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Enfiei a chave na porta e destranquei. Olhei ao meu redor e tudo parecia estar em perfeita ordem. Mas então eu vi o vaso de flores no chão, um pedaço da cerâmica vermelha do pote faltando. Mesmo tendo a certeza que não teria mais ninguém ali comigo, procuro alguma coisa que posso usar como arma.

Acabo escolhendo o pedaço do jarro que se quebrou. Ele tinha uma ponta longa e afiada, pronta para ser usada. Apertei forte o pedaço vermelho entre meus dedos, não me importando muito com a dor que isso que proporcionou.

– Vanessa! – grito pela minha irmã, rezando para escutar alguma resposta.

Mas só o que tenho em resposta é o silêncio.

Um clarão acende os céus. Me assusto com um trovão que ecoa em algum lugar não muito longe dali. A claridade me fez ser capaz de encontrar uma pequena poça de sangue. Sangue. Meu Deus.

A porta que dava acesso a sala estava aberta e escancarada. Corri para dentro. Minha sala estava uma confusão. A mesa de centro estava no chão, despedaçada. As cadeiras fora do lugar e pude ver uma delas com as pernas quebradas.

Acendo a luz e vejo logo na parede que dá acesso ao corredor da cozinha, uma mancha de sangue marcava a tinta cinza claro. Parece que alguém foi jogado por ali. Não consigo mais manter a calma. Corro na direção que o sangue me leva, os rastros vão virando mais violentos, mais mortais. Logo estou no quintal da casa.

Outro raio ilumina os céus e a cena que eu não queria ver. O trovão vem para fazer o meu corpo perder a força e servir como uma confirmação.

Vanessa estava deitada no chão, numa posição que parecia ser bem desconfortável. Suas pernas estavam num ângulo estranho. O vestido favorito dela estava manchado e rasgado. Era uma mistura de terra, sangue e umidade. Meus pés começam a se mover sozinhos, fazendo com que eu me aproxime dela.

Tropeço em algo. Ao olhar para o chão, vejo que era o salto dela. Corro os poucos passos que nos separam. Os olhos dela estavam fechados e podia ver uma mancha escura em seu pescoço. Mais um raio desce dos céus me mostrando Vanessa numa cor branca que não era natural.

E então o trovão.

Meu corpo cai ao seu lado.

Minhas mãos tremem violentamente e foi quando a realidade cai em cima de mim. Seus olhos estavam fechados e o sangue que cobria o seu corpo deixava sua pele branca ainda mais pálida. Sua mão vermelha.

Aquilo não estava acontecendo. Tinha que ser um pesadelo. Um pesadelo horrível e sem graça. Me belisquei com toda força que tinha. Sentia a dor queimando dentro de mim, e aquilo ia me consumir. Me belisquei, me mordi, arranhei meu braço com as unhas para ter certeza... Vamos lá pesadelo, já pode acabar.

Pisquei os olhos repetidas vezes pensando que talvez assim eu despertasse. Mas meus olhos permaneciam naquele lugar e o mundo virou de cabeça pra baixo, eu tenho certeza.

Abraço seu corpo e rezei com toda a fé que tinha em meu coração para que Vanessa abrisse os olhos. Seguro sua cabeça e é tudo demais para mim. Uma gosta grossa caiu em seu rosto. Eu chorava e molhava seu rosto com o meu sofrimento. Ela não demonstrou nenhum sinal que acordaria.

Seu corpo começava a esfriar e eu senti meu coração querer sair da minha boca e se despedaçar na minha frente. Acho que ele nunca bateu tão forte, tão rápido, tão descompassado, tão desolado. E então ele parou. Senti como se ele quisesse parar e esperar o da minha irmã voltar a bater.

A noite estava fria. Sentia a morte rondando aquele lugar, mas não poderia deixar minha irmã aqui. Isso não era certo. Porque ela? Só para me atingir?

Nós avisamos

A letra daquele bilhete me trouxe um sentimento que nunca tinha experimentado. Acho que se me esfolassem viva doeria menos.

Era como se tudo estivesse sendo puxado para fora de mim com um anzol. Rasgava por dentro e não sentia nada mais do que dor. Eu precisava da minha irmã aqui. Uma gota fria bate em minhas costas e antes que eu pudesse fazer alguma coisa, começa a cair uma chuva muito forte. Em poucos segundos eu já estou completamente encharcada.

A chuva começa a limpar o sangue de seu rosto. E se eu olhasse bem rápido, poderia jurar que ela só estava adormecida. Mas aquele vergão vermelho, rodeado por roxo em seu pescoço não me deixava pensar que ela ainda tinha vida. Não tinha como ignorar aquilo.

