Pretérito Imperfeito
Detesto me sentir entediado.
Sim, eu sei, para alguém que perdeu a mãe há três semanas, não deveria ser esse seu principal sentimento. Mas o que posso fazer?
Seguro esta caneta justamente para não me encobrir nesta amargura que as últimas semanas me têm trazido... Bem, ou que ao menos me trazia.
E que caneta bela é esta!
Sua tinta é preta, escura como uma obsidiana. A base é macia e acomoda os dedos como um véu de seda nobre. É leve e gira na mão com a destreza de um lápis. Posso escrever o dia inteiro, não me cansarei.
Talvez seja isso que o doutor Martell espera que eu faça para tentar superar a fatalidade que me ocorreu.
Sim, exatamente, a família Patton, com toda a sua enorme fortuna, poder, influência e cleptocracia, não puderam livrar a senhorita Amélia Patton de sua aflição terminal. E agora, semanas depois, restou na grande mansão um vazio imensurável. O filho caçula, Alexis, não teria mais companhia para o desjejum antes de ir para a escola, o mais velho não receberia os elogios de sempre pelas boas notas nos trabalhos de arte e quanto a mim, bem... Me restou as visitas do doutor Martell... Ah, e esta caneta.
Mas diferente disto, não gosto dele.
Ele é o tipo de pessoa que pensa que, de alguma forma, te conhece. Ele acha que sabe do que eu preciso, do que eu quero. A princípio, se o doutor Martell realmente me conhecesse em meu cerne, ele trataria de me deixar ocupado o suficiente.
Como Amélia deixava.
Ela cativava a todos e o buraco que restou é incalculavelmente silencioso. Alexis disse que é asfixiante. Meu irmão mais velho sequer consegue mencioná-la numa conversa sem estremecer os lábios. Mas olhando numa perspectiva geral, dentre todos seus filhos, àquele que arrebatou com maior lamúria sua ausência foi Pretérito, filho do meio. As incontáveis horas que passavam juntos, as conversas, chás e gargalhadas que entoavam em sintonia serviam como testemunhas. Pretérito não era só o filho mais próximo, como também o preferido.
Não é surpresa que isso arrancasse uma fagulha de ciúmes dos demais filhos. Na mansão Patton, ninguém além de Amélia dispunha de uma boa relação com Pretérito... Tudo bem, talvez eu esteja pesando minhas palavras, já que de alguma forma, estamos ligados umbilicalmente, nascemos da mesma placenta afinal. Embora hoje em dia estejamos mais afastados do que nunca.
Mas de grosso modo, no final, não sobrava ninguém que tinha Pretérito como próximo, sequer como parente.
É claro, isso não acontecia só por ciúmes. Havia algo nele, uma expressão insondável tracejada no contorno de seus olhos que fazia até o mais velho dos nossos irmãos se enjoar com a própria bile. Ninguém se arriscava permanecer a sós com o tal cartoleiro sinistro. Sim, só sua forma de se vestir já parecia entregar uma maldição encarnada.
Mas que raios... Por que comecei a falar de Pretérito?
Bem, não importa. Eu sei onde isso vai dar.
Sim, no dia em que as pupilas de Amélia ficariam horrorizadas se ainda ardessem em vida. Há dois dias, na véspera do Dia dos Mortos.
Quem dera Amélia não tivesse partido.
...
Lembro-me de acordar cedo, antes mesmo do sol despontar.
Além de levantar embrulhado numa camada espessa e pesada de tédio, daquelas que enrosca os ombros para baixo e rouba qualquer centelha de vigor, também me incomodava meu quarto estar bagunçado. Pretendia ir na Feira de Outono naquela manhã, então só o ajeitei o quanto pude, o que já deveria facilitar o trabalho da arrumadeira. No final, ela só teria que dar um jeito no cheiro de café amanhecido que se impregnou, nos retalhos de papel e na terra sobre o tapete.
Não tenho o que contar da feira, talvez outros tenham mas eu não.
Já no almoço, os Patton estavam todos juntos em volta da mesa redonda, servidos por porções de peixe, arroz e abóboras cozidas.
Era tudo intragável.
