CAPÍTULO 11 - O ÓRFÃO PERDIDO
Acordei Cedo para sair logo do castelo, mas antes precisei passar na cozinha e o quarto da princesa. Ela já estava se arrumando. Parecia bem mais exausta a cada dia.
- Bom dia, Alteza. Está um belo dia, não?! - entrei dizendo.
- Sim, está minha cara - respondeu ela penteando o cabelo.
Vish... nunca vi falar tão rudemente.
- Alteza... você quer que eu fique? Você não parece muito bem...
- Não, claro que não. Hoje é seu dia de folga. Não se preocupe. Estou ótima.
Ela se levantou da penteadeira e veio até mim, apertou minhas mãos em agradecimento. As dela estavam geladas como as do irmão, me segurei para não recuar. Antes de sair do quarto, ela me entregou um saquinho de veludo com o que pareciam ser moedas de ouro. Nunca havia visto uma na vida. Me reverenciei e sai do quarto. Guardei o saquinho na bolsa que eu carregava transpassada no corpo, ajeitei meu vestido de babados, o mesmo que eu usava quando vim para o castelo, fiz um coque frouxo e segui pelos corredores. Achei estranho não ter encontrado o príncipe pelo caminho... talvez estivesse muito cansado para acordar cedo. Alguns funcionários também estavam saindo para a folga.
Finalmente sai do castelo, lembre-me do dia em que cheguei e encontrei... só me faltava essa! Lá estava ele. E ainda pior, Frank caminhava acompanhado de Margot. Ela, é claro, debochou assim que me aproximei e não deixou passar nada.
- De feirante a camponesa - disse ela me avaliando desde as botas até o cabelo.
Frank estava sério, mas me encarava com o mesmo nojo do dia em que cheguei.
- Com licença - falei passando por eles, mas Margot colocou o pé na minha frente. Cai na estrada e ralei a palma da mão na areia. Senti meu rosto em chamas. Controle-se, falei para mim mesma.
- Olhe onde pisa, garota - ela disse.
Me levantei tirando a poeira do vestido e a encarei.
- Eu sei muito bem onde piso e um dia vou ter o prazer de pisar nessa sua cara e manchar esse lindo rosto falso - falei rangendo os dentes.
Frank deu um passo a frente.
- Insolente, você sabe com quem está falando? - ele desafiou.
- É claro que sei, caso contrário não teria falado - respondi.
Margot riu.
- Deixe-a Frank - ordenou a princesa da invisibilidade.
Sai caminhando e segui o atalho que Dylan havia me mostrado. Queria chegar quanto antes à vila.
***
Abri o portão tão pequeno de madeira que qualquer bandido podia facilmente pular e que ainda rangia e bati na porta. Depois de três batidas, Johnny abriu. Ele ficou surpreso ao me ver e me puxou para um abraço, me pegando desprevenida.
- Selena, que bom ver você - ele disse ainda no abraço.
- É-É... bom ver você também, Johnny Onde está Cindy?
Ele me soltou e riu.
- Onde mais? Na feira, é claro.
Caminhei pela casa, tudo continuava o mesmo. Segui até o meu quarto e inspirei, a sensação de nostalgia tomou conta de mim inconscientemente e fechei a porta. Lavei minhas mãos na torneira do banheiro.
- Eu vou encontrar Cindy e depois visitar Dy. Volto para o jantar, tá bem? - falei e me despedi. Ele deu um aceno e sai.
Corri pelos becos estreitos da vila em direção à feira. Tanto tempo nos corredores do castelo, como não me esqueci desses caminhos?! Avistei as barraquinhas umas do lado das outras formando um corredor não muito movimentado, ao passar por ele, notei olhares curiosos na minha direção. Desacelerei o passo para ter certeza disso, as pessoas tentavam disfarçar. Cheguei a barraca de sopa seguindo seu inconfundível aroma. Cindy tinha acabado de atender um cliente.