Seguro seu rosto com as duas mãos e dou um beijo em sua bochecha. Sua pele estava fria, o que fez meu corpo entrar em colapso. Começo a negar com a cabeça, e minhas lágrimas se misturam com as gotas de chuva que descem livremente de cima.

Um relâmpago corta o céu e nesse momento eu só queria que ele me acertasse em cheio, só para que eu parasse de me sentir assim. A abraço como posso, para me aproveitar de qualquer resquício de vida que ainda tivesse ali. Sua cabeça estava na altura do meu ombro, de modo que sentia seus lábios frios e moles em meu braço.

Não sei quanto tempo eu permaneço ali.

A chuva estava quase parando, só sentia alguns pingos me molharem casualmente, mas não era nada demais. Se a chuva se tornasse ácida não doeria menos. O vento voltou frio como nunca e eu tremia cada vez mais. Só não sei se era por causa da chuva e vento ou se era pelo fato do meu coração estar em frangalhos.

Meu corpo tremia violentamente contra a minha vontade e estava agarrada ao corpo dela como se fosse tudo o que me restasse nesse mundo.

Fiz o que ela iria gostar. Comecei a cantar. Cantava sua música favorita e a embalava em meus braços. Minha garganta ardia do esforço que eu fazia para conseguir cantar. As lágrimas presas dentro de mim rolavam ainda em meus olhos, e pela minha boca saiam os seus versos favoritos.

https://youtu.be/B1XFCYNLMfk

Afastei a minha cabeça quando a música acabou. Esperando que por algum passe de mágica ela abrisse os olhos e dissesse o quanto gostava daquela música. Mas não aconteceu. Seus olhos ainda estavam fechados e não iriam se abrir.

O vento frio passou por mim e me provocou um arrepio sinistro.

Então eu mergulhei na dor. Permiti que ela me lavasse e se fosse misericordiosa, me levasse com ela. Não tinha mais lágrimas, não tinha mais nada dentro de mim. Uma sensação de vazio, Vanessa estava levando um pedaço de mim.

Perdi a noção de espaço de lugar, de tempo. Me envolvi com aquela dor e não sabia ao certo o que faria com ela. Era difícil respirar. Me senti como uma estranha em meu corpo.

– Vivian! – uma voz forte grita por mim. – Vivian, por favor me responde...

Nicolau.

Ele procurava por mim. Algo em mim freou. Eu queria vê-lo, queria que ele estivesse perto de mim. Mas as palavras me pareciam sem sentido. Não conseguia nem gritar que eu estava ali. As palavras só saiam de mim numa melodia fraca, triste e melancólica.

Continuei cantando para a minha irmã. Ali sentada naquela grama fria e molhada, cantando uma música triste foi que Nicolau me achou.

Ele estava perto de mim e só percebi isso porque o seu cheiro era bem distinto, mesmo em meio a tanta dor, chuva e grama. Seus sapatos faziam um barulho único na grama molhada e ele parou a não sei quantos passos de mim. Não tive coragem de abrir os olhos. Quis gritar para ele sumir dali, para que não visse a Vanessa desse modo, para que ele não me visse daquele jeito. Queria gritar para que ele ficasse.

Não consegui parar de cantar mesmo quando a canção terminou. Foi então que eu abri meus olhos e vi que aquele par de joias de ouro me olhavam com alguma coisa que não consegui identificar.

Ele foi se aproximando de mim como se aproxima de um animal ferido. Seus olhos não deixaram os meus nem por um milésimo de segundo. E ao me fitar de perto vi que seus olhos dourados tinham reflexos prateados. Será a luz da lua?

Não, ele estava chorando.

Ele compartilhava a minha dor. Eu não sei ao certo o que eu ou ele queria quando o vi se aproximar. Não estava racional nesse momento. Ele abaixa na grama e fica ao meu lado. Não me toca e nem faz nenhum som. Ele apenas olha para nós duas e como se não suportasse ver aquilo, desvia o olhar, fechando seus olhos.

Se eu tinha qualquer dúvida de que Nicolau estivesse chorando, ela foi embora quando ele virou de lado pude ver sua bochecha brilhando. Ele realmente compartilhava a minha dor mesmo que fosse um pouco, eu queria que ele ficasse com a minha, era demais para mim. Como poderia mandá-lo se afastar?

Quis pedir para que ele parasse de chorar. Mas como conseguiria pedir para ele ser forte se eu não consigo?