Não o gosto da comida. Mas enfiar um garfo na boca em meio a um ambiente tão lastimável e soturno. Dez minutos se passaram e não haviam pratos vazios na mesa — com exceção do prato de Pretérito, é claro, que não parecia ter se incomodado com aquilo, com o embaraço dos olhares ou com o gosto amargo da casca da abóbora.
Então, em meio a esse fulgor de olhares sobre o irmão do meio, o mais velho dos Patton mexeu sua língua.
— Estive na feira de outono. — disse. Mas ainda parecia estar em dúvida se deveria continuar. — Encontrei umas coisas bem bizarras que estavam à venda.
Era o tipo de coisa que ele falaria. Desde antes da morte de Amélia, o mais velho era um exímio amante do sobrenatural. Há meses ele planejava visitar com os amigos um famoso cemitério na cidade vizinha durante a véspera do Dia dos Mortos. Só que nessas duas últimas semanas, nada tem sido tão divertido mais.
Ele enfiou sua mão no bolso da jaqueta e colocou sobre a mesa um pedaço de papel. Estava amarelado, rasgado nos cantos e cheirava a bolor. Mas não parecia qualquer coisa, tinha um desenho nele. Traços milimétricos, feitos à régua e compasso.
— É uma... Planta? — questionou o Sr. Patton, o pai da família.
— É a planta da Mansão Truman.
O caçula parecia confuso.
— É aquela mansão da Avenida 92? — perguntou Alexis.
— Sim, a mesma.
— E o que tem de especial?
— Você não conhece a história? Dizem que uma família de mafiosos vivia por lá e, antes de serem presos, esconderam toda a fortuna em algum lugar da mansão. Até hoje não encontraram.
— Então é um mapa do tesouro! — o olhar de Alexis mudou.
— Eu chamei o Will e os outros. Nós vamos lá amanhã procurar pelo tesouro, quer vir com a gente?
Alexis encarou seu pai como um pedinte. Este, por sua vez, lhe acenou com a cabeça positivamente.
— Invadir uma mansão abandonada não vai matar ninguém. Um pouco de rebeldia não faz mal de vez em quando. — foi a resposta dele. Realmente, não parecia insensato espairecer um pouco depois de uma tragédia tão marcante. Contudo, ele concluiu: — Mas só podem ir desde que todos vão. — Era uma tentativa de incluir Pretérito? Sinceramente, eu duvido. Talvez o intuito fosse de vigiá-lo.
Os lábios finos e sem cor do irmão mais velho se estreitaram com a ideia. Ele encarou Pretérito de cima a baixo, analisando-o como se procurasse um motivo válido para contestar seu pai. Uma pestilência, uma falta de incumbência... Um mal agouro. Nada. E deste modo, ele encarou os olhos profundamente azuis de Pretérito e lhe perguntou:
— E então? Você vai?
O outro, no entanto, estava com o rosto abaixado, concentrado em cortar com uma faca de carne um dos poucos pedaços de abóbora que restavam no prato. — ele só comia com facas de carne
— Sabia que mesmo que a chamemos de legume, do ponto de vista botânico a abóbora é uma fruta? Botanicamente falando, um fruto é a parte de uma planta que se desenvolve a partir da flor e contém as sementes. Assim, as abóboras se encaixam nessa definição porque crescem a partir das flores das plantas de abóbora e contêm sementes em seu interior. — ele mastigou aquela abóbora como se fosse a última abóbora que pudesse saborear pelo resto de sua vida.
— Você adora isso, não é? Adora chamar a atenção para você.
— Mas eu estou falando de abóboras. A propósito — ele mastigou de novo —, vocês deveriam comer mais abóboras. As do jardim já estão estragando.
— Você vai com a gente? Me responda!
Pretérito sorriu. Não, ele não precisava responder.
É claro que ia.
...
De um certo modo, acho que até entendo o medo que as pessoas tem pelo sobrenatural. Tudo o que não pode ser visto ou explicado sempre gerou pavor na humanidade e isso ficou arraigado no âmago de nossa espécie desde as agônicas primaveras de nossa existência. É claro, algumas pessoas parecem bem mais evoluídas do que outras neste sentido, mas no geral, a maioria tem esse instinto primitivo enraizado no DNA. O que me faz ponderar as vezes, qual é a linha que nos separa do ápice da racionalidade e do primata assustado?
