Capítulo 20
— O que faremos agora? O navio só vai chegar daqui seis horas — falou uma voz fina feminina.
Aquilo era um sonho estranho. Estava tudo escuro e eu só conseguia ouvir vozes sem rostos.
— Malditos piratas — disse uma voz grossa masculina distante.
— Maldito Capitão! Da próxima vez que o vir eu vou arrancar suas bolas elficas.
Mas o que diabos era esse sonho?
— Basta. Sabe que eu tenho uma dívida com ele. Espero que a grana que aquela princesa me deu seja suficiente — a voz era diferente das dos dois. Mais refinada e bem pronunciada.
Princesa?
Havia algo de errado. Eu sentia isso.
Acorde.
— Eu realmente gostaria de te ver tentar arrancar as bolas dele — disse rindo a voz mais grossa.
— Eu deveria começar com as suas?
— Parem os dois. Céus — pediu a voz mais educada e abri os olhos despertando. As vozes se calaram.
Havia um peso nos meus pulsos e pés e eles tilintaram quando me mexi.
Pisquei rapidamente com a claridade e vi três pessoas me encarando. Completos estranhos.
Não estava no castelo.
Lembrando do que fiz antes de desmaiar tentei me levantar mais percebi tarde demais que estava amarrada por cordas nos pés e grilhões nos pulsos.
— Não era para ter acordado tão rápido — comentou o da voz grossa que agora podia dar-lhe um rosto.
Era alto e musculoso.
Tinha uma cicatriz cortando sua sobrancelha esquerda e descendo pelo meio do nariz até a ponta dos lábios finos. Possuia a cor bronzeada e os cabelos castanhos escuros amarrados no topo da cabeça. Sua roupa era simples uma camiseta marrom, calças do mesmo tom e uma casaca preta. Ele tinha muitas armas visíveis.
— Quanto tempo se passou? Uma? Duas horas? — perguntou a menina dona da voz fina.
Não passava de uma adolescente magra e pequena. Com os cabelos curtos e loiros ela parecia um garoto.
Seus olhos azuis me fitavam com desdém.
Sua roupa era larga demais para seu corpo e ela também tinha armas. Mas ela segurava uma faca longa na mão e apontava para mim.
— Foram três — disse o grandão da cicatriz.
— Deveria estar desmaiada até amanhã de manhã. Posso nocaute-lá, Aschilan? — perguntou ansiosa para um rapaz sentado em uma cadeira d madeira.
Retesei me encolhendo.
Até amanhã?
Ele tinha um livro aberto e negou com a cabeça fazendo os cachinhos castanhos claros se mexerem.
Sua pele escura tinha um belo contraste com seus olhos esverdeados escondidos através de um óculos redondo.
— Não, Lenna — disse Aschilan e Lenna suspirou. — Está a assustando.
— O que querem de mim? — perguntei por fim rouca.
Lenna ergueu a sobrancelha loira.
— Nada, princesinha. Você é apenas uma mercadoria que temos que nos livrar.
Mercadoria? O que diabos era tudo aquilo? Havia sido sequestrada e agora estava sendo vendida?
Minha cabeça latejou.
"Uma peça que não faz parte do jogo não tem movimentos."
As palavras surgem na minha mente e sei quem foi a responsável por tudo isso.
Alba.
Ah, finalmente ela agiu.
Me sequestrou e agora iria se livrar de mim da forma mais rápida.
Não sentia pânico, de alguma forma conseguia me manter bem concentrada. Era adrenalina.
Precisava sair deste lugar.
Parecia um celeiro grande sem animal algum.
Havia palha pelo chão de madeira e uma janela em cima de mim que era pequena demais para meu corpo poder passar.
Eu precisava de um plano para fugir e voltar ao castelo.
Será que estava muito longe? Eram apenas os três ou haveria mais?
— Quanto ela lhes ofereceu? — perguntei sabendo que o que eles queriam era dinheiro. E pelas roupas não se importavam com quem estaria pagando.
— Tem inimigos bem perigosos senhorita — disse Aschilan juntando as mãos. — E muito ricos. Não pode cobrir a oferta dela.
