Capítulo 1 - Um trago de felicidade, um cálice de veneno

        Sabe a falta de ar que precede o beijo de um amante? Quando se está de boca entreaberta esperando que o mundo se desfaça aos seus pés?

        Sentia isso; estando a um passo do poder.

        Também pudera, cresci na Terra-do-Já-Foi, o fim-do-meio-do-mundo; ou Torren, se você vem de fora. A cidade pequena, uma vila quase inescapável, onde o tempo dava voltas e o progresso fazia curva — por ali, nunca passava — Havia algo de podre na minha cidadezinha: assassinatos... brincadeira. Torren encheu seus cemitérios há um tempo — valas comuns a bem da verdade —, mas nada tinha haver com mãos humanas. Tecnicamente, o culpado nem tinha mãos.

       Ainda assim, vila charmosa de se crescer. Onde uma criança podia olhar o sol sendo tragado pelo mar, e esquecer o deserto atrás de si. Onde as brigas são de família e as festas envolvem toda a comunidade. Uma cidade de gente pobre cercada de principados ricos. Um curral de trabalhadores dedicados onde o dia começa cedo e você provavelmente vai se casar com um primo. Você. Essa vida prosaica não é minha.

       Sorvi o conteúdo da taça em um único gole. O vinho de tâmaras é demasiado doce.

        Tinha as mãos frias e o olhar afiado de uma predadora. Reis, príncipes e magisteres circulavam no salão oval da Torre Labirinto, nem de longe tão bonitos quanto o dinheiro e as histórias faziam parecer. Mas nunca acreditei nas histórias, sabe. A vida guarda mais demônios que salvadores; e tudo bem, em algum momento, se aprende a conviver com eles.

        Esqueça, não vou falar sobre os meus. Seria falar de mim. E ninguém aqui estava interessado na mulher alta e magrela, ou em como a mocinha de pele cinzenta e olhos grandes do outro lado do salão ganhou aquelas olheiras; ou quantas vezes o rapaz bonito conversando com a princesa socou as paredes até os nós do punho sangrar, porque havia fracassado... Rapaz bonito?

        Meu aceno alertou o servo.

— Achei que a nova dignitária versada não tinha tempo para um servo mundano — provocou Nephir. O homem não tinha nada de comum em si. Pelo menos não para aquelas terras. O peculiar cabelo como fogo ficava esparso em sua cabeça, alto e forte, tinha a constituição de um guerreiro que dizia um dia ter sido. Indiquei o casal. — Também prefiro Nymor, ele é mais bonito do que um humano tem direito de ser. Mas por que escolher quando se pode ter os dois.

— Sou versada em herbalismo e artes ocultas, a princesa de Linden vai preferir alguém do comércio — afirmei. Aquele pensamento mordiscava, torcendo-se em minha mente.

        Meu vestido verde era apertado, agora meu estômago estava roncando e o ar mal passava do peito. Mas tinha um segundo tipo de fome. Fome de viver, acho... e algo mais.

        O servo ruivo riu. A tatuagem se mostrando tímida em seu pescoço, marca de sua servidão, talvez a única coisa comum nestas terras Mas eram os olhos azuis dele que não tinham par na ilha dos Labirintos de Pedra, do anil encontrado nos oceanos e em nenhum outro lugar. Porém, uma taça de vinho passando era mais profunda e poética no momento.

— Foca aqui! A princesa Lear de Linden acha Vanir muito velho e passivo. Solicitou a Neveah um novo Versado mor. Se desmaiar agora perde a cerimônia — censurou ele, me roubando o cálice de bronze. — A princesa de Linden não está interessada nas suas especialidades.

         A expressão de asco em meu rosto dizia o bastante, pois Nephir devolveu a taça. Mas ele tinha razão, ela não estava preocupada que estudei enquanto outros dormiam, ou que lia 74 livros em um ano para ter a aprovação num único teste dos mestres. Ela não perguntaria quantos dos colegas do primeiro ano ainda estavam ali — doze, dos cento e sete. —; não ligaria nem mesmo quantos estavam vivos.

        Não, ninguém está interessado nessas histórias.

        Apenas no lema da Ordem Versada: nosso propósito é servir.