Bem, talvez podemos descer um pouco mais para baixo nessa escala. Chimpanzés se sentiriam menos assustados do que aquele grupo de crianças na frente da Mansão Truman.
Estávamos num bando de oito, no total. Nós os irmãos Patton e os amigos de meu irmão mais velho.
Cada um trazia consigo uma mochila com água, salgadinhos, bolachas, uma blusa extra caso esfriasse e walkie-talkies — podíamos usar nossos celulares, mas Alexis queria manter um clima de exploração igual nos filmes. — Além disso, nosso pai confiou ao mais velho uma calibre 38, já que corríamos o risco de encontrar todo tipo de pessoa por lá.
Assim que escureceu e houve a troca de guarda na guarita, nós entramos.
A mansão, por mais que tivesse um certo nível de vigilância ao redor do portão principal, não havia sequer um lampejo de luz no interior. Um breu denso quase palpável lhe cobria a partir do jardim e seguia ainda mais denso e melancólico até o casarão. Ligamos nossas lanternas. Isso ajudou a evitar cair nos buracos do jardim e a espantar uma cobra escondida entre os troncos podres de uma amoreira. Escutamos aquele apito dissonante que as cigarras fazem e o canto de uma coruja ao fundo. Senti um cheiro forte de urina num determinado momento, ainda tenho dúvidas se o odor realmente veio do jardim. Caminhamos por uma trilha de pedras brancas cobertas por musgos e desgastadas. Passamos por uma fonte de mármore quebrada e depois por longas fileiras de vasos e esculturas estilhaçadas.
Ao longo do percurso, começamos a ponderar as histórias macabras que recobrem a mansão. Aquelas que envolviam as mortes desde sua construção, até as mais entorpecentes lendas sobre moradores que matavam moradores, empregados que matavam moradores, moradores que matavam empregados que matavam moradores... No final, tudo girava em torno de sangue, portas batendo, gritos e lamúrias ressoando pelos cantos vazios e vultos aterradores se formando nos recônditos cômodos da casa. Até que finalmente, chegamos na faixada da mansão.
Em seus tempos augustos, deveria ser o prédio mais belo de toda a cidade. Não, na verdade, dizer que ele seria o mais belo de todo o país já seria um eufemismo. De qualquer forma, agora seus quatro andares de janelas estão retorcidos, empoeirados e quebrados. Duas das seis colunas clássicas que seguram a sacada acima da porta de entrada estão partidas ao meio. Só tenho conhecimento que sua parede era num tom de bege porque estudei as estruturas desta mansão há tempos, hoje, só se vê o gesso e quase nem isso por conta do breu da noite e da palidez do dia.
Por ser o mais novo, todos esperavam que fosse Alexis quem estivesse mais assustado. Mas não era o que parecia. Assim como eu, ele estava impressionado. De alguma forma, acho que até conseguia admirar a mansão, ainda que com todas suas máculas.
— O que aconteceu para ela chegar nesse estado? — perguntou o garoto
— Se eu não me engano o banco é dono dela agora. — respondeu um dos amigos do nosso irmão mais velho. — Parece que eles querem demolir e construir um shopping. Pelo menos foi o que escutei.
— Mas isso eu escuto faz tempo. — contestou o outro amigo — Por que não demoliram ainda?
— Então, eu ouvi uma vez que enquanto estavam escavando a parte de trás encontraram ossos de pessoas. Falam que o pessoal da máfia que enterrou essas pessoas aqui. Daí a polícia interditou. Mas sei lá se é verdade.
— Se fosse a gente iria encontrar a polícia aqui, idiota.
De fato, existem muitas histórias. Nenhuma delas é verdade. É fácil acreditar no que mais lhe convém, o difícil é se esforçar para procurar os fatos. Eu estava entediado e aceitei o desafio. Enquanto bisbilhotava um fórum qualquer na internet, encontrei não só as informações sobre os antigos proprietários da Mansão Truman, como também a planta e sua escritura. Um usuário que tem tantas informações deveria saber o que aconteceu com a mansão. E não deu outra. Aparentemente o prédio havia sido tombado e o governo, incompetente como é, logicamente não estava preocupado em reformá-lo. Na verdade, nem mesmo registraram o tombamento no seu site, só havia a informação do processo na biblioteca da Secretaria da Educação.
