Capítulo 47

Não sei como andei. Não sei como fui trazida até a masmorra, até minha cela onde a rainha já não estava mais. Não sei como me deitei na cama. Não sei como ainda respirava.

Talvez algum guarda depois do julgamento tenha me arrastado até ali, a rainha não estava em parte alguma.

Ainda sentia o cheiro de sangue em mim. O sangue dele. Eu neguei. Neguei que aquilo aconteceu. Neguei que Damien estava morto. Neguei que...

— Eu o matei... — sussurrei sentindo um aperto no peito. Nada que Leon tenha feito a mim se comparava a essa dor. Era como se algo tivesse sido arrancado de mim sem permissão. Alguém.

Eu arranquei.

Não achei possível haver mais lágrimas para serem derramadas, porém meu corpo tentava aliviar a dor. Tentava expulsar a dor pelas lágrimas quentes que escorriam pelo meu rosto frio. Tentavam e falhavam.

Levei a mão até os meus olhos e finalmente reparei no sangue que manchava rubro os meus dedos, pulso, palma. O vestido branco e puro manchado. Entendia seu proposito agora.

Eu o matei. Matei meu melhor amigo.

Damien — suspirei seu nome vendo tudo embaçado. Talvez pelas lágrimas que se tornavam maiores e sem intenção de acabar.

Coloquei a mão em cima do peito e ainda o sentia pulsar. Ainda o sentia bater. Mesmo estando destruído. Porque o destruíram a minha vida toda, mas desta vez foi pior.

Ele prometeu casar comigo e eu prometi dizer sim. Quebrei tantas promessas e ele também.

Eu matei ele.

Mesmo sabendo que era eu ou o povo, eu tinha escolha. Sempre há uma escolha. Fui egoísta. Porque sabia que podia ter dado um fim em mim.

Depois de ter me virado para Leon quando matei Damien ele me confirmou isso, não teria me impedido de me matar. Ele deixou que eu me destruísse, porque o traí. Porque prometeu que o faria e Leon manteve sua palavra.

Não aguentei e explodi em lágrimas e soluços. Até não conseguir manter os olhos abertos. Até não conseguir mais resistir e segurei a carta que ainda estava comigo, o único resquício que sobrou dele.

Tudo que sonhei eram momentos com Damien. Seus olhos. A cor de seu cabelo. O contorno de seu corpo. Cada detalhe.

Eu me agarrava em cada detalhe para mantê-lo preso na minha mente. Só que a única imagem que permanecia era do momento em que enfiava a adaga em seu coração.

Acho que se passou dois dias. Não me importei. Já que a única coisa que fazia era acordar, chorar e voltar a dormir. A comida permanecia intocável, não sentia fome.

Os guardas me olhavam feio quando eu jogava a comida para longe e voltava a deitar.

Achei que com o tempo a dor sumiria, porém não foi isso que aconteceu a dor aumentava e a culpa também.

Toda noite eu pegava a adaga da rainha e a pressionava no peito e tentava, tentava, tentava e não conseguia. Era tão inútil que não conseguia me matar.

A jogava tão longe e em minutos me arrependia e a pegava escondendo ao lado do travesseiro.

☽⋯❂⋯☾

Eu sentia seu cheiro poucos minutos antes de adormecer. Hortelã, cinzas e ferro. Não conseguia mais dormir depois.

☽⋯❂⋯☾

Acordei ouvindo seu cantarolar e levantei olhando para os lados o procurando, só achei as grossas grades e a fresta.

Abaixei a cabeça e nem percebi que ainda estava esperançosa.

Voltei a deitar encarando a fresta.

O céu estava tão azul. Uma parte adormecida de mim queria pintá-lo e outra sabia que seria impossível. Nenhuma cor viria a minha mente a não ser a vermelha.

Meus olhos se fixaram no céu e em como seria incrível voar. Fugir do meu corpo. Abandonar a dor nele e ir para longe. Qualquer lugar onde eu não tivesse matado alguém. Que eu não sofresse. Que eu não fosse mais eu.

Rosemary Swan, o sacrifício.

Rosemary Swan, a assassina.

Estendi a mão e quase, quase pude sentir a brisa fria nos cabelos e o sol aquecendo meu rosto.

Você pode acabar com tudo e voar — sussurrou alguém na minha cabeça.

Olhei em volta e estava sozinha na cela. Não ouvia som, a não ser o da minha respiração e o bater do meu coração que estava estranhamente calmo.

Pegue a faca — sussurrou novamente. — Pegue e enfie no que sobrou do seu coração.

