PRÓLOGO

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O Palácio das Nuvens estava movimentado hoje, a rainha Tória daria luz à sua segunda herdeira e as fadas, únicos seres de luz que usavam magia, estavam preparando uma grande comemoração à altura. É claro que eu não estava gostando nada disso.

Terminei de pentear meus curtos cabelos escuros e saí do meu quarto à procura de Verton, ele era um dos serventes da Rainha, nós todos servimos a esses imundos, é sempre a mesma história, os que comandam e os que obedecem. Segurei o vestido me possibilitando andar mais rápido até o quarto dele, entrei sem bater, ele saberia quem era. Quando entrei, Verton estava abotoando a calça. Ele me olhou da cabeça aos pés e sorriu.

­– Você está linda.

Sorri ao sentir o elogio em minha pele. Observei o quarto bagunçado e os móveis cheios de poeira. Ele devia limpar isso.

– Não estou fazendo mais que minha obrigação, é assim que a dama de companhia da Rainha deve se vestir.

Verton veio até mim.

– Não por muito tempo – ele disse ao meu ouvido.

– É verdade – falei me desvencilhando – Em breve estarei usando coisa melhor que isso, e uma coroa na cabeça.

Sacudi o vestido. Fui até ele e coloquei as mãos em seus ombros fortes e largos. Ele me puxou para perto, meu corpo encontrou seu peito nu, e ainda me recuperando do êxtase que aquilo me causava ele me beijou, mas por mais que eu gostasse aquilo não pareceu certo agora, então lhe disse que esperasse até sermos rei e rainha.

As criaturas das Sombras estavam extintas havia anos, depois da guerra de Sangue. Porém, Verton e eu fizemos um pacto com o último Rei Sombrio IV de nos infiltrar no reino da Luz. Passei grande parte da adolescência conquistando a confiança da família real, o que não funcionou com o Mago Levi, nem a minha beleza o seduziu, o que era uma pedra no meu sapato, já que Levi protegia o lendário livro de Feitiços, capaz de trazer de volta os seres sombrios. Mas eu darei um jeito, não sou tão imune quanto todos pensam, tenham meus próprios truques. Dei um último olhar a Verton e sai.

Desci as escadas observando o quão límpidas eram as paredes brancas do palácio, até onde estão os dormitórios mais simples. O Palácio das Nuvens era uma fortaleza de luz em vários tons de branco. Segui para o saguão onde as criadas trabalhavam incessantemente para amanhã terem de limpar tudo de novo. Revirei os olhos. Tanta servidão para quê?

Continuei andando até o salão de jantar, uma grande mesa estava posta no centro com outras menores espalhadas pelos cantos.

– Precisa de algo, minha senhora? – perguntou-me uma criada, interrompendo minha observação.

Neguei com educação e agradeci com um sorriso. Como era difícil ser boa após ver o que a bondade poderia ser na realidade. A criada se retirou sem uma reverência e lembrei de porque estou aqui e porque em breve serei reverenciada. Supus que Tória estaria em seus aposentos e caminhei apressadamente até lá. As pessoas que encontrei no caminho paravam para ver meu vestido cintilante com pequenas pedras de diamante. Cheguei ao corredor dos quartos reais, bati levemente na porta enorme. Uma criada abriu e deu-me espaço para entrar.

Não importava quantas vezes eu pisava naquele quarto, sempre ficava boquiaberta com as paredes brilhantes, os tapetes de fios de ouro prateado, o mais caro trabalho dos mercadores estava naquele quarto. A rainha me viu e sorriu, caminhei até ela. Sua aparência era linda para alguém em trabalho de parto há horas, estava suada, seus cabelos loiros colavam no rosto, usava uma camisola linda, de invejar. Peguei sua mão.

– Que bom que está aqui – ela disse.