Eu acho que se as pessoas devem ter medo de alguma coisa, não deveria ser de fantasmas ou espíritos, mas do governo.
Abrimos a porta, por um instante até pensamos que ela ia se soltar do quadro. Assim que apontamos nossa lanterna para a entrada, vimos ratos fugindo desesperados de um lado para o outro. O cômodo de entrada era basicamente um longo salão com uma escada ao centro, oito portas a esquerda e oito a direita. Sinceramente, ainda que eu goste desse tipo de arquitetura, esse excesso de cômodos incomoda demais.
— São oito portas em cada lado. — a voz de Pretérito surgiu detrás de todos como um sopro de vento — Podemos explorar um lado por vez e cada um pode ir em uma porta. Assim poupamos tempo. Lembrando que ainda tem o andar de cima e o porão, então vamos ficar provavelmente a noite inteira aqui.
Por mais que do alto de seu mirante o mais velho odiasse admitir, ele sabia que era uma boa sugestão. Mas ninguém queria se separar, embora soubessem que nunca encontrariam o tesouro se ficassem todos juntos, então foi combinado uma bonificação de 10% a mais da repartição do tesouro para quem o encontrasse primeiro.
Eu logo desisti de participar disso.
Não, não tenho medo de fantasmas, ou essas coisas. Acontece que eu não estava suportando meu tédio e ver o quão grande e largo era cada cômodo foi o cumulo. No final, esse tédio não iria passar se eu saísse para brincar de procurar um tesouro que nem existe.
Resolvi bisbilhotar os outros.
É fascinante ver como as pessoas agem quando estão sozinhas. Principalmente se ali elas estão defrontando seus medos. É quase como estudar biologia, estudar a liberação de adrenalina nas pessoas.
Meu irmão mais velho, por exemplo, parecia que já estava prestes a liberar esse hormônio. Dava para ver pelas suas pupilas, seus pelos arrepiados e aquele olhar em alerta. Ele não me notou, mas acho que teve aquela sensação que todos tem quando são observados, principalmente de maneira tão incisiva.
Alexis também estava tenso. É compreensível. Mas creio que sua preocupação de fato era em esbarrar as mãos numa aranha, não em espíritos. Sua atenção estava exageradamente presa nos cantos e bordas do cômodo.
Depois, visitei os amigos de meu irmão. De todos, aquele mais alto e forte — não me recordo do nome — foi o que mais chamou minha atenção. Talvez por ironia do destino... Ou não. Assim como o meu irmão mais velho, ele também já mostrava todos os sinais de que logo já liberaria adrenalina. Contudo, observando-o mais um pouco, via que a situação parecia ir além. Seu sangue já deveria estar envenenado em epinefrina. Suas veias já deveriam estar entupindo desse hormônio. Sua pele cintilava, era suor. Ele tremia como se estivesse prestes a ter uma hipotermia.
Olhei para o chão e vi um vaso de porcelana estilhaçado próximo a janela. As cortinas ao lado tremulavam. Sinceramente...
Então, outro vaso caiu.
Mas dessa vez as cortinas estavam paradas.
Ele olhou para trás em reflexo e, com o pequeno lampejo circular de sua lanterna, ele iluminou o sobretudo vinho de Pretérito.
— Você? — balbuciou ele, com a voz embargada. — O que faz aqui? Não deveria estar procurando no quarto do lado?
Uma pausa silenciosa pairou pelo cômodo na qual o sopro do vento foi o chiado mais alto a ser escutado.
— Sabe qual das histórias dessa mansão eu acho a mais trágica? — Pretérito aguardou, mas ele não lhe respondeu. Por um instante, pareceu até que o vento quem iria lhe dar a resposta. Mas então Pretérito subitamente voltou a dizer: — Aquela história...
— Aquela? — ele indagou confuso. Isso até perceber que Pretérito apontava para a janela.
