Capítulo Extra
16 DE JULHO DE 2021
Há uma névoa solitária e entristecida por toda a extensão de Constância. De onde estou, da minha casa no campo, perto de colinas muito bem arejadas e definidas entre um condomínio de quase luxo, consigo ver as montanhas e a serra encobertas por uma manta de neblina.
É triste, de certa forma.
Assim como o país todo está passando por um momento difícil, como a pandemia, Constância não parece nem um pouco a favor de sair do luto intenso depois do Caso.
De vez em quando eu lembro que, agora, o crime é conhecido por todas as pessoas e por toda a parte.
O Caso das Duas Irmãs ganhou as manchetes das revistas e dos jornais por semanas. Repórteres espertinhos e jornalistas sórdidos me perseguiram por meses, buscando no meu silêncio e no meu voto de respeito às vítimas, uma alternativa de descobrir algum ponto sensacionalista para complementar a história que ficaram viciados por semanas.
Ainda são, na verdade.
Não é sempre, mas costumo notar engraçadinhos nas redondezas da minha casa; procuram por algo visceral, ou talvez teatral. Como nos filmes, onde a única sobrevivente acaba por enlouquecer, buscando um pingo de paz e solidez em um terreno que outrora foi podre e grotesco.
Mas as coisas melhoraram desde que nos mudamos para o condomínio, identificado como Monte Verde. Cada casa tem espaço suficiente para seu próprio quintal espaçoso, com direito a jardim, piscina, balanços para futuras crianças e uma vista imensa do vale da cidade — e das colinas.
É aqui que costumo passar a maior parte do tempo; lendo, estudando, tomando chocolate quente debaixo de um cobertor quentinho ou esperando companhia. Gosto de receber visitas.
Nunca pensei que gostaria de abrir minha casa para conhecidos, mas a verdade é que descubro algo especial sobre mim mesma todos os dias.
É legal e chega a ser interessante.
Agora, faço o que venho fazendo há mais de três meses. Sento-me em uma poltrona que instalamos em direção ao vale, me acomodo com um livro de poemas que compramos em uma feira italiana e me preparo para ler. Ler a tarde toda, até ser interrompida.
— Você não vai acreditar — diz Enrico, aproximando-se de mim e subindo o declive da área gourmet até o espaço onde leio. — O Jorge tá vindo pra cá de novo.
Subo meu olhar; ele usa uma das poucas regatas que tem no guarda-roupa, a pele úmida pelo suor denuncia que passou tempo demais no jardim de trás, preparando um espaço minúsculo para a nossa horta. Como está de férias, Enrico é muito dedicado para serviços domésticos.
E desde que nos casamos, em dezembro passado, é fato que anda cada vez mais atencioso. Não perde um segundo das nossas vidas, nenhum.
— E tem problema? — Sorrio um pouco. — Ele sabe que é bem-vindo aqui. E Jorge... sofreu uma perda terrível.
Não me orgulho em ser tão cínica. Até hoje não sei como consegui abraçar Jorge, o irmão gêmeo de Marcelo, tão friamente. A minha tesoura de jardinagem é que esteve cravada no corpo do irmão dele e, mesmo assim, Jorge ainda quer ser meu amigo.
Nunca pensei que Jorge sequer notaria a minha presença, mas ser a única sobrevivente do Caso fez com que algumas pessoas me tratassem de uma forma diferente. Há cautela e zelo misturados com curiosidade, compaixão e uma pitada de pena que me irrita um pouquinho. Todo o mérito dos assassinatos caiu em Angelina. Ou seja, sua mente avassaladora, cruel e horrenda ainda consegue espantar as pessoas. Mesmo morta, minha irmã consegue dar um jeitinho de se sobressair.
— Todos nós sofremos perdas, Lana. — Enrico, com as mãos manchadas de terra, agacha-se perto de mim. Não ousa colocar as mãos em mim, porque não quer me sujar, mas ainda é um ato bastante doce vindo dele. — Nem posso imaginar como você... ficou. Só não acho que seja seu dever curar o Jorge. Entende?
Fecho totalmente o livro; há certas coisas que me fazem acreditar que Enrico não quer ajuda.