— Quanto? — grunhi, impaciente.
Ah, eu deveria agir como uma rainha. Mostrar a eles que possuía algo de maior valor mesmo não tendo uma moeda no bolso.
— Nem mesmo seu belo rostinho pode pagar, gracinha — falou o grandão.
— Islachr. Não costumo sequestrar pessoas, mas odeio enrolação. Então obedeça. Descanse um pouco. Partiremos dentro de algumas horas.
— Isso se o Capitão estiver a caminho — resmungou, Islachr.
— Então vá checar novamente, e leve Lenna com você — Lenna o olhou brava e saiu pisando duro.
— Não ande tão rápido, porcaria — gritou Islachr a seguindo para fora.
O de óculos se levantou. E apertou o nariz longo.
— As vezes tenho vontade de matar aqueles dois — resmungou para si mesmo. — Não se preocupe ninguém fará mal a você.
Queria muito rir.
— Então o objetivo é apenas me afastar do castelo. Não me machucar?
Era muita consideração de Alba.
— Não, eu que apenas não gosto de violência desnecessária — ele retornou a sua leitura e fiquei ali o avaliando assim como ao ambiente.
Tentei bolar vários planos depois de uma hora quando a situação começou a finalmente entrar na minha cabeça. Pensei em tentar seduzi-lo, mas ele não parecia tão interessado em mim quanto Islachr.
A situação parecia terrível. E lágrimas teimavam em cair.
Para onde eles iriam me levar? Navio... eu iria para outro reino?
Alba realmente fez. Mas porque não me matar? Não que ser mandada para outro reino seja ruim, é até melhor que a morte. Mas se ela me odeia porque não se livrar de uma plebéia que não tinha influência alguma? Ninguém iria se importar. Como a outra plebéia, eu apenas não dei ouvidos aqueles que me avisaram.
Tarde demais. Fiquei com raiva de mim mesma. Fui tão burra. Descuidada após o incidente do baile não havia aprendido.
Era uma ninguém.
Se eu sair viva dessa vou me desculpar com Amália.
E obedecerei Leon.
Após mais uma hora nenhum dos dois voltou.
Minha barriga se agitou de fome. Olhei para Aschilan que cochilava. Seria uma boa hora para fugir.
Me mexi e o som metálico dos grilhões ressoaram e parecia o tilintar de uma espada batendo uma na outra. Aschilan se mexeu, mas não acordou.
Segurei os grilhões com força e forcei as cordas dos pés à soltarem. Era um trabalho difícil e lento. Cada barulho que fazia, meu coração acelerava e pensava que ele iria acorda. Mas ele dormia como uma pedra. Machuquei o dedo e quebrei três unhas, mas consegui me livrar das cordas. Estava vermelho onde a corda prendia a alguns segundos atrás.
Ótimo. Agora se acalme.
Queria comemorar minha pequena vitória, mas era cedo demais. Precisava sair dali. Antes que ele acordasse. Antes que os dois voltassem.
Levantei devagar com dor de ter ficado sentada por tanto tempo.
Testei o barulho do chão e ele rangeu de leve. Uma gota de suor escorreu pela minha testa.
Se acalme.
Respire.
Dei outro passo e dessa vez não fez barulho. Sorrindo caminhei lentamente até a porta, grande de madeira bruta, com a visão periférica voltada para meu sequestrador.
A palha fazia barulho ao ser pisada, mas sabendo onde colocar os pés era fácil.
Tremi de alegria ao chegar na porta. Só faltava abri-la. Observei quando os dois abriram e fecharam ela mais cedo. Um som saia alto das dobradiças. Mas se eu erguesse a porta não faria som. Ela não estava trancada já que pensaram que por eu estar presa não conseguiria fugir.
Segurei ela e a ergui. Estava tão focada em me concentrar na última tarefa que tirei meus olhos de Aschilan.
Não se preocupe ele está dormindo.
Abri a porta sem fazer barulho algum e uma brisa fresca esfriou meu rosto suado. Ela tinha cheiro de grama e liberdade.