Eu sabia que falava a verdade. Tória sempre me viu como uma irmã, a que ela nunca teve. Sua irmã, Hemera, morreu quando ladrões a jogaram de um penhasco abaixo após roubá-la, dizem que ela estava grávida e o bebê também morreu. Tória buscou justiça e isso a tornou rainha. Eu também tentei competir pelo coração do rei Castro IV, mas Tória era infinitamente superior a mim. Mas um dia eu serei rainha. Não desse reino, agora eu pertenço às Sombras. Se tudo ocorrer como o planejado, desenterrarei o poder sombrio com o livro de Feitiços.

Fui despertada dos meus pensamentos com um grito da rainha. Ela apertou minha mão e olhei-a fixamente. Apertei sua mão de volta. Você poderia morrer agora, por favor, morra. As parteiras faziam um trabalho de gênio. Segundo as fadas, o trabalho de parto era sagrado para que a criança nascesse forte e saudável. Gotas de suor escorriam pelo rosto de Tória. MORRA!

Ouviu-se o choro. Ela nasceu. Era uma menina. Mais um herdeiro ao trono de Anelin.

– É uma menina! É uma menina! – gritou a criada enrolando a bebê na manta de algodão puro. Já limpo, ela o entregou à rainha.

– Avisem todos que a princesa Annie nasceu, a princesa de Anelin – ela avisou sorrindo e acariciando o filho.

Duas criadas saíram correndo, uma permaneceu ao seu lado arrumando a bagunça.

– Posso fazer algo por você, Majestade? – perguntei.

– Abra todas as janelas, preciso sentir o ar fresco da manhã.

Eu verifiquei se todas as janelas estavam abertas e abri as que não estavam. O quarto tinha quatro grandes janelas, por ela percebi que todos já comemoravam a chegada da sua princesa. Vi vários proprietários, damas da alta corte, os reis e rainhas dos outros reinos já chegavam.

– Registre bem a data, Lella – ouvi Tória falando com a criada - Início dos anos mil, inverno...

– Serão anos mil de paz e prosperidade – interrompi.

Tória deu-me um sorriso e admirou a pequena filha ainda tão frágil e exposta.

– Preciso me retirar, majestade – falei suavemente.

– Claro, Diana, mas depois volte, vou precisar da sua ajuda para me vestir.

Senti um ódio grande ao vê-la falar meu nome, o nome de quem eu já nem sabia quem era. Concordei com um aceno de cabeça e sai do quarto. Segui diretamente para o meu. Havia muito o que fazer, com tanto tempo que passei com os últimos seres sombrios aprendi alguns feitiços, e eu sabia que existiam outros ainda mais poderosos, mas Levi não me deixava chegar perto do livro. Ele conseguia enxergar além da minha máscara.

***

Antes de sair para ver a rainha, peguei um vidrinho com líquido vermelho que estava em cima da mesa de cabeceira, coloquei-o na meia da perna esquerda. Eu usava um vestido vermelho com fenda e manga de renda, um colar de rubi, prendi o cabelo e coloquei uma tiara pouco chamativa. Chequei se o punhal e o veneno estavam nas meias. Vi meu quarto pela última vez, nada de rastros. Por coincidência encontrei Verton no corredor perto ao seu quarto, ele veio caminhando até mim.

– Vossa majestade está muito tentadora.

– Isso foi um elogio? – perguntei com a sobrancelha arqueada.

Ele me agarrou pela cintura e me deu um beijo. Retribui sentindo um calor percorrer meu corpo, seus lábios seguiram até o meu pescoço. Com a mão ele abriu a porta de seu quarto e entramos. Ele tirou sua blusa de gala e me levou até a cama.

– Acho que não é uma boa hora para isso – tentei falar.

Porém, suas mãos ágeis já haviam retirado meu vestido. Ele sorriu ferozmente ao ver minhas meias.

***

Cheguei apressada ao quarto real, Tória já estava pronta e a princesa Annie descansava tranquilamente no berço.

– Me desculpe pelo atraso, majestade – falei e me reverenciei.

Ela deu uma risadinha. Lella estava arrumando o guarda-roupa, ocupada, isso era bom.