- Selena! Que bom que está aqui! - disse Cindy tirando o avental rapidamente para me abraçar.
- Está precisando de ajuda? - perguntei.
- Não querida, digo que bom que está aqui porque senti muita saudade -ela respondeu mexendo carinhosamente no meu cabelo. Me senti estranha aquele toque - Como você está linda...
- É bom estar de volta - falei me desvencilhando suavemente - Como vão os negócios? - perguntei.
- Ah, ultimamente, bem fracos.
- Eu já imaginava, com os olhos na Eleição, não está fácil para ninguém.
Fiquei sentada na barraca tomando pirão de galinha que Cindy preparou para mim. Apesar de toda a fartura do castelo, nada substituiria a sensação e o gosto que tinha a comida de Cindy. Ajudei Cindy um pouco com a freguesia, o povo parecia que nunca tinham me visto antes e arrumavam a desculpa de comprar a sopa mais barata para isso. Cindy não parece ter reparado. Ela também estava radiante com a minha chegada, como se nunca tivesse me visto. Quando terminei de lavar as cuias, decidir ir visitar Dy, avisei a Cindy que voltaria para o jantar.
- Claro, querida. Vou fechar a barraca mais cedo e preparar uma comida deliciosa.
Voltei a caminhada, o que me ajudou muito a esquecer os últimos acontecimentos, conflitos e desconflitos com Margot, os segredos do rei, o misterioso Levi, as confissões de Lucas, sem contar sua boa vontade real, repentina e duradoira comigo, isso tudo não pode ser só porque salvei a vida de sua irmã, e pensando nela, a princesa aquática descontrolada e poderosa que quase matou a mim e Margot na batalha, a união libertadora e um possível conflito. Tantos acontecimentos que nem meu pai imaginaria que aconteceriam.
A casa de Dy ficava perto da divisa da vila com o bosque, bem longe da feira e da maioria das casas que ficavam mais amontoadas. As ruas até lá estavam vazias. Ao chegar, notei que Dy havia consertado a cerca e podado a mangueira. Abri o portão e com isso o sininho que Dy pusera nele tocou. Ele apareceu correndo na janela e quando me viu veio logo abrir a porta.
- Sele, até que enfim você se lembrou de nós.
Ri ao vê-lo sair de avental e correr pela estrada de pedras para me abraçar.
- Você chegou bem na hora, acabei de passar um café.
Dy colocou uma das mãos nas minhas costas e me guiou para dentro. A cozinha e a sala eram um cômodo só, havia quatro portas, uma dava para o quarto do Sr. Clóvis, pai de Dylan, outra para o seu quarto, outra para o banheiro, uma para a varanda, e a outra por onde acabamos de entrar. O pai de Dy estava na cadeira de rodas perante a mesa. Cumprimentei, mas ele fingiu não me ver ali. Du me disse que após o suicídio da mãe, Sr. Clóvis entrou em uma depressão profunda e nunca revelou o que levou a esposa a se matar. Ouvi-o murmurar "monstro", mas ignorei e segui até a bancada onde Dy passava o café.
- Ele continua o mesmo - falou Dy se referindo ao pai - um velho ranzinza.
Olhei de soslaio para o velho com poucos cabelos brancos na cabeça, corpo magricelo dentro de roupas de frio largas demais, o rosto demonstrava uns cem anos.
- Não fale assim, Dy.
Mas ele não me deu atenção, limpava a bancada para enfim me servir um pouco de café. Agradeci.
Enquanto eu bebia, Dy levou o pai para o quarto. As rodas da cadeira rangiam pedindo socorro por um pouco de óleo.
- Acho melhor o senhor dormir um pouco, pai - disse Dylan colocando-o na cama.
- Cuidado para não morrer - ele tentou falar alto suficiente para que eu ouvisse.
Dy cobriu-lhe e saiu do quarto. Continuei encostada na bancada.
