Capítulo 1
Às vezes antes de dormir penso que em algum lugar uma garotinha está recebendo o amor que eu deveria ter.
A raiva se instala e durmo agarrada na ilusão que sou ela, que tenho esse amor e após acordar um sentimento de vazio e constrangimento me atingem.
Era só naquele momento que me permitia quebrar, de deixar as máscaras construídas e moldadas durante anos cair junto a lágrimas quentes.
Estava observando o sol nascer pela janela quebrada do quarto que dividia com meu irmão três anos mais velho. Gostava de acordar cedo, de observar o mundo despertar lentamente. O silêncio reinava naqueles poucos minutos quase mórbidos.
O vidro estava levemente trincado e era possível ver meu reflexo e parecia que parte do meu rosto tinha sido rachado, como se ele pudesse ver além das minhas versões falsas. A verdadeira Rosemary Swan.
Os olhos inchados e com olheiras pequenas, a pele pálida e sem graça, o rosto fino e magro de fome me encaram de forma inexpressiva.
Mudando o foco para o mundo além da janela trincada vejo os pequenos raios de sol surgirem por cima das casinhas simples da minha aldeia e das árvores ao redor. Longe o bastante do castelo para quase sermos esquecidos.
Me virando andei devagar pelo chão de madeira velha e passei pelo beliche decrépito. Tão acabado que parecia que iria cair e com meu peso eu facilmente iria esmagar Mathias.
Desviando do amontoado de roupas sujas de Mathias e das manchas de tinta e de meus pincéis colocados em um canto distante ao lado de um banquinho, um dos poucos presentes que Damien me deu.
Peguei um casaco que já estava tão surrado que não sabia quem estava aquecendo quem. Enfiei meus pés nas botas e analisei meu irmão que dormia pesadamente.
Tinha tinta rosa nas pontas de seu cabelo loiro escuro. Não tinha se dado o trabalho de tirar as botas para dormir, deveria ter trabalhado até tarde no emprego de pintor que conseguiu. Balançei a cabeça, se ela o pegasse dormindo assim nesse estado teria gritado para cuidar melhor de sua aparência.
Uma das poucas coisas que tínhamos em comum era que não dávamos a mínima para nossa aparência.
Ele roncou alto e suspirando abri a porta. Não duraria nem uma semana no novo emprego.
Passei pelo corredor fazendo o mínimo de barulho possível. A porta do quarto dos meus pais estava fechada, mas isso não significava que estavam dormindo.
Descendo as escadas mordi os lábios quando um leve ranger soou e olhei para cima aguardando uns segundos.
Quando não escutei nada de anormal no andar de cima finalmente cheguei no térreo. A cozinha estava escura e a sala, a qual era dividida apenas por uma longa mesa, estava cheia de garrafas de cerveja espalhadas.
Parei na soleira da porta da cozinha e me abaixei. Havia uma tábua solta e nela eu escondia frutas ou dinheiro, dessa vez havia uma maçã verde.
A coloquei no bolso do casaco e sai para o abraço frio da neblina que me recebeu como uma velha amiga. Fechei a porta o mais silenciosa que pude me afastando da minha casa.
Havia algumas flores mortas em um diminuto canteiro ao lado de um pequeno muro de pedras brutas, que rodeava o terreno. Uma das minhas várias tentativas de agradar Eleonora Swan, todas terminadas em olhares repulsivos, risadas grosseiras e dinheiro economizado jogado fora. Mas aquela eu realmente achei que funcionaria, afinal ela gostava de gardênias e seu cheiro doce e eu ousei plantar uma muda de rosa a qual tinha ganhado de Damien.
Eu tinha quatorze anos na época e lembro dela cortando as gardênias e fazendo perfume, já a rosa ela fez questão que essa não recebesse água e nem luz do sol apropriada, morreu murcha e desprezada.
Depois disso nunca mais voltei a tentar agrada-lá.
Evitei o portão de ferro velho retorciso pulei o muro. Era baixo então não foi difícil, mas quando era pequena esse muro era uma verdadeira escalada.
Costumava fingir que ele era o Monte Conorar, só que sem a neve que habitava nele. Existiam lendas que diziam que se você conseguisse escalá-lo até o topo, lá em cima poderia achar uma grama tão verde com flores coloridas e uma fonte que consentia desejos. E que se você bebesse da água você se tornaria imortal.
Já outras pessoas diziam que antigamente os deuses moravam ali, pois ficava perto da terra e do céu em um Palácio branco.