– Aposto que Verton adorou seu vestido.

Assenti.

Apesar de tudo, a rainha sabia de minha relação com ele e de minha vontade de ter um filho, mas nunca consegui. Ela apoiou a mão em meu ombro. Reparei seu vestido branco com camadas de seda, as mangas largas parecendo um véu. A coroa brilhava em sua cabeça e seus cabelos loiros estavam perfeitamente ondulados.

Meu corpo estava tenso com a ideia de que em pouco tempo minha vida iria mudar. Vou perder uma amiga, mas ganharei um reino e... olhei para o berço à nossa frente, talvez uma filha.

– Lella, pode me trazer um pouco de água? – pediu a rainha.

Vi a chance perfeita.

– Pode deixar que ajudo com isto – falei e mesmo Tória tentando me impedir, continuei - Quero me desculpar pelo atraso.

Ela sorriu com minha forma singela de desculpa e me permitiu ir. Lella observava intrigada. Pedi à primeira criada que vi para trazer uma jarra de água para a rainha, não estava a fim de cansar meus pés por aí fazendo um trabalho que não era meu. Quando ela chegou eu peguei a bandeja e coloquei na mesa de entrada do quarto. Peguei o vidrinho nas meias e pinguei duas gotas mortais. O vermelho se dissipou pelo líquido que ficou em sua cor normal. Segui pelo quarto real até a cama onde estava a rainha, ela e Lella estavam conversando. Tória parecia séria.

– Tudo bem, majestade? Como eu disse, aqui está.

Estendi o copo e ela o pegou.

– Obrigada, Diana, mas acho que já não tenho mais sede, aliás estou atrasada para receber os convidados. Estou apresentável?

– Está divina, majestade.

Ela despejou a água pela janela e me entregou o copo, pegou a bebê com cuidado e foi para o lado da criada que esperava na porta.

– Vamos, cara Diana.

Forcei os passos até elas. Por fora eu estava quieta, perplexa, forçando sorrisos e reverências a reis e rainhas de outros reinos, por dentro eu fervilhava de ódio. Rei Castro veio até nós. Tomou a mão da rainha e a beijou, acariciou o rosto da filha e a pegou.

– Você merece um pouco de descanso – ele disse.

– Preciso mesmo – falou ela – Lella, você está dispensada agora. A companhia de Diana me basta.

Ela voltou o seu olhar para mim e sorri, mas por algum motivo seu sorriso hesitou. Seguimos pelo salão de festas inteiro, experimentei os doces e diferentes vinhos. Estava tudo muito colorido, apesar das várias rainhas que rodavam pelo salão, Tória ainda era a que roubava todas as atenções. Ela me guiou até um canto vazio.

– Diana, por que tentou me matar? – ela foi direto ao ponto.

– Eu... não...

A rainha ergueu a mão na frente do meu rosto me impedindo de continuar.

– Lella é uma fada muito poderosa por sinal. Ela percebeu algo estranho. Na verdade, ela não gosta de você, mas eu sempre pedi para ela parar de implicar. Mas dessa vez eu não a impedi de agir, ela viu você colocando algo na minha água.

Eu pensei que todos estavam olhando para nós, porém não era o caso. Tória falava tão calmamente que seu sermão parecia apenas uma conversa. Eu buscava no meio da multidão um olhar de conforto e encontrei Verton que me deu um aceno com a cabeça.

– Me desculpe, Tória.

– Me prometa, prometa que não fará mais isso. Não vale a pena, você tem tudo o que precisa aqui.

– Não tenho um filho, nem a atenção das pessoas, elas me olham como se eu fosse uma estranha.

– Mas eu estou aqui, você faz parte desse castelo – então ela se aproximou e pegou minha mão com as suas. Meu estômago se revirou, lembrei de tudo o que Hemera me disse há muito tempo, seus desejos, seus medos, sua relação com Tória, sua morte, nossa amizade e me lembrei do porquê a rainha que se encontrava em minha frente com as mãos nas minhas despertava tanto ódio em mim, do pedaço que ela me tirou.

