CAPÍTULO 32 - SOZINHA
Continuei sentada no galho da árvore observando tudo sem querer observar. Meus olhos apenas olhavam para frente. Meu corpo não se mexia. A chuva caia sem parar. Lucas e Annie correram até o rei e a rainha. Annie chorava e acariciou o rosto machucado da mãe. Lucas verificou se o coração do pai ainda batia, apesar de tudo, ele pareceu aliviado. Ele amava o pai que lhe batia.
Observei os curandeiros chegarem, colocaram o rei e a rainha numa maca. Lucas e Annie permaneceram lado a lado em cada momento. Eu nunca saberia o que era aquilo, amor familiar. Minha mãe se foi muito cedo e eu nem sabia mais quem a havia matado. E meu pai, eu percebi que eu não o conhecia direito, ele nunca havia dito que me amava e nem demonstrado muito sentimento por mim, eu também acho que não fiz minha parte. Mas agora que ele se foi eu queria que tudo tivesse sido diferente, eu queria ter tido uma família com que se preocupar.
Senti a cabeça latejar, outras pessoas eram levadas para dentro do castelo, algumas com o corpo morto coberto. Meu vestido estava encharcado e detonado, mas não me importei, continuei imóvel até que escurecesse e a chuva parou, o céu se tornou uma noite estrelada. O bolo na garganta ainda estava constante, mas me esforcei para descer, pensei em simplesmente em me jogar, seria uma queda que me manteria na cama dormindo por um bom tempo, pelo menos. Mas desci segurando nos galhos úmidos. Caí no último, mas nem senti dor quando encontrei o chão, só o coração doía.
Caminhei sentindo a grama molhada e suja, o jardim destruído. Mantive a cabeça baixa e entrei no castelo por uma das portas laterais. Ouvi algumas vozes vindo do salão.
– O último rei Sombrio esteve na batalha e foi morto pela princesa Despina – as pessoas falavam impressionadas e no fundo, com alegria.
Continuei caminhando e enxugando o rosto que insistia em permanecer molhado. Segui até a ala hospitalar onde deixei Dy. Quando entrei estava muito mais cheia que antes, uma mistura de sangue, feridas e carne, quase não o encontrei. Luna me viu perdida e me guiou até o local.
– A princesa veio visita-lo, pediu uma ala privada para ele – ela disse.
Permaneci em silêncio.
Luna abriu as cortinas e me deixou entrar. Havia um banquinho de madeira perto da maca e me sentei.
– Se precisar de algo, me chame – ela disse e fechou as cortinas.
Peguei a mão de Dylan. Apertei com a minha e recomecei a chorar. Deixei que minhas lágrimas molhassem nossas mãos. Senti como se as comportas da tristeza tivessem se aberto dentro da minha alma. Apoiei minha testa nas mãos unidas. Eu quase perdi Dy, perdi certamente o amor de Lucas, a amizade de Annie, perdi meu pai, se é que posso chamá-lo assim. Perdi os poucos laços frívolos que eu tinha, porque eu não posso continuar fingindo, não quando me sinto tão triste e nem posso dizer o motivo.
– Selena... – ouvi ele sussurrar meu nome.
Apesar de saber que ele viveria, fiquei aliviada por vê-lo reagir.
– Dylan – apertei sua mão.
Ele tentou se mexer, mas ainda tinha dificuldade e sentia dor. Ele abriu mais os olhos e me encarou.
– Me deram tanta anestesia que estou delirando e te vendo chorar – ele disse. Acabou que chorei mais um pouco ao invés de rir da piada patética e ele percebeu que era verdade. – Caramba! O que aconteceu.
– Nada – falei para que ele se aquietasse.
– Como nada? Eu nem imaginava que você fosse capaz de chorar... aconteceu algo com Lucas? – balancei a cabeça negativamente – Ah, minha Luz, Annie...
– Ela está bem – falei. – Todos estão.
– Está assim por causa de mim? – ele perguntou. – E por causa da coroação?