Não importava qual história era a verdadeira ou se todas eram falsas, lá era o território dos exilados. Seres mágicos banidos de toda a Cìlia e exilados em um continente cruel e quase inóspito.
As ruas da minha vila eram verdadeiros labirintos e era preciso tomar cuidado, várias delas terminavam em lugares de roubos frequentes ou se você tivesse sorte e dinheiro, a bordéis.
As moças eram simpáticas, os homens também, dependendo do cortiço. Possuía conhecidas em um deles. Não que elas dariam a sua vida para me salvar, não. Mas eram verdadeiras fontes de conhecimento de tudo e todos. Qualquer coisa que acontecia no castelo e em outros reinos elas ficavam sabendo.
O caminho de pedra escura me levou até a praça principal, onde eram realizados comunicados do rei, um executamento ou torturas. Mesmo estando afastado do castelo, o poder dele se estendia por toda a Cìlia.
Uma pira alta de madeira velha se encontrava no meio, crianças brincavam ali no verão e não tinham ideia do quanto de sangue e dor aquele lugar tinha arrancado. Talvez sua inocência as impedia de assimilar a realidade, que coisas ruins aconteciam, ultimamente com mais frequência que o habitual.
Minhas botas faziam barulho nas pedras da rua e isso me fez pensar que seres exóticas tinham passado por aqui, pisado onde estou pisando.
Antes todos viviam juntos, humanos e criaturas mágicas, antes da Guerra do Expurgo. Antes de tudo não passar de historias contadas por bêbados e aventureiros em fogueiras ao luar.
Descendo pela ladeira pequena observei a rua de lojas e uma delas possuía uma placa que balançava com o vento, um desenho de pedras brutas de um lado e do outro as pedras transformadas em anéis, colares e pulseiras brilhava em contraste aos raios de luz.
Sorrio para ela. Um dos trabalhos mais bem pagos que fiz, ainda tinha algumas moedas guardadas.
Damien trabalhava ali, todos os dias e o dono só vinha no final do mês paga-lo e reabastecer o estoque, já que morava próximo ao castelo.
Me aproximando ouvi o martelar baixo vindo de dentro, uma plaquinha dizendo fechado estava pendurada pelo lado de dentro e segurei a maçaneta. Nunca ficava fechada, não quando ele sabia que eu vinha.
Ouvi um grasnado alto e virei a cabeça para cima abruptamente e achei a ave dona do som. Segundos atrás ela não estava ali e não ouvi o som dela se aproximando.
Uma ave estranha estava empuleirada na placa de madeira, sua cabeça pequena estava de lado e seus olhos vermelhos escuros me observavam fixamente.
Parecia uma mistura de corvo com águia, com um corpo grande e bico pequeno e penas da cor vermelha, dourada e preta. Os fachos do sol contrastavam nas suas penas de modo que a ave adquirisse um brilho suave.
Não tinha medo de pássaros, porém aquele me deixou receosa. Fora a cor peculiar, ele tinha um ar quase sobrenatural e parecia querer me dizer algo.
— O que você quer? — perguntei, e quase gargalhei ao perceber que estava falando com um pássaro.
Eu estou perdendo o juízo.
A ave no entanto soltou um grasnido e voou rapidamente na minha direção, não tive tempo para fazer nada a não ser esconder meu rosto com as mãos e segurar um grito.
Quando segundos passaram e não senti nada abri os olhos que mantive fechados com força.
A ave tinha sumido, como se nunca tivesse estado ali.
Acalmei minha respiração e balançei a cabeça.
Acho que eu devo começar a repensar meu gosto de acordar cedo, afinal já estava dormindo acordada.
Abrindo a porta entrei na loja e o martelar cessou quando o pequeno sino soou.
Dentro várias vitrines de vidro eram preenchidas por jóias brilhantes, mas sua beleza só era de fato aproveitada pelos acabamentos das correntes que possuíam desenhos feitos por mãos habilidosas.
Um anel em especial me chamava sempre a atenção. Ele ficava repousado em uma almofada branca pequena bem no meio da bancada onde a irmã de Damien vivia debruçada, quando brincava de bonecas.
Um diamante azul-acidentado em formato de rosa com ramos de folhas delicadas de prata o segurando no centro e formando o restante do anel me fazia sorrir.
Era uma das peças que ninguém sequer olhava, claro quando se tinha tantas opções com pedras maiores ou detalhes mais elaborados ela não se destacava.
Ouvi a porta dos fundo se abrir e Damien apareceu com gotas de suor molhando sua testa franzida.