        Deviam perguntar a quem.

        Nephir estava certo; por isso o estapiei em pensamento.

— Quando chegar em Linden — falei junto a ele. — Vou abrir rotas de comerciais com os reinos do Norte... E uma Versada mor pode selecionar seus servos. — Meu sorriso travesso bridou o rosto dele com choque. — Linden tem dragões, um lugar perigoso, até para um guerreiro renomado de terras distantes.

       A cor desapareceu da pele comumente rosada de Nephir.

— Achei que só os mestres pudessem desfazer as marcas.

      O belisque antes de completar:

— Não vão procurar por quem não sabem que existe. Daqui a um ano, posso dizer que caiu do camelo... E seria livre.

      Em Torren, esse era meu pedido ao travesseiro. Olhava o mar e me perguntava até onde iria, se tivesse coragem de entrar. Mas aí, via, escondida, minha separar a comida e o dinheiro, coçando a cabeça com a pergunta escrita em seu franzir, "como vai dar?". Era quando percebia que não iria longe, não por falta de coragem; é que meu barco não permitiria. Achava que jamais deixaria a cidade sem ela. Isso foi antes que descobrisse que a liberdade era uma mentira. Antes da Torre Labirinto.

       Nephir olhou em volta como se tivesse falado em traição e sacrilégio. Como de costume, o ignorei. Meu olhar seguiu direto para o jovem de gibão cinzento entretendo a princesa, o sorriso desta resplandecendo mais que as jóias douradas no vestido branco. Dei por mim infeliz.

— Uma dança — falei. Não era uma pergunta e a resposta dele veio num balbuciar de negativas.

       Avançamos para o centro do salão tendo noção de cada passo e olhar que recaia sobre mim, o vestido escuro consumindo a luz dourada e refratada por cristais. O coração ameaçando vacilar naquele pulsar incontido. Duplas giraram em torno uma das outras, moças como eu, em vestidos de seda prata se dirigindo pelas laterais até a arcada do Sol. Cores gris me davam um aspecto fantasmagórico ao qual não tinha a intenção de assumir.

— Licença — falei com um sorriso aberto ao nos colocar por "acidente" diante de Nymor e a princesa, a "reconhecendo" pela primeira vez na noite. — Alteza, está radiante. Onde está o pequeno príncipe?

        Falsa..., me acusei em pensamento. A mulher fez os cumprimentos formais e me chamou a um abraço. Contei mentalmente os segundos do longo gesto.

        Não foi falsidade. Mas sabia que quatro segundos era o necessário para parecer um gesto sincero e afetuoso. O rosto dourado de Nymor perdeu a cor. Ele respirava pelo nariz avaliando meu estado como se respirasse pedra em vez de ar. Mas sempre mantendo o decoro. A princesa Lear manteve uma conversa animada sobre meu vestido e meu colega minguava ao lado.

        Cruzando o meio do salão, um homem corpulento nos interrompeu. A mão grossa, fechada em torno de uma taça de cristal. Após uma tratativa animada, ele depositou a taça nas mãos do servo como se Nephir fosse uma estátua e me convidou a uma dança. Não podia recusar.

— Nunca escuta o que digo. As outras acólitas estão de cinza. Está ridícula. – O tio não era um homem de meias palavras. Mas "meios" lhe definiam todo o resto. De estatura mediana, sua toga esquadrinhada de verde e prata, com um turbante para lhe ocultar a calvície que avançava pelo meio de sua cabeça, era um homem de olhar penetrante que podia ir do amável ao carrasco num piscar.

— Está lindo, Vossa Magnificência. — Eu sabia induzir o efeito contrário. — Foi com maestria que conduziu o acordo com Linden. Merece o cargo de Lorde Versado. Ninguém teria trazido Qilian de volta aos braços da Ordem sem derramar sangue, se não o senhor.

— Aço jovem sempre carece de tempero. — O homem a guiou para o canto. — Como você é ingênua. Não foi sem sangue que o novo príncipe de Qilian instaurou a paz.

        Ele balançava a cabeça com desgosto, falando como se eu tivesse trocado açúcar por sal no café.