- Tem planos para hoje? - ele me perguntou.
- Só um jantar com Cindy e Johnny, você está convidado - respondi.
Ele passou a mão pelos cabelos.
- Acho que não poderei ir, a cada dia que passa tenho que ficar mais tempo com meu pai. Vamos caçar?
Assenti. Saímos pela varanda e fomos até seu local de trabalho, onde ficavam as ferramentas de carpintaria. Era um quartinho escuro e cheio instrumentos que eu desconhecia. Ele pegou dois arcos e aljavas com flechas simples de madeira, me entregou um conjunto e adentramos no bosque.
- O que vamos caçar? - perguntei.
- Não sei, foi só uma sugestão para sair de casa - respondeu Dylan.
Dylan era um ótimo arqueiro, na verdade, o melhor que já conheci.
- Você está bem? - perguntei.
- Sim, só que... não sei o que fazer com meu pai. Você sabe, ele nunca gostou de você e depois que você apareceu naquela transmissão ele não para de falar "Eu avisei". Eu devia ter queimado aquela televisão velha.
Coloquei minha mão em seu ombro.
- Não fica se preocupando demais. Você sabe que é meu primeiro e único amigo, nunca faria algo contra você.
Continuamos andando pelo cosque, era um lugar lindo, assim como muito lugares remotos em Anelin. As árvores estavam perdendo as folhas que coloriam o chão de amarelo, laranja e marrom.
- Eu ainda sou seu único amigo? Você tem estado tão próxima de outras pessoas que pensei que tinha feito novos amigos.
- Lógico que não, ainda não cheguei a esse ponto, ainda não sei quem considerar meu amigo ou inimigo naquele lugar.
Dy parou e retirou a mochila das costas, abriu e colocou cordas e uma rede no chão. Parecia irritado com algo.
- Você protegeu tão bem a princesa e o príncipe, arriscou sua vida por eles e eles nem precisavam - disse tirando uma garrafa de água.
- Eu faria aquilo por você também, e, aliás, eu nem sei porque fiz aquilo - completei baixinho.
Ajudei-a montar a armadilha e depois seguimos para um lugar afastado. Dy estendeu uma toalha e nos sentamos, ficamos observando as árvores e ouvindo o barulho dos passos dos animais e pássaros voando no céu, então me lembrei do que trouxa na minha bolsa. Fui tirando tudo e colocando em cima da tolha. Dylan observou espantado.
- Coube tudo dentro dessa sua bolsa?
- Sim - menti. Na verdade, minha bolsa cabe tudo o que é colocado nela sem alterar seu tamanho original, mas não coloquei muita comida para Dy não desconfiar. Diferentes doces e salgadinhos estavam agora sobre a toalha.
- Sabe - comecei com a boca cheia - a única coisa boa naquele castelo é a comida.
Dy riu pegando um doce também.
- Sei, aposto que você se dá super bem com aquela tal de Margot.
- Hmmm, claro que não, ela é minha inimiga mortal, vive me humilhando, mas eu me esqueço das aulas de etiqueta, não consigo segurar minha língua e a faço ficar calada rapidamente.
- Não, você não faz isso!! - exclamou Dylan incrédulo.
- Com ela sim - falei erguendo o queixo - E às vezes com aquele tal de Frank, mas eu não o encontro muito.
Ficamos sentados, comendo e conversando por bastante tempo. Contei a ele sobre a aulas com Levi, o seu ajudante super inteligente e desastrado, a princesa descontrolada, o príncipe palerma e confuso, algumas amigas que fiz na cozinha e as metidas competidoras da Eleição.
- Pelas Luzes, quem diria que aquela princesa tão... serena, na verdade, é uma bomba relógio.
- É - disse lambendo as pontas dos dedos - parece que ela não consegue controlar muito bem os poderes.
- Você bem que poderia ajudá-la, você sabe muito de meditação - Dy sugeriu.