— Você realmente gosta de acordar cedo — disse e notei as olheiras escuras em baixo de seus olhos castanhos escuros.
Damien não gostava de acordar cedo, mas ele tinha seus motivos. Pesadelos o faziam não pregar os olhos a noite e quando já era quase hora de levantar ele finalmente conseguia dormir.
— Acho que depois de hoje eu vou acordar mais tarde — resmungei, pensando no corvo vermelho.
Ele secou o rosto em um pano marrom e abriu uma porta ao lado da bancada.
Usava um avental preto e por baixo uma camiseta vinho de mangas longas com o colarinho aberto e calças pretas. Seus cabelos estavam uma bagunça com os caixinhos castanhos claros caindo por cima dos olhos e avancei para tirar, ele deixou, esperando eu os arrumar.
Notei algumas tranças pequenas e aumentei o sorriso.
— Maddeline será uma ótima cabeleireira, talvez até consiga emprego no castelo. Imagine ela arrumando o cabelo das princesas pomposas e superficiais — terminei de arrumar e me afastei.
Damien ergueu uma sobrancelha escura.
— Não acho que todas sejam pomposas e superficiais. A não ser você. Oh! Vossa Alteza, Rosemary Argae Swan — ele fez uma reverência dramática e por isso não viu meu olhar sombrio. Argae, um sobrenome tão ridículo e que me perseguia como um lembrete constante. Minha mãe não me deu seu sobrenome, não deixou que eu o possuísse. Escolheu esse aleatoriamente, como eu sei? Bom, ela me contou quando eu perguntei e passei a nunca usá-lo.
Forçando um sorriso para Damien tentei entrar na brincadeira afastando a sensação ruim no peito, fiz minha melhor atuação.
— Alteza? Ora! Para você é majestade. Rainha Rosemary — falei quando ele levantou a cabeça e revirou os olhos. — Que afronta! Ousa revirar os olhos para mim! Terei que puni-lo.
Damien se aproximou, com uns oito centímetros de diferença ele me fez inclinar a cabeça. Seu cheiro de ferro, suor e limão fazia meu rosto esquentar levemente.
— E qual, minha adorável rainha, será minha punição? — perguntou rouco, colocando uma mecha solta do meu cabelo atrás da orelha.
— Beijos, sua punição será me dar vários beijos — falei olhando seus lábios e ele sorriu.
— Ficarei feliz em aceitar essa punição tão tentadora.
Damien beijou meu pescoço.
Suas mãos seguravam meu quadril e minha respiração ficou irregular. A sensação de me perder naqueles momentos eram tão saborosos que faziam toda a culpa e raiva de mim mesma sumirem.
Fechei os olhos saboreando a sensação de seus dedos acariciando meu quadril e de seus lábios macios.
Seus lábios vão deixando uma trilha de beijos molhados e quentes pelo meu pescoço até a minha orelha, então ele beijou meu queixo delicadamente e foi de forma lenta até a bochecha.
Ele se demorou beijando cada um dos meus olhos fechados e então beijou a ponta do meu nariz e parou.
Abrindo os olhos soltei um grunhido de insatisfação.
Damien encarou meus lábios com um desejo explícito.
— Acho que sua punição ainda não acabou — disse quase sem voz, e o beijei com vontade.
Damien me envolveu nos seus braços com os músculos tensionados.
Seu cheiro me embriagou e comecei a esquecer onde estava.
Então as conversas que as meninas dos bordéis me disseram ter escutado, dos rumores fez todo meu desejo se extinguir e me afastei.
Damien estava sem fôlego quando tentava descobrir o porque de eu ter interrompido o beijo.
Tentei sorrir e acabei fazendo uma careta.
— Seus clientes chegam daqui a alguns minutos.
Puxando seu avental ele me soltou corando e coçou a nuca.
— Não vejo o tempo passar quando estou com você — disse e passei por ele. Pendurei o avental atrás da porta e me virando o encarei.
— Infelizmente eu vejo — falei, me encostando na bancada e o observei virar a placa para aberto. Ele caminhou para trás da bancada e ajeitou o cabelo, o que fez ele ficar mais bagunçado ainda. Meus olhos vão até o anel e fiz a pergunta que vinha negligenciando a muito tempo. — Porque ninguém compra essa peça?
Damien seguiu meus olhos e suspirou ficando desconfortável.
— Ela está esperando eu tomar coragem e pedir — falou com seus olhos penetrando os meus.
Pisquei rapidamente, mesmo sabendo que seria essa a resposta ela ainda me surpreendeu.
— Damien... — comecei, mas ele me interrompeu.