— É mais traiçoeira do que pensei — disse Aschilan e a derrota me invadiu. Avancei para correr, mas sua mão bateu na porta fazendo um barulho alto ecoar. Um soluço escapou e lágrimas queimam meus olhos. Era um choro de frustração. — Não chore. Não sei o que fazer quando garotas choram. Foi até divertido vê-la tentar, se isso a faz se sentir melhor.
Tentar. Ele sabia. Sabia desde o início. Ele não era estúpido. Eu era.
— Você é um maldito desgraçado — acusei me virando.
Ele assentiu.
— Sim, eu sou. Sequestrar você me garantirá liberdade e eu preciso dela tanto quanto você.
Liberdade?
Precisava enrola-lo. Talvez conseguisse fugir, ele não me amarrou e aquilo podia ser uma vantagem, mesmo que pequena.
— Porque um sequestrador precisaria buscar liberdade?
Aschilan ficou mais ereto.
— Gosta de fazer perguntas. E não sou um sequestrador. Sou um faz-tudo.
— Então a liberdade não é para você — conclui.
Ele ajeitou os óculos e sorriu.
— A senhorita é muito perspicaz. Não, não é para mim.
— Parente?
Aschilan negou com a cabeça irritado. Seu rosto ficou triste por frações de segundos. Vulnerável. Quem quer que fosse era importante para ele.
— Uma mulher? — arrisquei.
Ele apertou o maxilar.
Sim, era.
Eu poderia usar aquilo.
— Chega de conversa — grunhiu.
— Sua amada está presa. O que ela fez? Matou alguém? Não. Ela seria morta se o fizesse... então ela roubou? Mas isso não é tão grave a ponto de mandar para uma prisão — ele tremia de raiva. A cor de seus olhos verdes eram capazes de me queimar. Seu ponto fraco era ela. — E a mais famosa da Cìlia é Uffern.
— Ela não matou ninguém. Armaram para ela — sua voz estava além da ira e ele abria e fechava o punho. — Acusaram ela de mexer com magia. Eles... a prenderam injustamente — disse tentando se controlar.
— E você quer a liberdade para ela. Mas dinheiro nenhum a livrará daquele lugar. Só há uma forma de sair de lá.
— Eu vou tirar ela de lá. De um jeito ou de outro.
— E é morrendo.
Seus olhos ficaram vazios de emoção e ele cruzou os braços. Talvez imaginando o fim dela.
A quanto tempo ela estaria presa?
Deveria ser a um bom tempo.
Então ele sabia que havia essa possibilidade, dela já estar morta.
— Eu vou tira-la de lá — reafirmou, sério. — Nem que eu precise matar o próprio rei. Agora fique quieta. Você não quer ser transportada para outro reino em pedaços, ou quer?
Não queria demonstrar meu medo e disse com a voz baixa e firme:
— Eu também quero minha liberdade.
Ele riu.
— Tente manipular outro.
— Não. Não somente aqui. Mas eu odeio esse lugar - eu só podia falar a verdade e rezar aos céus para que ele me escutasse e entendesse. — Eu não sou igual as outras jovens. Esse reino só me trouxe dor. Cresci em um ambiente hostil e fui traída por quem mais amava. Depois tive que me forçar a participar de uma competição idiota por dinheiro. Eu só quero ir embora desse lugar.
As palavras se derramavam de mim com dificuldade. Doía falar aquilo. Ainda mais para um estranho. Mas se era esse o preço necessário para eu fugir eu o pagaria.
— Todos sofremos senhorita. Uns mais que os outros. Mas devemos aprender com a dor e com nossos erros.
— Está querendo que eu aceite o fato de ser mandada para outro lugar contra minha vontade?
— Ora. Mais não é isso que você quer? Ir embora? Pronto. Aí está. Sua chance de ouro. Vai poder deixar esse reino de merda. Hoje é seu dia de sorte.
Fiquei sem reação. Era verdade que eu queria ir embora. Mas não daquele jeito.
Mas de qual?
— Agora se afaste da porta. Você poderia ter fugido pela janela. Estava aberta e eu não teria tempo de pega-la.
Ele me arrastou para o lugar no qual estava anteriormente e me sentei no chão pensando no que ele disse.