Quero dizer, eu passo por alguns encontros básicos no conselho de saúde mental da região. É um encontro com pessoas que viram algum tipo de vislumbre da morte e precisam de apoio uma das outras para passarem por estes tempos difíceis. Enrico, não.
Ele não fala sobre a morte de Angelina, nem a de Dário — tampouco a de Marcelo. Meu marido — isso mesmo — concentra-se em mim o tempo todo. Minha saúde, meu bem-estar e a minha felicidade jamais foram tão bem tratados. E é isto que, quem sabe, acabe me assustando.
Sempre busco em Enrico alguma parcela de que esteja mentindo. Tenho medo que ele me consuma à noite, como naquele quadro intenso de "Saturno Devorando Um Filho". Há receio de que eu seja seu banquete — sem conotação sexual por aqui. E há também a certeza de que Enrico seria a única pessoa que jamais passaria pelo doce sabor das prima-donas.
— Jorge é apenas um amigo — falo. — O irmão dele foi meu namorado por anos. Sei lá... eu o entendo.
— A sua irmã era a minha namorada também — responde, com muita calma. — E ela não teve pena de mim quando decidiu me trair com Marcelo. Você também não deveria ter.
— Não me importo com isso — digo, sendo sincera. — Eles não nos amavam e não amavam nem a si mesmos. O que poderíamos fazer além de aceitar?
Enrico tem razão, de fato.
Depois que Marcelo foi enterrado, Jorge veio se tornando um grande entusiasta do meu relacionamento com Enrico; foi ao nosso casamento, nos ajudou no auge da pandemia, auxiliou a mãe de Dário com os preparativos do funeral e me levou à algumas sessões do grupo de apoio.
É um pouco mórbido vê-lo. Preciso confessar que sua semelhança com Marcelo, às vezes, me dá calafrio. Constantemente vejo o corpo do gêmeo atrelado à uma cama, ensanguentado, com as tripas para fora e os olhos vagos. O olhar frio de um cadáver recente.
Mas então ele sorri e lembro que Marcelo está morto há mais de um ano e Jorge está vivo. É a pessoa que ficou.
— E outra coisa, combinamos de visitar o seu pai hoje à noite, lembra? — Enrico se levanta. Uma parte de mim murcha com a lembrança da tarefa. Não quero ir, apesar de saber que preciso. — Vamos levar o jantar ou cozinhar para ele?
— O que você decidir está bom para mim.
A aliança dourada no meu dedo brilha contra a luz do sol, refletida sob uma das churrasqueiras do vizinho.
Casada.
Eu sou casada com Enrico há alguns meses.
Somos um casal feliz.
Deus. Quando poderia imaginar algo parecido?
— Vamos comprar algo pronto, então — decide, sorridente. — Vou passar no mercado da família daqui a pouco e passo para te buscar. Pode ser? Às sete?
— Às sete — combino.
Enrico aproxima-se de mim, beija o topo da minha testa e pisca, retornando para dentro da nossa casa e deixando que eu volte a ler.
Me olho no espelho de corpo inteiro em dúvida.
O vestido de inverno que escolhi para a ocasião é um pouco demais. Ele é alegre, um pouco espontâneo, mas branco demais. Como se eu fosse uma jovem camponesa no campo. É complicado definir o estilo, então opto por usar meias-calças grossas e sapatos de saltos baixos.
A aroma da colônia masculina de Enrico saltita pelo quarto com força, sinalizando a vaidade evidente. Termina de abotoar alguns botões da camisa social, enquanto permanece de frente para o espelho do banheiro.
O cabelo dourado também brilha, bem saudável e lustroso.
— Tá bom assim? — Me aproximo do batente da porta. — Me sinto meio estranha.
Enrico me encara lentamente e, aos poucos, seus olhos claros vão ganhando pontinhos de luz de excitação que me deixa levemente atordoada. Ninguém nunca me olhou assim antes. Ninguém. Apenas ele, quando nos conhecemos ainda na adolescência e nos tornamos amigos.
Bom saber que o mesmo olhar cálido, inocente e admirador continua.
Me sinto bem.
Me sinto bonita.