– É, acho que sim – respirei fundo tentando buscar o ar que parecia não existir.
Dylan me observava enquanto eu chorava e soluçava e respirava aos tropeços. Ele acariciou minha mão com o polegar.
– Sele, não fica assim – ele falou.
– Eu, eu só queria um lugar para chorar, para quem chorar – eu expliquei.
– Pode ficar o quanto quiser. Você já me salvou muitas vezes. Se você se afogar em suas próprias lágrimas eu serei o seu salva-vidas.
Beijei sua mão junto a minha e aproximei o banquinho de modo que eu pudesse encostar minha cabeça em seu braço e as lágrimas continuaram caindo silenciosamente até que Dy pegasse no sono outra vez.
***
Caminhei de volta aos corredores. Luna me deu um remédio para me acalmar e pediu que eu ficasse bem, tentei respirar melhor, mas a dor que eu sentia pesava meu corpo e não queria passar, acho que não tem remédio que sare. Segui até o saguão da entrada a fim de subir para o meu quarto, avistei o rei, Levi e Lucas conversando.
– O livro sumiu – disse Levi.
– Não estava com Verton? – perguntou o rei.
Me senti orgulhosa de meu pai, no final de tudo conseguimos o que queríamos. Senti a força voltando aos poucos, mas ainda sim, um nó na garganta e o coração acelerado. Engoli o nó e capotei o coração, quando passei atravessando o saguão os três me encararam, o rei com um braço enfaixado e cortes feios no rosto não expressou nenhum sentimento, Levi parecia surpreso e intrigado e Lucas... ele estava triste e preocupado. Eu não queria que ele estivesse assim por mim, ou eu acabaria pensando que ele se importava.
Subi as escadas como se não desse a mínima para o que estavam falando. Quando cheguei ao andar do meu quarto ouvi passos vindos de trás de mim. Eu já pressentia até o seu caminhar, respirei fundo me preparando para ouvir sua voz.
– Selena, - ele me chamou suavemente – Onde estava?
– Na ala hospitalar – respondi de costas para ele.
Lucas se aproximou. Aguente firme.
– Você está ferida? Está bem?
– Não. Sim – respondi.
Ele se aproximou. Aguente firme, Selena.
– Eu pensei... eu... fico feliz que esteja bem – ele disse e tocou meu ombro.
Quando senti seu toque milhões de raios foram disparados pelo meu corpo e me convulsionei em um choro incessante. Ele me fez encará-lo, mas me recusei.
– Me desculpe, Sele – ele disse – Eu sinto muito.
Eu queria que ele estivesse dizendo pela morte de meu pai, mas o real motivo era quase tão doloroso quanto.
– Lucas – falei controlando o choro – Nunca daríamos certo.
Os olhos dele se inundaram e ele balançou a cabeça
– Me dói que eu não possa estar a seu lado, que eu seja simples demais para ser princesa da Luz.
– Mas você seria perfeita.
– Você não me escolheria, Lucas. Você não me escolheu me salvar no ataque e eu poderia estar morta agora – falei.
Duas lágrimas escorreram pelo seu rosto, seguidas de outras. Ele sabia que eu estava certa, ele correu, seguiu seus pais e deixou sua real vontade para trás, se é que posso acreditar que ele tinha vontade de me salvar, ou salvar qualquer outro cidadão naquele salão.
– Acredite, eu não passei um segundo sem pensar em você.
– Eu acredito – falei – Mas só acreditar não basta. Mesmo que me ame de todo o coração, suas atitudes sempre serão a de um rei. A coroa sempre estará entre nós.
Ele suspirou. Meu olhar encontrou o seu finalmente, e engoli em seco. E vi em seus olhos que eu o havia deixado ir.
– Você vai continuar aqui – ele disse.
Limpei os olhos percebendo que ele não se referia ao castelo e sim ao seu coração. Assenti e coloquei a minha mão em seu peito. Senti as batidas sobre o tecido.
– E você será um bom rei – falei.