O que me mantinha presa aquele lugar? O acordo com Leon? Dinheiro?
Agarrando meus joelhos não consegui encontrar nada que me prende-se aqui.
Observei as partículas se poeira voarem.
— Você ama ela? — perguntei para ele. Estava tão cansada que não me importava se esse assunto o deixava bravo. Só queria me distrair de mim mesma, pois eu me sentia vazia. Novamente aquele sentimento de não fazer parte de nada me dominava e eu precisava desesperadamente fugir dele.
Para minha surpresa ele respondeu:
— Sim. Eu a amo — sua voz transmitia aquela emoção.
— Ama tanto ao ponto de arriscar a própria vida pela dela?
— Minha vida não vale de nada se ela não estiver ao meu lado.
— Como ela é?
Não queria dizer era.
— Linda — ele sorriu perdido em lembranças. — Não há mulher mais encantadora. Claro, que ela podia ser tão cruel quanto meiga — sua risada me fez lembrar de como eu era quando falava com Damien. Apaixonada. Encantada.
Será que voltaria a amar alguém assim algum dia?
Duas batidas na porta encerram a conversa. Lenna e Islachr entraram.
— Tudo pronto. Eles estão no cais — disse Lenna.
— Ótimo. Seu recomeço à aguarda senhorita — falou Aschilan se levantando da cadeira.
Me levantei e os segui para fora.
— Porque ela está sem as algemas e a corda? — Lenna questionou numa voz estridente.
— Longa história. Ela não vai fugir.
E ele estava certo.
Para que lutar? Por quem? Ele apenas me daria aquilo que eu almejava. Liberdade.
Sorrio amargamente. Achei que ela teria um gosto melhor.
A pessoa que mais me odeia me deu aquilo que eu mais queria.
— Não fique triste gracinha. O lugar para qual você irá é lindo — disse Islachr.
— Islachr. Não a chame de gracinha. É repugnante — Aschilan repreende o grandão.
Saímos do celeiro. Não estávamos tão longe do castelo. Ainda via sua forma ao longe.
Fiquei encarando aquele lugar que me trouxe raiva. Alegria. Medo. Paixão.
Queria chorar, mas não faria na frente deles.
Acho que já estava considerando aquele lugar a minha casa. Mesmo com todos os seus segredos.
— Anda logo! — resmungou Lenna.
— Pare de implicar com ela — Aschilan pediu num suspiro.
Será que os dois eram irmãos? O grandão não parecia ter relação com eles, a não ser a profissional.
Três cavalos esperavam ao lado de uma árvore. Um marrom e dois pretos.
Me aproximei deles e então ouvi o barulho de cascos batendo e me virei. Vindo em nossa direção Leon galopava com dois guardas ao seu enlaço. Ele desembaiou a espada do coldre.
Estava muito bravo.
— Não deixem que fujam — gritou e uma alegria inexplicável tomou conta do meu ser.
— Corram — gritou Aschilan.
— Merda. Merda — falou Lenna subindo desesperada no cavalo. — Como ele nos achou?
Ambos sairam a todo galope esquecendo de mim. O único que ficou foi Islachr. Mas Aschilan deu meia volta.
— Islachr, vamos! — gritou o de óculos. Mas ele não se mexeu.
— Vai.
— Não sem você!
— Calado — ele olhou para o amigo e sorriu tristemente. — Você tem algo pelo que lutar. Não vai ser preso ou morto antes de salva-la. Então, saia daqui.
Ele assentiu e me olhou.
— Vá — falei, porque eu não queria ir embora, não assim, e não queria que ele fosse preso.
Aschilan virou o cavalo e sumiu de vista segundos antes dos guardas começarem a disparar flechas.
Esperava que ele conseguisse fugir. Não era ele o responsável por aquela confusão.
A culpa era de Alba.
Leon parou o cavalo e desceu dele, seus guardas pessoais cercaram a mim e ao grandão que estava com a espada levantada. Pronto para lutar. Pronto para matar. Os dois se encararam.
Quase parecia uma luta entre uma besta assassina e um humano. A única coisa da qual tinha certeza naquele momento, era que somente um sairia com vida.
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