— Tá ótima, Lana — define, sorrindo bem grande para mim. Enrico aproxima-se, ainda sem terminar de abotoar a camisa e segura-me pelos ombros. — E não precisa se arrumar muito, não. Se conheço o seu pai, ele nem vai reparar na gente.
— Ótimo, então.
Enrico abaixa-se um pouco para me beijar e meu estômago sofre um salto. É sempre assim.
Desde que descobri que sou atraente, sempre acho que estou participando de uma pegadinha. Que ele vai rir na minha cara e dizer "Acha mesmo que estou com você porque te amo?". Constantemente vivo em alerta, com os ouvidos bem atentos e os olhos bem abertos.
Mas sempre que Enrico me beija, tenho a certeza de que gosta de mim. Que sempre gostou e que sempre gostará.
— Vamos — apresso, depois do beijo. — Não quero atrasar.
Ele sorri, compreensivo e toca na minha mão, no exato ponto em que o anel dourado da nossa união está.
Faz pouco mais de duas semanas que meu pai foi encontrado.
Depois que Angelina morreu, a cidade foi tomada por uma onda de incredibilidade reconfortante. Foi muito gostoso assistir cada pessoa que conheço tornar-se desconfiada, fria e cética com o mundo. Se uma santa como Angelina foi capaz de matar a si mesma e a dois caras incríveis, quem dirá, o resto das pessoas?
Os habitantes passaram a me tratar como patrimônio público. Recebi dezenas de presentes, estes que precisei doar se quisesse um pouco de espaço em casa. Além de dinheiro e apoio médico.
Ninguém fala mais sobre ela.
A não ser... ele.
A casa do meu pai agora é uma pequena construção na área rural de Constância, supervisionada por um caseiro bêbado que adora viver em botecos pé de estrada. Mas o caseiro é o único amigo do meu pai que restou. Nem os apoiadores da floricultura sobreviverem.
Nossa antiga casa foi vendida e a sorveteria não vingou.
Minha madrasta desapareceu; depois do sepultamento solitário de Angelina, a mãe dela não aguentou toda a pressão de despedir-se da única filha. Pegou alguns trocados na conta e sumiu no mundo. Não temos notícias há meses.
E, no fundo, meu pai quer assim.
A entrada da sua nova casa é cuidada por flores amarelinhas que o caseiro faz questão de cultivar. É uma casa boa, por assim dizer. Grande, de cinco quartos. Cozinha industrial e um seleiro aos fundos onde pode passar um tempinho exercitando a mente.
O que não funciona.
Com a pouca supervisão de Flávio, o caseiro, meu pai vez ou outra desaparece. Na primeira vez, pensei que nunca mais fosse vê-lo; foi encontrado cinco semanas depois, perto de um viaduto da cidade. No aniversário de casamento com a minha madrasta, apareceu misteriosamente em São Paulo.
Não compareceu ao meu casamento e, a última vez que o encontramos, foi na rodoviária da cidade. Podre de bêbado, sem os sentidos recorrentes e muito violento. Isso só acontece quando bebe.
Ou seja, sempre.
Aliás, ele agora tem o costume de me chamar de...
— Angelina?
Minhas costas retesam com o timbre daquela voz soar com aquele nome maldito. Retiro a máscara de proteção contra a COVID-19 do rosto e tento sorrir, mesmo tendo vontade de sair correndo o quanto antes.
Uma mão quente pousa na minha lombar e sinto Enrico projetar-se ao meu lado, bem acolhedor. Ele ainda está de máscara, mas pela forma que seus olhos se apertam, posso imaginar que esteja sorrindo.
Fora do carro, posso entender porque odeio tanto visitar o meu pai. O ar gélido de sua nova residência me deixa sem ar.
— Não, pai — respondo, olhando para sua figura enevoada sentada no terraço. — Sou eu. A Alana, lembra?
— Alana — repete, um pouco decepcionado. — Sim, sim. Minha filha. Oi.
Ele nem se dá ao trabalho de levantar-se da cadeira de balanço e, assim que descobre que não sou Angelina, mal consegue me encarar.
Enrico sobe as sobrancelhas como quem diz "Vamos lá, você consegue!".