Peguei a faca de baixo do travesseiro por reflexo e sob a luz da masmorra adquiriu um brilho bonito, quase com se ela quisesse isso também. Me apunhalar.

Faça — agora a voz falava tão alto que parecia berrar. — Faça. Faça. Faça. Faça. Agora.

Sim. Eu deveria fazer, afinal eu matei Damien e era uma troca justa. Uma vida, por outra vida.

Eu salvaria a todos e prometi a rainha que o faria.

Levantei a lâmina e a segurei firme.

Sempre pensei que morreria dormindo ou num lugar lindo rodeado de flores, velhinha com tinta nos dedos após pintar um quadro. Mas uma fresta com o céu azul era tão perfeito quanto flores e tinta.

Aproximei a faca achando que hesitaria, mas não hesitei.

Eu queria. Eu devia isso. Ao Damien, a rainha, aos meus amigos.

Não deixaria Leon vencer.

Faça. AGORA! — rugiu a voz e abaixei o aço afiado em direção ao meu coração.

— Eu vou embora e tudo vira uma peça de teatro ruim — disse uma voz grossa e levemente humorada a minha esquerda e meus olhos vão até ele.

Bonito como a primeira vez que o vi, com suas incríveis roupas bem ajustadas ao corpo.

O corpo de um deus.

Ele não era qualquer ser mágico, não podia ser.

Como não havia percebido que cada poro dele exalava poder? Um poder que ia além da compreensão humana. Pois ele tinha entrado no castelo e estava na masmorra, sem nenhum guarda notar.

— Suicídio não combina com você, princesa — havia humor em seu tom, mas entrelaçado a suas palavras estava preocupação e um certo desespero brilhava em seus olhos dourados. O que era impossível, Cassian não teria tais sentimentos por mim.

— Vá embora — virei de lado, o evitando.

— Eu vim até aqui oferecer minha ajuda e está me expulsando? — ele estava levemente magoado, mas havia diversão em seu tom. E estava próximo, muito próximo e virei para o achar dentro da minha cela. Nenhuma chave virada e nenhum fio de cabelo fora do lugar. Ele ergueu a sobrancelha, me incentivando a questionar como o fez. Voltei a virar de costas para ele. — Agora vai me evitar?

A raiva queimou no meu estômago e me virei sentando.

— Você é igual a ele. Um deus da morte — cuspi o encarando com ódio.

— Sim — seus olhos percorreram o ambiente e ele franziu a testa. — Ele não mudou nada — murmurou, para si mesmo.

— Sabia o que ele era e não fez nada — acusei.

Cassian me olhou.

— Infelizmente, não. Ele está bem diferente do que era a séculos atrás. Se soubesse quem ele era teria o esfolado vivo, princesa. Então não me olhe assim.

— Teria? — soltei uma risada cruel. — Vocês pelo que soube eram irmãos. Talvez quisesse o acobertar, o proteger.

— Você me faz parecer o cara mal que mata coelhinhos por diversão — ele balançou a cabeça. — Não sou tão cruel a este ponto.

— Então por que voltou só agora?

— Descobri quem ele era hoje, no Palácio Branco. Aquela vadia desgraçada, gosta de seus jogos sádicos, só soube pelos criados. Foi horrível conseguir sair, deveria me agradecer e não me olhar como se quisesse me matar.

— Então o que faz aqui? Veio assistir minha patética tentativa de suicídio?

Seus olhos dourados foram até a adaga.

— Sem pipoca e chá? Não. Vim ajudá-la.

Ri em escárnio.

— Cuidado Cassian, posso começar a pensar que tem um coração bondoso.

Um sorriso cresceu em seus lábios.

— Céus, tenho uma reputação e pretendo não a manchar com bondade e gentileza — ele colocou a mão no peito me olhando com indignidade. — Meus atos em ajudá-la são totalmente egoístas e vis, então não se preocupe, amor.

Um calafrio percorreu meu corpo e afastei a sensação.

— Quem disse que eu quero sua ajuda? Vá embora. Não acha que já fez o suficiente? Parte desta merda que está acontecendo é sua culpa.

— Não quer? Que pena, achei que estaria sedenta por vingança. Afinal, ele matou seu amado Damien. O torturou fisicamente e a você psicologicamente. Achei que queria a cabeça de Leon em uma bandeja.

Olhei para meu vestido ainda manchado de sangue, meus dedos ainda manchados. Um lembrete do que fiz.

Minha maior vingança seria frustrar seus planos. Mas talvez não fosse o bastante.