As luzes se apagaram, ouviram-se alguns gritos e peguei meu punhal que ainda estava comigo. Tória percebeu minha movimentação, tentou se afastar, mas eu sempre fui mais rápida. Cravei-lhe o punhal do lado esquerdo abaixo do seio. As luzes começaram a piscar, tentando acender. Ela se ajoelhou e uma mancha de sangue surgiu em seu vestido branco.

– Atacaram a rainha!!!

Senti alguém me puxar pelo braço. Verton. Não me deu tempo de falar nada, ele só me conduziu para fora. Graças a queda de luz ninguém viu muito.

– Peguem eles! Atacaram a rainha!

Não olhei para trás para ver quem gritava, mas sabia que era Levi, incapaz de perder o mínimo detalhe. Só então percebi que estávamos fugindo. Uma flecha atingiu o braço de Verton, ele parou e fez círculos no ar com as mãos, criou-se uma fumaça que nos cercou e corremos. Chegamos ao portão principal do palácio das Nuvens. Matei os guardas com meu punhal e continuamos. Verton nos teletransportou para a vila dos mercadores, a parte pobre do reino e de lá abriu um portal para irmos para casa.

***

A Cova era um lugar horrível, as nuvens sempre cobriam o sol, havia árvores e poucos animais, a não ser corvos enxeridos que viviam tagarelando. A ilha possuía uma borda circular, mar e no centro outra pequena ilha onde estava o Castelo Escuro. Bonito, porém assustador.

– Bem-vinda ao nosso lar.

Seguimos pela ponte. Assim que chegamos a lua apareceu e iluminou tudo, continuei seguindo os passos de Verton até a sala do trono. Era quase tão bonita quanto a do palácio das Nuvens. Fomos até uma mesa de vidro negro onde estavam as coroas sombrias.

Verton e eu coroamos um ao outro e sentamos em nossos tronos. Uma ventania abriu as janelas. O mundo das sombras um dia ressurgirá.

– Podia ter matado ela – ele disse pensativo.

– Me desculpe, eu queria tanto quanto você.

– Nesse momento as fadas da cura já devem ter feito o seu trabalho. Esse é o perigo de desejar ser rainha antes de saber sobre os seus inimigos.

Bufei. Eu sei que o que fiz foi idiota, mas eu não estava aguentando mais viver naquele lugar, não depois da morte da minha única e melhor amiga.

Meses depois, Verton descobriu que Diana estava grávida, porém ela se recusou a dizer como, já que era estéril. Então ele esperou que sua herdeira nascesse, e passado o período de amamentação, Verton decidiu se vingar de Diana. Com os olhos fechados ele murmurou um feitiço a ela. Sua coroa brilhou com a luz da lua. De repente, Diana sentiu algo gritar dentro de si, como se sua pele estivesse rasgando por dentro. Seu nariz começou a sangrar, sua boca, seus olhos, seus ouvidos, até debaixo da unha. Ela tentou se levantar, mas seus ossos estalaram, ela perdeu o equilíbrio, rolou a escadaria que dava aos tronos, deixando sangue pelos degraus.

Diana queria chorar, como antigamente quando machucava ou fazia algo e se arrependia depois, ela se arrependia, mas não podia chorar, pois criaturas das sombras não choravam, elas não tinham emoções. Ela se entregou às sombras há anos, sucumbiu a esse poder, mesmo amando a Luz. Sim, ela sempre foi o seu propósito. Diana olhou para a bebê dormindo tranquilamente nos braços do então rei Sombrio. Aquela pequenina, sim, teria a luz dentro de si, para sempre.

E esses foram os últimos pensamentos de Diana, proferidos baixinho entre a vida e a morte, um feitiço de proteção à filha que lhe foi dado aprendido e aperfeiçoado enquanto a própria rainha Tória as tinha proferido em silêncio durante o parto do primeiro filho.

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