E sorrio de volta. Porque sim, eu consigo.
Subo os degraus que ligam o terraço à porta principal; a madeira range abaixo de meus pés e a casa me recebe, horripilante como sempre. A maioria dos cômodos não é decorado, meu pai mal se deu ao trabalho de pensar em algo. É tudo muito deprimente, solitário e amargo.
— Viemos jantar. — Enrico, sempre muito paciente, puxa assunto. — Trouxemos pão, frango... arroz e feijão tropeiro.
— Parece bom — resmunga.
Enrico faz que sim com a cabeça e se prepara para pegar tudo do nosso porta-malas. Descarrega tudo sozinho, sem pedir a minha ajuda ou a dele.
Sigo em frente na cozinha, reparando como a casa é preparada para receber a presença dela. Quando está embriagado, meu pai constantemente pensa que Angelina retornará. Não pensa na minha madrasta, pensa em sua filha perfeita.
Talvez pense em Angelina passando pela porta e o abraçando, falando que os momentos de escuridão foram apenas meros pesadelos e que pode finalmente fechar os olhos e descansar, pronto para desfrutar do verdadeiro sonho.
É uma pena que a narrativa seja outra.
Na sala de jantar, há uma mesa decorada com pratos e talheres. E um jarro com um buquê generoso de prima-donas azuis.
A flor dela.
Ela está aqui.
Querendo ou não.
— Flávio que fez. — Meu pai diz, arrastando-se para dentro da casa. — A decoração da mesa.
— Ele vem? — Mudo de assunto. — O Flávio. Ele vem pra jantar?
— Não.
— Tá com fome, pai?
— Não.
— Quer algo?
— Não.
Ele nunca teve coragem de me encarar dentro dos olhos, talvez tenha medo da figura diabólica que encontre em mim.
E, sendo franca, é até um pouco divertido ser evitada.
— Mesmo assim, tem frango, pai — digo, ansiosa para começar a comer e ir pra casa. Não aguento um segundo aqui. — Vem comer.
— Pode ficar à vontade... — diz. — Alana. — Meu nome é chumbo em sua garganta. — Vou pro meu quarto.
Meu pai entra na pequena adega abaixo da escada e retira uma garrafa de vodca de sua coleção, faz um meio sorriso para Enrico e segue caminho pelo corredor, trancando-se.
Meu marido encara-me com as sobrancelhas erguidas, me lança um sorriso de compaixão e tenta fazer com que o jantar renda.
**
O frango não desceu bem; minha barriga revira-se com fervor e sou obrigada a virar-me no sofá, suando muito. O tecido do vestido está grudado nas minhas costas, abraçando-me de um jeito intruso e invasivo que me deixa frustrada e irritada.
A chuva de verão que nos pegou desprevenidos me deixa ainda mais estressada, porque quero ir para casa. Mas não posso, porque estou presa aqui.
Na casa do meu pai.
A pequena TV chia, anunciando que um dos filmes da madrugada vai começar. A música habitual do programa me enche de calafrio, a sensação de solidão, tristeza e perigo me assola apenas por ouvir um dos jingles mais horrorosos de toda a história televisa.
Em cima da mesa de jantar, os pratos sujos de frango e arroz cheiram mal pelo tempo que passaram ali, à deriva. O corredor escuro é apenas um extensor da chuva traiçoeira e o jarro de prima-donas é heroicamente iluminado pela única frecha de luz orgânica do ambiente.
Um pouco zonza e fraca, me coloco a caminhar em direção à mesa. Enrico e eu comemos sozinhos e depois do fiasco que fora nosso jantar, ele sugeriu que dormíssemos um pouco até a chuva passar.
Mas não o encontro perto de mim.
Recolho os pratos e coloco na pia, acendendo a luz da cozinha. Da janela, retiro o embaçado do vidro com a mão; Enrico está na estufa do meu pai, ao lado do seleiro. Daqui consigo ver que está lendo um dos livros sobre hortas do meu pai, da época que ainda conseguia produzir algo. Pelo barulho, posso imaginar que esteja escutando música de um rádio a pilha.