Ele ainda estaria vivo. Ainda respiraria por um longo tempo. Ainda estaria espalhando suas belas mentiras e tornando este mundo um verdadeiro inferno.

Leon ainda seria rei, ainda teria poder.

Apertei o punho, só a ideia me deixava enojada. Não era justo.

— Se quer se matar vá em frente e o faça. Só será mais uma na longa lista dele que aumentará — ele deu de ombros e se virou para ir.

— O que você quer? — perguntei me levantando o fazendo virar com um sorriso de lado.

— Bom, já que tocou no assunto do preço é simples, mas não é fácil. Quero que me liberte — ele caminhou até onde estava sentada na cama a segundos atrás e se sentou nela fazendo uma careta com o desconforto.

Levantei as sobrancelhas confusa.

— Está preso?

— Sim — Cassian puxou a manga da túnica preta que usava para cima. Seu pulso era grande e a sua pele pálida, só que não foi isso que chamou minha atenção. Havia tatuagens pretas percorrendo seu pulso com arabescos e símbolos formando... — É uma algema — disse como se não fosse nada demais. — Tenho uma em cada tornozelo e pulso. E claro, uma abaixo do pescoço.

— Quem fez isso? — estava levemente horrorizada.

— Uma deusa muito, muito vingativa — ele riu em desdém e abaixou a manga da túnica. — Uma maldição por algo que fiz no passado. Uma maldição de tinta. De pose e subordinação ao dono.

Então enquanto Leon ficou preso e a mercê da chance de alguém implorar por um filho, Cassian foi feito prisioneiro, também sofreu uma consequência pelo que fez.

Apesar do termo cachorro se adequar apropriadamente — disse soltando um risinho ao se levantar.


Cachorrinha.

Fora assim que Milei o chamou. Mas não exatamente do rei, e sim, desta deusa.

— E você quer que eu o liberte... dessa deusa muito vingativa? — perguntei o olhando com ceticismo.

— Sim.

— Como espera que eu faça isto?

— Fácil, tenho um plano. Mas antes tenho que te tirar daqui, isso se você aceitar.

Era tolice aceitar. O preço era muito alto, eu sequer conseguia deter Leon que era um semideus, quem dirá uma deusa.

— Não.

Mesmo querendo me vingar não podia confiar nele. Era um acordo com a morte.

— Então essa é sua resposta? — ele se levantou.

— Vai embora — esperei não o olhando. Se passaram segundos quando o encarei, o achei do outro lado das grades.

— E seus amigos? — falou, distante. — Imyir não aguentará um dia naquela prisão. Acredite eu já estive lá, não faz idéia do que acontece com garotas como ela. Os guardas são animais — Imyir era linda, deslumbrante... os guardas... Meu estômago se revirou e Cassian assentiu para a imagem repugnante que surgiu em minha mente. — Edward foi sequestrado pela sua amiguinha que não revelou exatamente o que quer.

Franzindo a testa abri a boca para perguntar, mas ele falou antes com um sorrisinho cruel nos lábios sensuais.

— Ficou tanto tempo no escuro. Não sabe quem são seus amigos, seus inimigos ou quem você é — seus olhos queimaram. — Mas se sua resposta é não. Não te obrigarei a nada, pode ficar aqui e continuar seu pequeno e insignificante suicídio.

Enguli em seco. Suas palavras me atingiram e pensei neles, meu amigos e no que seria deles se eu... a irmã de Damien não tinha ninguém. Edward não teria ninguém depois do sacrifício. Todos sofreriam e eu seria egoísta o bastante para não os salvar. Por mim, daria um fim na minha vida com aquela maldita adaga, mas por eles... havia uma chance.

Quase sumindo na escadaria o impedi.

— Espere! — gritei e ele parou se virando lentamente. — Espere — disse, novamente. — O único preço é eu ir até uma deusa e pedir sua liberdade?

— Quase isso — ele viu as perguntas no meu rosto e levantou a mão, me impedindo de falar. Ele se aproximou. — Vou te revelar no momento certo. Direi toda verdade, cada detalhe. Antes eu preciso te tirar daqui. Sei que não confia nos deuses, não depois do que suportou até agora, mas eu falo sério. Vou te ajudar, porém antes, tem que confiar em mim.

Analisei seu rosto e por mais que eu o odiasse, não havia um pingo de mentira nas suas palavras. Confiar. Eu já tinha confiado em tanta gente e todos me traíram no final, quem garante que com Cassian não seria diferente?

Porém pelos meus amigos. Pelas promessas que fiz. Eu enfrentaria até cem deuses para salvá-los.