Dei de ombros.
De repente ouvimos gritos. Era de alguém pedindo socorro e estava próximo, Dy e eu pegamos nossos arcos e fomos na direção dos gritos. Nos deparamos com alguém preso nas redes da armadilha que montamos. Atirei uma flecha na corda que suspendia a rede. Os gritos continuaram até tirarmos a rede de cima. Vimos então uma criança, um menino parecido com Dy anos mais novo.
- Acalme-se! Está tudo bem!
O menino parou de gritar e verificou se estava bem.
- Que droga! Sem carne para o jantar hoje.
- Dylan!! - retruquei ajudando a criança a se levantar.
- Vocês que fizeram essa armadilha? - o garoto perguntou limpando as vestes.
- Sim, mas não se preocupe, a intenção era pegar um animal para o jantar de Dy. O que fazia por aqui.
- Perdi meu papai. E minha mãe já morreu, eu vivia em Algea.
Dy e eu nos entreolhamos, nunca ouvimos falar desse lugar, deveria ficar em outro reino.
- Pelo visto temos outro órfão - falou Dy enrolando a rede. O menino fez cara de quem não entendeu - É que Selena também é órfã.
Dei de ombros, ele olhou para mim e sorri.
- Qual o seu nome? - perguntei.
- Léo, mas costumam me chamar de Leozinho.
- Prazer, sou Selena e ele é o Dylan - estendi minha mão e ele apertou com a sua pequenina.
Voltamos com Leozinho até onde estávamos sentados, a criança se juntou a nós e devorou o resto da comida. Recolhemos nossas coisas. Dy não podia cuidar de Léo e do Sr. Clóvis ao mesmo tempo, Johnny e Cindy estavam trabalhando demais, eu precisava pensar no que fazer.
Ao chegarmos na casa de Dy, seu pai ainda dormir, eu o ajudei a fazer uma deliciosa sopa. Leozinho apenas observava.
- Muito obrigado, Sele. Não sei o que faria se você - Dylan disse enquanto colocava as batatas na sopa. Sorri - Apesar de tudo, esses dias no castelo te fizeram bem.
Continuei mexendo a sopa e por fim coloquei um pouco mais de sal e ervas.
Tirei o avental e o lenço.
- Hmmmm... está parecendo ótima - ele disse olhando a sopa e inspirando a fumaça que saia.
- Agora Léo e eu temos que ir - falei pegando minha bolsa.
Leozinho estava sentado na mesa, os pés pendurados balançavam. Peguei-o e o coloquei no chão.
- Você não me disse que trabalhava em um castelo - observou ele.
- É uma longa história. Te conto no caminho.
Dei um abraço em Dy e desfiz quando de repente senti algo molhando meu ombro. Ele estava chorando.
- O que houve? - perguntei.
- Senti tanto a sua falta que agora estou com medo de deixar você ir - ele respondeu e engoli em seco - Me arrependi tanto quando deixei você naquele castelo, não devia ter te levado lá, eu devia ter te sequestrado, é isso.
Sorri e o abracei novamente.
- Você sabe que eu não concordaria com isso.
Dy enxugou as lágrimas e lhe entreguei um pacotinho.
- Aqui tem o suficiente para você cuidar do seu pai e me enviar cartas de vez em quando - falei. Dylan apertou o embrulho.
- Vou lhe enviar cartas todos os dias.
Dy abriu a porta e nos acompanhou até o portão. Ficou lá bastante tempo, quando olhei para trás dei-lhe um aceno. Pela primeira vez tive vontade de ficar em um lugar que não fosse a Cova, para sempre ao lado de Dy.
- Vocês formam um belo casal - disse Leozinho de repente.
Passei-lhe a mão bagunçando-lhe os cabelos.
- Você deu sorte, teremos um belo jantar em casa hoje - fale ignorando seu comentário.
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