Enrico repara que está sendo observado e consegue encontrar o meu olhar. Ele sorri de maneira charmosa, confiante. Meu corpo todo aquece e sinto vontade de correr até lá, mesmo com a chance de me molhar.
Fazer sexo no ambiente de trabalho do meu pai parece uma ótima vingança, mas, pelo frango na minha barriga, desisto da ideia.
Enrico pensa o mesmo, porque faz um sinal de "Vem cá" com as mãos que me atiçam a repensar. No entanto, faço que não.
Ao lado dele, de Enrico, encontro uma planta alta e grande. Com símbolos vermelhos.
O relâmpago que ilumina a clareira entre a casa e a estufa, revela que a planta esconde uma pessoa.
É Dário.
Ele sorri para mim, pomposo e gentil.
Mas o trovão que estremece os meus pés é acompanhado de um resmungo, um prato quebrado e um vislumbre interessante de que Dário sumiu.
Minhas mortes não me perseguem. Angelina é apenas um efeito colateral, algo inevitável. Marcelo é esquecido, mas lembrado a cada vez que vejo Jorge.
Mas é Dário a minha real maldição.
Ele aparece de vez em quando na minha mente, lembrando o que eu fiz e me supervisionando. Ele desaparece também, sempre com bastante rapidez.
No dia que eu morrer, Dário estará me esperando.
E nesse dia, acertaremos as contas.
— Nossa — resmungo baixo —, que susto, pai!
O prato sendo quebrado veio de Paulo Castro, logo atrás de mim.
Meu pai não me responde, apenas apoia-se na segunda pia, logo ao lado da qual estou, prestes a vomitar. Só para garantir, olho para estufa, para ter certeza de que Dário não está lá. E não está.
Minha mente recriou minha sina mais uma vez.
— Você é tão parecida com ela, Alana — choraminga, esperando a bile escalar a garganta e finalmente despejar toda a comida da barriga logo ao lado. — Eu te vejo e automaticamente vejo ela.
Há certas coisas que Angelina jamais me vencerá.
Uma delas, é esse amor e fascínio que depositou em cada pessoa que conheço. Apesar de ser conhecida como um símbolo assassino e nada misericordioso, é impossível negar que Angelina não os marcou.
— Sou a Alana.
— Eu sei.
— Mas você é mais parecida do que pensa — lamenta.
— Não sei. Acho que não concordo.
— Não precisa...
— Quer comer alguma coisa? — imploro para que ele mude o foco. — Sobrou muita coisa...
— Angelina.
— Não, pai! — Perco a paciência. — Sou a Alana!
Outro estrondo quase me faz pular para trás, mas é apenas Enrico de volta. Molhado inteiramente, com os cabelos perto dos olhos. De relance, percebo que a estufa foi abandonada e seus luzes foram apagadas. Nem sinal do rádio e do livro de leitura.
— Que chuva, hein, Seu Paulo. — Enrico fala alegre. — Tá foda lá fora... usei... um dos seus livros. Espero que não se importe...
A frase de Enrico vai abaixando, até não dizer mais nada e interromper a fala pela metade. O clima tenso continua, pois meu pai ainda me encara como se não acreditasse em mim.
Paulo escaneia o meu rosto com seriedade, duvidando da minha identidade. Seu ímpeto mais selvagem deseja que eu seja Angelina, reenvidando uma fantasia nojenta de dupla identidade.
Subo as sobrancelhas lentamente. Prefiro que ele se vomite e vá dormir. É praticamente um xingamento um me chamar de Angelina.
— Mesmo que você seja a Alana — continua. — Ainda prefiro a Angelina.
A frase não me atinge como deveria. Sinto vontade de sorrir e cantar "Ela está morta", mas prefiro o papel de jovem esposa emocionada e sensível, porque finjo fraquejar.
Enrico me pega pelos cotovelos, preocupado.
— Tá tudo bem? — Aflito, meu marido me sustenta. — Lana, meu Deus...
Assisto Enrico olhar para o meu pai, procurando ajuda. Mas não recebe nada em troca. Paulo me encara desejando o meu fim, almejando o que estou fingindo sentir finalmente se realize.