— Treze dias para massacrar o exército inimigo, mas dois anos para conseguir a legitimação com os vizinhos e conquistar a paz. O senhor conseguiu isso com um título e casamentos. Agora é só torcer que o "príncipe" se contente com a princesa de Anenbek e suas vinte e quatro concubinas — ponderei em tom azedo. O Bom Açougueiro, como era chamado pelo populacho nos principados do Oeste, ignorava a esposa, renegada ao canto do salmão de mármore. Fiz careta, mas um sorriso brotou ao me virar para o tio e o mais novo, ainda que estivesse na casa dos cinquenta, Lorde Versado da Política e Estado. — Essas cores combinam com o nosso tom de pele. Aliás, Neveah me escolheu como oradora – comentei. Tomando os braços do homem e improvisei para uma dança. Nenhum dos dois era bom nisso. — Hoje é meu dia. Graças ao senhor, meu tiozinho! — Um sorriso infante e aquelas palavras eram tudo o que ele queria, eu sabia. — Quando o sol raiar serei uma Versada mais bonita que o senhor jamais foi.

       O lorde versado deteve seus passos.

— Onde está o discurso? — Não tive resposta além de um papelote tirado da manga. Ele o tomou apertando a mandíbula ao ler. — Raso, fraco, como você. Sua arrogância me comove, porque não me pediu ajuda? — Revirei os olhos de amêndoa. — Podia ter tido a elegância de se vestir como as outras acólitas.

        Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito do vestido esmeralda, então só pode sorrir ao passar pelos outros. Verde e prata eram as cores no brasão da Ordem Versada, mas se não me caia bem, Vissenia Kehlar não iria envergar.

         O homem foi obrigado a ceder um suspiro com os grossos lábios. Um vinco corria sua testa cor de café.

— Vissenia — falou o tio. Ele torceu os lábios, hesitando. — Cumpriu sua parte no acordo.

        As palavras certas eram: Estou orgulhoso por ter feito o que eu queria.

       Sorri.

       Não lembro de ter concordado, tampouco de ter outra escolha. O que ganho com isso?

— A princesa Lear estava perguntando por você — segredou ele com um suposto desinteresse. A satisfação ficando oculta. — Ela não esqueceu dos seus truques de festa.

       Passei anos estudando artes ocultas e você chama de truque. Vergonha da profissão. A parte engraçada era que Anir Kehlar acreditava nos mistérios elevados, só não tinha fé que eu era capaz de praticá-los. Lembrei, estou ganhando o governo de Linden.

       A princesa de Linden era uma mulher baixinha de ossos largos, já passando da casa dos quarenta. Lear fora coroada há menos de uma década pela Assembleia dos Eleitos e devia ser a única governante ao longo do rio Eleagno escolhida não por sangue e mantida não com exércitos, mas pelo próprio povo.

        Eu queria fazer parte daquilo.

         E só havia três maneiras de atrair a atenção de pessoas importantes: sendo alguém importante; conhecendo alguém assim ou tendo algo que ela queira; E não nutria por si uma opinião tão elevada para considerar a primeira ou a última. 

§

       Os primeiros raios cortaram o véu negro, incendiando as nuvens.

       Tocados pelo amanhecer escarlate, o grupo se posicionou no jardim suspenso sobre o arranjo marcado na areia, as damas à esquerda e os rapazes à direita. Estendemos os pulsos em direção ao sol e areia para proferir nossos votos. Em nome da Mãe Sol, do Dragão Rio, em nossos próprios nomes. Sangue das águas em nome daquilo não podia ser tomado. Éramos reconhecidos então, como: Versados; detentores de conhecimento e mestres dos saberes.

       Mordi a bochecha para conter a careta diante do ardor da marca que imprimiam na pele. Desviei o olhar dos pulsos. Nymor Uther me encarava de um jeito estranho enquanto ele próprio tinha as tatuagens carimbadas na pele amêndoa. Uma satisfação que não era toda pela honra da cerimônia, como se tivesse uma piada secreta.

       Não gostei disso.

        Após os votos proferidos e os jovens devidamente elevados a Ordem, Neveah anunciou os designados.