A temperatura da minha irmã está baixando sem parar. Abaixa tanto que é difícil demais para eu ficar ali a segurando em meus braços. Coloco sua cabeça do melhor jeito que consigo em meu colo e fico olhando suas feições mais uma vez.

Seu cabelo da mesma cor que o meu, estava lindo e brilhava com tons de azul por todo ele. Seu rosto infantil e bonito estava sereno. Ela sempre foi tão bonita... Seu corpo pequeno e frágil recusava a reagir com os meus toques. Não tinha mais nenhum sinal do seu filho, do meu sobrinho. Não teria mais nada dela para matar a minha saudade.

Tirei uma mecha de seu cabelo que estava colada em sua testa e a coloquei com o maior carinho detrás de sua orelha. Alisei sua pele fria e encostei os meus lábios em sua testa. Vanessa...

Não consigo fazer isso. Não posso dizer adeus. E o que eu vou dizer pros meus pais?

Ah meu Deus, meu pais! E tinha quebrado a promessa que tinha feito à eles. Eu não protegi a minha irmã, o que eu fiz? Eu fiz isso com ela. Se eu tivesse ficado ao seu lado, se eu tivesse vindo buscá-la, nada disso teria acontecido... É tudo minha culpa.

Minha culpa.

Minha culpa.

Minha culpa.

– Não é sua culpa – Nicolau fala, me assustando, nem sabia que estava falando isso em voz alta. Tinha me esquecido que ele estava ali.

Olho para ele e em seus olhos vejo o espelho da minha dor. Vi o meu reflexo ali e era exatamente como eu me sentia. Assustada, olhos vermelhos de desespero, vazia por dentro.

– Ajuda a Vanessa Nicolau... – digo sem saber o que fazer agora.

– Vou ajudar. Vocês duas – a voz dele foi firme.

Sinto sua mão em meu ombro. Sinto a diferença das temperaturas das duas pessoas em minhas mãos e aquilo me fere. Ele passa a sua mão pelas costas da Vanessa e com muita calma a retira do meu colo. Quero agradecê-lo por aquilo, mas não tenho forças. Ele a coloca deitada perto de mim.

Sinto um pano cobrir os meus ombros, mas nem assim consegui espantar o frio que toma conta da minha alma. Procuro pela grama úmida a mão da Vanessa, e quando encontro, enlaço os nossos dedos. As juntas dela já começavam a endurecer e foi difícil manter a calma. Não consegui ficar segurando a mão dela.

Fico de pé e nem preciso dizer nada. Nicolau me abriga nos braços dele e me deixa ficar ali derramando minha alma. Ele me abraça com força e me sinto ensopar a camisa dele. Não demora muito para que eu escute as sirenes policiais.

Não consegui falar nada com ninguém. As palavras estavam presas na minha garganta e não conseguia acreditar nos últimos momentos da minha vida. Estava tudo tão bem, eu poderia me acostumar com aquilo. Mas a vida não deixaria.

Tudo o que eu queria naquele momento era uma força. Qualquer força. Só queria um jeito de sair daquele lugar. Só queria um jeito de não sentir aquilo. Mas nada me tiraria dessa dor agora.

Eu não seria a madrinha de casamento dela. Eu não seria a tia mais feliz desse mundo. Quem agora iria escolher os meus vestidos? Quem iria me acordar com o melhor cheiro de café do mundo? Quem ia empacotar o resto das coisas dela no quarto?

Eu poderia ter feito tanta coisa. Eu poderia ter dito que também a amava na última mensagem que ela me mandou, pelo menos assim ela saberia. Eu poderia ter vindo buscá-la em casa. Eu poderia ter feito tanta coisa.

Mas se tem uma coisa que a minha mãe sempre diz, é que todas as nossas ações possuem consequências. Só queria que a minha não tivesse sido tão brutal. Eu tinha que me conformar.

Nada traria de volta a minha irmã.


Tá, talvez alguns de vocês queiram retirar o meu courinho com violência agora. Sim, eu sei bem que foi um capítulo bem mais dark que o usual. Desculpem por isso. Mas isso tinha que acontecer 💔

Não teve muito jeito. A Vanessa teve que se despedir da história. Meu coração está em frangalhos nesse momento. Preciso de uns dias pra me recompor. Sério... Esse capítulo me drenou muito emocionalmente.

O que vocês acham que vai acontecer agora? Deixem aqui um comentário...

Por hoje é só. Vou ali juntar os cacos do meu coração... Nos vemos no próximo capítulo ;*

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