— Não retiro o que disse — emenda meu pai. — Prefiro Angelina!
Enrico força meu corpo para cima e me acalenta, caminhando vagorosamente pelo corredor. Vira na primeira porta à direita e abre passagem pelo quarto de hóspedes que Flávio arrumou para nós. Meu marido fecha a porta e me coloca sentada na cama de colchão mole e corpulento, quase fétido.
— Me desculpa — pede. — Eu que insisti para virmos.
— Ele é um babaca. — Me deito na cama de barriga para cima. — É isso o que ele é.
— Desculpa — repete. — Desculpa, Lana. O seu pai não quer ajuda e vive... te tratando mal. Meu Deus. Me desculpa, eu que pedi para virmos!
— E ia preferir ver o Jorge? — brinco, deixando que retire meus sapatos e me cubra até metade da barriga. Estou pronta para dormir. — Ver o gêmeo vivo do meu ex-namorado não seria melhor.
Ele consegue rir um pouco, surpreso por encontrar graça em uma piada tão pesada.
— Não prefiro nada — diz. — Prefiro que você tenha paz.
— Me promete uma coisa? — pergunto, de imediato. Muito sonolenta para pensar em mais nada.
— O quê?
— Não quero ver mais o meu pai, Enrico — digo. — Gostaria que respeitasse isso, por favor.
Desde que o conheci, Enrico é um cara família. Deixou o próprio relacionamento com a minha irmã esfriar para tratar do supermercado da família de perto. Fazia provas e deveres de casa da faculdade em finais de semana, apenas para ter tempo de ver o pai e a mãe. É um cara centrado e amoroso que com certeza não entenderá o que é uma família desestruturada.
E a minha é assim muito antes da morte de Angelina.
— Claro — diz, com pesar. — Vou te respeitar. É o que eu deveria ter feito antes.
Assinto com a cabeça, me afundando nos péssimos travesseiros.
— Vou dormir — aviso. — Quero ir pra casa, mas estou cansada.
— Isso, dorme. — Enrico beija a minha testa e, logo em seguida, a minha bochecha. — Vou tomar banho e depois dormir também. Vamos embora pela manhã.
Confirmo com o queixo antes de deixar o sono vir e precisar enfrentar o vale de sonhos desconexos que sempre tenho.
É sempre uma aventura fechar os olhos.
**
Acordo ansiosa para ir pra casa.
Para a minha colina de névoa, para o meu círculo recluso, para o condomínio onde todos usam máscaras e injetam álcool em gel nas veias. Quero ler, quero voltar para minhas flores e hortas. Quero responder às mensagens de Jorge e ser uma esposa discreta e reservada.
Nada de pais.
Nada.
Arrumo minhas poucas coisas ao despertar e coloco meus sapatos. Enrico não está na cama de casal quando acordo, mas não me importo. Isso é um claro sinal de que estamos de partida o quanto antes. No corredor, ouço os passos apressados do meu marido na cozinha.
A porta principal está aberta e ele descarrega alguns itens da geladeira do meu pai; como carnes que logo venceram, caixas de leite em desuso e sucos naturais que perderão o valor em breve. Assisto nosso carro sendo carregado e sorrio sempre que Enrico passa por mim.
Quando está pronto, entro no carro sem olhar para trás e sem buscar meu pai para me despedir. Não quero olhar na cara de Paulo e espero que ontem seja a última a vez que tive que ficar no mesmo recinto que ele.
Chega.
Há certas coisas que não preciso mais passar.
Enrico respeita o meu silêncio e, no meio da estrada de volta para Constância, decido agradecer.
— Obrigada, ok? — digo. — Por ter tentado.
— Ainda me sinto mal — responde, de olho na estrada. Enrico usa as mesmas roupas de ontem, igual a mim. — Você passou por merda demais para precisar ouvir tanta besteira.
— Estou acostumada. — Pouso a mão em sua perna. — Sem brincadeira, estou acostumada.
— É... mas não deveria.
Termino o assunto com um acenar de cabeça.
O que posso fazer agora além de curtir?
A filha favorita dele foi morta e nem toda a bebida do mundo poderá trazê-la de volta. Paulo está condenado para sempre, já é o suficiente.