Lucas segurou minha mão e me abraçou. Sua futura esposa havia matado meu pai, mas eu não conseguia odiá-lo e isso doía, doía mais do que qualquer machucado causado pelo amor.
***
Quando cheguei finalmente ao meu quarto, encontrei Ivy dobrando as roupas, ela se virou quando a porta bateu. Me encarou por certo tempo.
– Você poderia me dar licença, por favor? – pedi com a voz vazia.
Ela assentiu e se retirou. Me joguei na cama e afundei a cabeça no travesseiro abafando o grito. Senti o tecido fofo de plumas e algodão se molhar.
– Pai – falei entre soluços – Por que você se foi?
Não era para ser assim...
Segurei os cabelos entre os dedos e puxei. Nada saiu como o planejado. Nada! Joguei o travesseiro na escrivaninha e minha bolsa saiu. Um baque diferente ecoou pelo quarto.
Me aproximei devagar e peguei a bolsa, enfiei o braço e um livro veio a minha mão. Passei a mão pelo relevo e o título. Era o livro de feitiços. O cadeado aberto pendia do lado. Era tudo culpa disto. Desde o início, desde a morte da minha mãe. Maldito seja Hades Di Catland. Maldito seja esse livro. Coloquei-o de volta na bolsa, e a guardei.
Segui até o banheiro. Enchi a banheira de água quente. Retirei minha roupa e entrei. A água fez arder meus ferimentos. Repousei sentindo o pouco de lágrimas que me restava descer silenciosamente. Observei a água adquirir uma coloração rosada com o meu sangue e remoí na mente o momento em que Despina disparou lanças de gelo em meu pai e ele caiu, manchando a grama, manchando meu coração de gelo, inquebrável.
Olhei para água já vermelha e pensei como seria me juntar a ele, se responderia finalmente tudo que tenho para perguntar. Deixei meu corpo escorregar pela banheira, até apenas meu rosto permanecer imerso. Fechei os olhos.
– Não faça isso – ouvi uma voz melódica. Abri os olhos já emergida, me debati de susto esparramando água para fora da banheira e tossi. Olhei na direção da voz. A fada de cabelos curtos e negros olhava para mim. Meu coração acelerou. Uma fada pequena, fofa e poderosa.
– O que faz aqui? – perguntei.
A fada cruzou os braços.
– Te impedindo de fazer uma burrada – ela respondeu.
– Não estava fazendo nada. E por que se incomodaria?
– Já temos muitos mortos neste castelo, não quero mais uma.
A encarei desconfiada.
– Sabia que é feio bisbilhotar? – falei.
– Sou uma fada curiosa, bisbilhotar é a minha função.
– Bem, você já atrapalhou meu banho, dê o fora daqui.
Ela riu.
– Banho, sei. Acabei de salvar sua vida.
– Não se ache tanto, agora saia!
Ela ficou brava, mas não retrucou.
– Nossa conversa acabou, mas o fim é apenas o começo, não é?! – ela falou.
Joguei-lhe água e ela saiu voando espalhando pó dourado pelo ar. Aposto que deve ter vindo a mando da rainha, verificar se havia algo ainda suspeito no castelo, e teve a dissimulação de fingir preocupação.
Me sequei e vesti um vestido preto de algodão, calcei minha bota. Peguei minha bolsa e vasculhei o quarto em busca de livros ou outras coisas que eu havia deixado nas gavetas, o presente de Levi, que não abri, os livros e o mapa que peguei na seção secreta da biblioteca, o bilhete que Dy me deu quando vim para o castelo, o colar com uma estrela de dez pontas de Lucas e a coroa de rosas negras.
Deixei o quarto impecável antes de sair, assim como estava antes de eu chegar, até mesmo a decoração eu retirei. Sai do quarto e peguei o caminho mais vazio até o saguão de entrada. Lá estavam apenas soldados e empregados, eles me olharam sair e não tentaram me impedir. Passei pelo portão e caminhei pelo corredor de árvores, a lua iluminava o céu e folhas caíam no chão. A competição acabou, estava na hora de voltar para casa.
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