— Eu aceito. Mas em troca deverá me ajudar a derrotar Leon e salvar meus amigos — eles, não a mim. Não, eu não tinha mais salvação.

— Feito — ele estalou os dedos e magia preencheu o lugar.

Do mesmo modo que entrou antes, ele apareceu na minha frente, desaparecendo e reaparecendo. Como fazia aquilo?

Ele pegou a adaga da rainha na cama e recuei.

— Se acalme — pediu, para minha preocupação evidente. — Vamos fazer um acordo de sangue.

— Um acordo de sangue, o que seria isso?

— Seria um acordo que durará para sempre, bom, até ser pago você terá uma dívida comigo e eu com você. Estaremos conectados, de corpo e alma.

Ele cortou a palma da mão e sangue escorreu. Cassian estendeu a faca e ergueu a sobrancelha me dando a escolha de recusar. Não pensei muito e a peguei e fiz o corte mordendo o lábio com a dor.

Peguei sua mão calejada. Sangue com sangue, pele com pele. Aquele toque foi suficiente para esquentar meu corpo frio.

— Eu tenho uma dívida com você. Serei sua espada em troca de libertação, para ambos, a eternidade não será um obstáculo para o acordo — disse me soltando e suas palavras pareciam ter outro significado. Não me atenho aquilo ao me afastar.

— Porque me ajudar? — a pergunta escapou dos meus lábios sem que eu tivesse controle. — Porque não ficar no seu palácio nos céus e deixar Leon espalhar o caos na terra mortal... porque veio me salvar? — a mim que nunca foi gentil com ele. Nem sequer éramos amigos.

Ele podia pedir ajuda a outra pessoa para se libertar. Então não fazia sentido.

— Meus motivos são inteiramente meus. Apenas se aproveite de minha fraqueza e pegue o que estou oferecendo. Sua liberdade — ele fez um gesto em direção as grades. — Odeio ele tanto quanto você, mas não posso destruí-lo. Não é tão simples com essa maldição na minha pele. Ela controla meus poderes e minha vontade, sou inteiramente dela.

Não queria saber o porque odiava Leon. Não me dizia respeito sua história.

— Então como conseguiu voltar? Ela não o impediria?

Seus olhos brilharam como mil sois quentes e vibrantes.

— A dores suportáveis, princesa. É doloroso ficar aqui e quebrar algumas regras dela. Mas é gratificante saber que não morrerá hoje, não merece este tipo de morte.

Ele olhou para a adaga e falei rápido tentando mudar de assunto.

— Qual é o plano? Como pretende destruir Leon? Como irei liberta-lo?

Uma risada ressoou na minha cabeça e arregalei os olhos.

Quantas perguntas, princesa. Disse uma voz na minha mente e a reconheci, o dono estava na minha frente com os braços cruzados e com um sorriso nos lábios fechados. Eu não disse que nossas mentes se conectariam depois do acordo? Ops.

Ele me olhou de forma inocente e apertei o punho que sangrava, com raiva. Desgraçado mentiroso.

— Bastardo — rosnei o fazendo rir.

Voltarei em breve e te explicarei o plano. Tente não sentir muito a minha falta.

Algo arrepiou minha espinha, como um vento particular que envolveu meu corpo e tinha certeza que fora ele, era uma carícia quase etérea.

Grunhi avançando para soca-lo e ele desapareceu e reapareceu do outro lado da cela, como fumaça.

— Até lá, se mantenha longe de objetos pontiagudos.

— Vai pro inferno.

Seu sorriso alargou e dentes brancos reluziram.

— Estarei esperando ansiosamente nossa próximo encontro. Vou sentir falta de você e dessa sua boca pecaminosamente atraente.

Porco — ainda o ouvia rir mesmo depois de ter desaparecido como neblina em uma manhã quente com seu cheiro ainda impregnado na minha cela.

Voltei a sentar na cama e reparei que o corte na minha mão não estava mais lá, passei a mão pela bochecha e o ferimento do surto de Leon também sumiu. Assim como o sangue Damien, que também desapareceu do vestido.

Mas nem mesmo a magia de Cassian poderia apagar o sangue da minha cabeça, ainda o sentia sob minha pele.

Encarei a fresta e podia jurar que vi um pássaro vermelho voar tranquilamente pelo céu azul.

☽⋯❂⋯☾

Gif da pessoa má e cruel, segundo Cassian. O maior devorador de coelhinhos, meu maridão.

Não esqueçam de votar, e bebam água ❤️

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