que a do Evandro, a dele parecia mais uma parede branca de casa velha que chega a ser um pouco amarelinha pela sujeira e poeira do tempo. Ou seja, óbvio que ficaria um tanto aparente e durante a passada de base vendo que isso aconteceria ele optou por passar no rosto inteiro. Sabe quando você é criança e arranca a cabeça de um boneco e coloca no outro? Dessa vez eu não precisei fingir que estava bom ou ao menos critica-lo por algo que ele sabia.

"Melhor do que aquele bigodão roxo"

Fez um gesto de elevar os ombros e voltou ao quarto da minha mãe. Eram quase onze horas e o cheirinho de alho e cebola fritos começava a aparecer, estudavamos no período da tarde e é claro que eu almoçava antes de ir. Antes de me mudar de volta para cá eu era do período da manhã e essa passagem de horário me deixou lelé da cuca, no primeiro dia de aula eu acordei como de costume as cinco da manhã ignorei o almoço e fui para o colégio com o estômago forrado só com uma bolacha seca que deveria ser de antes das férias. Como era de se esperar ao meio dia eu comecei a cogitar a possibilidade de que aquilo que eu tomei em uma garrafa transparente poderia ser um produto de limpeza e não um suco de uma fruta desconhecida, meu estômago parecia se contorcer a medida que eu me mexia milimetricamente. Era como se eu imaginasse um vulcão de ácido me consumindo por dentro, a azia era tanta que eu passei duas aulas no banheiro do colégio dando adeus mentalmente a todos que eu gostava.

Adeus mãe, adeus pai, adeus meu pequeno furacão, adeus Catarina,..., adeus Marieta.

Não vale a pena voltar ao passado não tão distante e tentar se lembrar quem é essa tal Marieta que eu ainda gostava, guardo essa praga na mente só pelas coisas ruins que ela trouxe consigo se eu pudesse conseguir uma poção mágica do sumiço, sem pensar duas vezes eu jogaria tudo nela e se duvidasse até o frasco iria junto, para ela nunca mais voltar nem na sua reencarnação.

Eu lutava contra o meu eu próprio que habitava dentro da minha mente, que relutantemente insistia para que eu não me vestisse com uma calça moletom preta juntamente com uma blusa verde abacate. Eu me sentia bem com aquela blusa, mas aquele pensamento de o que os outros pensariam me atinge em cheio, isso só acontecia justamente enquanto eu escolhia uma roupa para ir a escola, talvez fosse pelo fato de que basta eu dar um passo dentro daquele ambiente para eu me sentir um espantalho. Eu realmente não sei o que existe la, mas aquela energia ruim é de arrepiar os cabelos e de deixar a autoestima embaixo do tapete.

Tomei banho, vesti a blusa verde abacate contrariando o que minha mente mandava. Desci goela abaixo uma batata que ainda quente grudou no céu da boca, quando tentei desgruda-la com a língua parecia que a pele havia se descolado junto. Evandro vestiu minhas roupas, e sendo sincero elas caíram melhor para ele do que para mim, de certa maneira só o fato dele possuir olhos verdes feito esmeraldas já não precisava de mais nada, não como eu que não tinha nada característico e facilmente entraria para a lista de feinho arrumado.

Era hoje que veríamos Charles de novo, aquele pimenta nos perseguiria da mesma maneira que nos perseguiu no Sexshop como se fossemos galinhas que fugiram do galinheiro. Minhas paranóias gritavam, e se ele mencionasse meu nome bem alto e mostrasse a foto para todos? Talvez eu pudesse desmentir e dizer que era outro Procópio, sim eu poderia fazer isso se minha avó não houvesse feito aquela desmiolada promessa. Custava ao menos terem colocado um nome composto para que eu recorresse ao segundo? Mas não, falou em Procópio em qualquer lugar e sala da escola e todo mundo se lembra imediatamente de mim, sequer conheci alguém com esse nome nem criança nem idoso.

Descemos as escadas da minha casa e paramos bem no local em que Evandro depositou sua gosma verde três dias atrás, silenciosamente esperamos a chegada do ônibus enquanto embaixo do sol quente sentíamos a nossa pele queimar feito uma puruca, nessas horas fazia falta o guarda-sol enorme amarelo que com o vendaval foi parar no telhado de Dona Carmosina, aliás, ele ainda não havia sido retirado de lá e se um temporal com vento passasse por aqui de novo e levasse-o, ao invés de um telhado aquele guarda-sol acertaria a cabeça de alguém que andasse por ali no momento.

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