— Eu sei, eu sei. Você quer ir embora desse lugar antes de pensar em ter um relacionamento serio com alguém.
Damien não era meu namorado, tínhamos só uma relação carnal que às vezes me fazia pensar que não estava na hora de aceitar que ele era o único que poderia me amar.
Nos conhecíamos desde pequenos, estudamos juntos na escola improvisada nas antigas ruínas de um templo de adoradores de deuses. Depois do Expurgo, o rei decretou que deuses não existiam e era uma crença vaga e vã. Destruiu tempos e extinguiu a fé pelos seres poderosos.
A escola ainda possuía desenhos e canções pela metade, gravadas nas paredes, o que me fazia questionar como ele conseguiu fazer anos de crença e adoração se acabar com um simples decreto. Como ele conseguiu fazer os outros reinos seguirem seu exemplo. Tudo aquilo me fazia ganhar horas de castigo por atormentar a minha antiga professora Yara com perguntas que segundo ela, eu estava duvidando e questionando meu rei e portanto não passava de uma traidora e merecia ser exilada como os seres mágicos.
Damien nesses momentos fazia alguma pirraça e ficava de castigo comigo, sempre esteve ali, me salvando ou simplesmente compartilhando minha angústia e dor. Quase todas.
— Mas no momento que eu fizer o pedido você dirá sim? — perguntou, temeroso.
Segurei suas mãos e os calos arranham minha palma.
Ele sempre esteve ao meu lado e mesmo depois de descobrir seu segredo eu não consegui me afastar, e precisava. Deveria ter me afastado no momento que ele me contou sobre os sentimentos guardados e acumulados por mim durante anos.
Eu não conseguia amar da mesma forma que ele, meu coração era tão quebrado e estilhaçado que só conseguia ser inteiro quando ele me dizia o quanto eu era importante, o quanto minha experiência significava algo, quais partes de mim ele mais amava.
Eu não me amava, e quando alguém não se ama, ela não pode retribuir com a mesma devoção o amor de outra pessoa.
Mas mesmo contra a razão sorrio. Depois que prometesse, talvez ele parasse com seus trabalhos extras e finalmente eu fosse capaz de dizer a ele que queria ser dele pro resto da vida. Talvez então eu pudesse aprender a me amar.
— Claro, será um sim — prometi e percebi que estava sendo sincera.
Ele abriu um sorriso com covinha e dei um pulo ao ouvir o sino da porta soar e um cliente entrar.
— Até mais tarde — resmungando me afastei e passei pela cliente de rosa cheirando a perfume adocicado que quase me fez espirrar.
Abrindo a porta me virei para ver Damien sorrir como se tivesse ganhando algo incrível.
Mas não era nada incrível, antes de aceitar teríamos que revelar todas as mentiras que tínhamos guardado durante anos e talvez se ainda fossemos capaz de nos olharmos, poderíamos recomeçar juntos.
Me virei contendo uma carreta, levaria semanas para dizer a verdade que marcavam minha alma. Me arrastando ladeira acima acelerei o passo. Fiquei com medo deles terem acordado e desconfiado que sai.
A rua começou a ficar movimentada e desviando das pessoas um papel voou e grudou no meu rosto.
Com raiva o retirei e passei meus olhos pelas letras bem curvadas do papel azul claro com o emblema real.
Pulei as partes insignificantes na qual algumas frases inspiradoras propositalmente faziam o comunicado ficar mais chamativo.
"Mais uma competição pela coroa de Mountsin será realizada... Qualquer garota com ou sem um título com idade dentre dezesseis e vinte poderá concorrer..."
Parei de ler e amassei o papel.
O príncipe herdeiro já não fez uma Competição? Porque diabos o mais novo precisava de uma também?
Guardei o papel no bolso do casaco, odiava jogar lixo na rua e essa competição era mais suja que minhas botas.
Depois da competição do herdeiro, na qual a plebéia morreu e a história foi silenciada eu tinha certeza de duas coisas: Mountsin tinha muitos segredos; a Competição era perigosa demais para uma plebéia.
Observei a minha casa por um tempo e pulei o muro indo até a porta contendo um tremor involuntário, tentei lembrar dos rostos dos deuses desenhados na velha escola e implorei para qualquer um deles, que eles estejam na cama ainda.
Mas minha fé não possuía nada a não ser ceticismo e medo, pois quando abri a porta ela estava cozinhando algo com cheiro ruim e reprimindo um sorriso amargo pensei que talvez o rei não tivesse sido tão cruel ao expurgar a crença em deuses.
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