— Está melhor?
— Sim. O frango estava péssimo, mas estou bem melhor.
— Que bom — emenda —, não vamos precisar ver seu pai novamente.
— Sim. Por favor.
Há uma longa pausa até que Enrico ressoa:
— Então... — Enrico sorri. — De nada.
Acho graça em sua fala e olho para o meu marido, sorrindo mesmo sem entender a piada.
Então, olho para ele. Olho para suas olheiras, para seus dedos machucados, para sua camisa social amassada e o cabelo levemente desfiado.
Tudo, o conjunto da obra, me surpreende.
— Enrico?
— Sobrou algumas no banco de trás — avisa. — Quer plantar lá em casa? No jardim? Ao lado das velhas?
Pisco, atordoada.
Por cima dos ombros e do banco, olho para os bancos de trás. Há pétalas de prima-donas no couro do assento, além de caules desmembrados e sementes salpicadas pelos tapetes de veludo. O buquê não é perfeito, mas consigo vislumbrar que existia algo bem bonito. Especialmente, porque eram as prima-donas do jarro que meu pai tinha na mesa de jantar.
As flores que separou para Angelina.
— Enrico?
Pela maneira que as flores foram destruídas, significa que foram utilizadas. Seja para antídotos ou venenos.
— Você disse que não queria mais ver o seu pai de novo — relembra. — Né?
— É.
— Bom... não precisamos mais lidar com ele, então.
— Mas...
— Eu aprendi muita botânica com você, Lana. — Enrico coloca a mão na minha perna, atencioso. — E serviu para muita coisa.
— É que...
— Ninguém vai desconfiar — promete. — Seu pai fugia muito. Era um homem fadado a um fim trágico. É um descanso para essa comunidade não termos mais Paulo por perto. Ninguém se dará conta dele... é um alívio, não acha? Não precisarmos mais rodar a cidade atrás dele?
— Vão pensar que ele fugiu de novo?
— Isso.
Dirigindo.
Meu marido está me contando que matou meu pai enquanto dirige.
Por alguns segundos, Enrico me encara de volta. Então, bem ali, no vale do azul de seus olhos, perto das camadas angelicais que todos admiram desde a adolescência, vejo que ele sabe.
Ele sabe sobre as prima-donas, sobre o que aconteceu de verdade na chácara, sobre Angelina, sobre meus pais. Sobre mim.
Enrico simplesmente sabe.
Especialmente que fomos feitos um para outro.
E, então, eu sei também. Ele sempre esteve lá.
Namorando a minha irmã, estando na minha casa, aparecendo sempre que eu precisava. Ele foi a pessoa que deitei a minha cabeça quando tudo aconteceu, a primeira que veio ao meu socorro. A primeira que pensei em pedir ajuda.
A única pessoa que acreditaria em mim.
A única que largaria tudo para me ver.
A única.
E não há como esconder nada dele, Enrico me conhece como eu sou.
Ele sempre gostou de mim primeiro.
Aos poucos, vou abrindo um sorriso surpreso. Apenas um olho meu pisca, surpresa demais para falar. Atônita, só consigo deixar que o sorriso cresça mais e mais, até meu rosto todo arder em felicidade em saber que não sou diferente da pessoa que escolhi passar o resto da minha vida.
Nossas alianças douradas se completam e tudo o que Enrico fez foi para chegar, ficar e estar perto de mim. O tempo todo.
Era preciso que Marcelo e Angelina se envolvessem da maneira prática e consensual que estavam vivendo.
Como Enrico me consolaria caso não estivesse sofrendo?
Ele balança minha perna, contente em receber meu sorriso agradecido como resposta.
— Então... — falo. — Você está bem?
Enrico suspira, o instinto suave e tranquilo ganhando forma. A estrada à frente ganha cada vez mais espaço, estamos prestes a nos esconder em nosso refúgio; nossa tão amada casa. Acho que nunca senti tanto tesão em alguém antes.
— Melhor agora.
E, como toda a certeza do mundo, sei que fiz uma boa escolha ao ter me casado com Enrico.
Não é preciso de mais explicações.
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