— Judeah de Anenbek, auxiliar do Versado Alastor. Meriah Tessar, dignitária em Anenbek. Nestor Avarlov, dignitário em Uller. Galatheah de Vineah, auxiliar da Versada Neveah na Torre Labirinto. — Galatheah me lançou um sorriso tímido, com os grandes olhos cinzas lacrimejando ao seguir para o estrado de sua mestra.

       Versados eram homens e mulheres que nomeavam a si mesmos como cultos e eruditos. Diferente dos demais jovens que ostentavam com orgulho os fios brancos conquistados no emprego de muito vinho púrpura, Galatheah mantinha os vigorosos fios castanhos da terna idade. Eu devia ser mais nova que ela, mas era bem formada de corpo e mais traiçoeira de mente, tive certeza disso quando convenci Neveah a tomar a garota como sua auxiliar ainda que ela nunca tivesse entornado o vinho. Do contrário, Theah teria ido para casa, o que, segundo a própria, mais gentil seria o encontro com uma espada.

       Uma meia lua de dentes estampava meu rosto. Havia conseguido, afinal.

       Quando um neófito se julgava pronto, subia pelas intrincadas passagens na Torre Labirinto até um Lorde Versado, se completasse seus testes e aprouvesse os mestres, o aspirante beberia o vinho e, segundo eles, se elevaria de mente e alma. Galatheah havia tentado oito vezes com oito lordes diferentes, mas nunca conseguiu a aprovação dos mestres; enquanto Nymor Uther ostentava todos os cabelos brancos contra sua pele de ébano após dezenove elevações. Ele se empertigou em sua posição.

— Nymor Uther, versado mor em Linden. — Pisquei. — Vissenia Kehlar, versada mor em Qilian.

       As palavras de Neveah me roubaram o ar, mas não como um beijo. Era um soco safado no estômago, forte o bastante para me fazer bobear ao subir no estrado para fazer o discurso. Tirei um papelote enrolado da lapela verde, as mãos tremendo como graminha em tempestade.

— O futuro — iniciei. — Um rio tortuoso, cujas curvas guardam o inesperado.

       Meus olhos embaçaram e ler se tornou impossível. Vi o tio, e os olhos dos outros versados denunciando minha posição ali. "Prodígio", pareciam dizer com sarcasmo.

— Se puder escolher, torça para que seja um caminho tortuoso. Águas plácidas não fazem bons marinheiros. — Engoli as tripas que ameaçavam sair pela garganta.

        Não... Não!

         No oco do tempo, Nymor me tirou o papel dos dedos sem resistência. Minha mente não estava lá para tomar parte do discurso que escrevi.

— São as marcas do navio que contam sua história — disse o jovem versado ao fim. Só percebi que ele havia encerrado quando Nymor exibiu a própria marca em seus pulsos. O símbolo da Ordem Versada.

       Fiz um mesmo, num gesto vago que me queimava por inteira.

       Não devia estar ali. Eu... falhei.

        De novo.

        Não era o bastante... Eu estou bem. Estou bem, cacete.

        Faltava o ar. Na maré de cumprimentos, minha condição era amarga, esquecida na penumbra do jardim.

          Tentei sair como a sombra que era, mas o tio guiou o Bom Açougueiro até mim.

— Sua Graça — disse, com uma reverência profunda. — Qilian se ergue sobre um governante tão grande.

        De fato, o era. De rosto fino o homem tinha vulpinos olhos de ônix, o cabelo comprido estava preso com um adorno que trazia as mesmas flores que adornavam seu manto verde claro, por baixo dele, as vestes pretas mostravam a silhueta de um guerreiro na casa dos trinta.

— Minha galé parte no crepúsculo. Será um prazer ter uma companhia tão... adequada.

— Há previsão de tempestade. Creio que não é...

— Não careço de sacerdotes, minha jovem. Sua função não é crer, mas obedecer. — O fato dele ainda manter aquele meio sorriso, me fez encolher enquanto ele se afastava.

        O Lorde Versado em Política, mordeu palavras não ditas antes de segurar meu pulso, minha tatuagem.

— Achei que depois de hoje finalmente havia aprendido a calar – censurou o tio, indo apressado para junto da sombra do meu novo senhor.

          Afastei esse pensamento.

         Não!      

        Mas não mesmo!

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