— Aquela história — ele repetiu —, que tem um garotinho e termina com a cabeça do irmão dele em cima da janela.
Sim, havia algo de errado ali e ele notou quando viu nas mãos de Pretérito um cintilar metálico. Sua primeira reação foi pegar o Walkie-Talkie.
Mas só o que todos puderam escutar foi um burburinho inaudível e depois um chiado interminável.
...
Depois de uma meia hora, todos se reuniram no saguão.
Ponderei se deveria deixar a mansão, dado as experiências de meus olhos. Mas tive uma daquelas sensações de que algo a mais estava para acontecer. Senti-me coagido a ficar, ou tudo seria pior.
Perguntaram pelo garoto, o que recebeu a visita de Pretérito a pouco. Pretérito, por sua vez, os dissuadiu.
— Ele foi para o porão — disse — E falou que iria comprar um skate novo com o dinheiro extra do tesouro.
Os outros amigos o xingaram. O que antes era uma exploração, virou uma competição e o grupo decidiu descer até o porão. Afinal, pela lógica de Pretérito, pareceu ser o lugar mais óbvio de procurar o tesouro.
O porão era mais escuro e tinha mais cômodos, o que obrigou o grupo a se distanciar ainda mais. O problema era que o sinal dos Walkie-Talkie mal funcionava, se é que dava para dizer que funcionava. — A máfia provavelmente cuidou para que o lugar fosse livre de vigilância.
Segui meu irmão mais velho. Ele entrou num cômodo estreito que saiu numa biblioteca. Haviam andares de livros velhos desenhados por teias de aranhas e traças. Seus sentidos estavam todos alertas. Ele havia sacado a calibre 38 e a segurava junto com a lanterna. Tremia como uma taquara num vendaval. Ele me viu e apontou a arma para mim em reflexo.
— Você me assustou. — disse. Depois abaixou a mira. — A propósito, aproveitando que só estamos nós dois aqui, tem uma coisa que eu queria te perguntar. Por que você esteve na Feira de Outono hoje mais cedo?
— Eu só estava entediado.
— Eu já deveria imaginar. É típico de você.
Ele se virou e eu também, prestes a mudar de direção. De repente, o mais velho caiu no chão, soltando um grunhido estarrecedor. Ali, largado como um cachorro acidentado, ele apertava firme com a mão seu ombro direito. Em pé a frente dele estava Pretérito que o encarava de baixo para cima e segurava uma lâmina manchada em vermelho. Então os olhos do mais velho se arregalaram quando ele percebeu que o líquido que respingava da ponta afiada até o chão era seu próprio sangue.
— O que é isso?! — perguntou abismado
— O que parece?
— Você enlouqueceu?! — ele correu para pegar a arma que havia deixado cair, mas Pretérito a chutou para longe — Largue isso, ainda dá tempo.
— Largar? Eu tenho motivos de sobra para fazer isso.
— Motivos? Quer a minha herança? Quer ser o mais velho?
Ele não respondeu. Seu olhar estava gelado, vazio. O silêncio pairou por lá como uma fumaça espessa e fria. Um vento que anuncia uma tempestade.
— Não seria nada mal. — disse Pretérito e mais uma pausa se seguiu. — Mas não. O motivo principal é bem mais simplório do que você pode imaginar.
O mais velho com muito custo se levantou. Ainda estava difícil se mover, ele precisava de mais adrenalina. Então o hormônio descarregou em sua corrente sanguínea aos montes. Seus olhos dilataram, as veias de seus braços saltaram e seus pelos se arrepiaram. Ele correu. Foi uma corrida desengonçada, devagar, mas ele correu pela sua vida. Contudo, não se pode esperar vencer um mal agouro contando com o próprio esforço. Nada além da sorte é suficiente e ali, o mais velho dos Patton tinha tudo, menos sorte. Ele foi apunhalado novamente e caiu ao chão.
— Sabe qual das histórias dessa mansão eu acho a mais fascinante? — começou. Sim, ia começar aquilo de novo. — É a da esposa que tinha um grande coração. Sim, seu coração era tão grande que seu marido, tomado pela loucura, arrancou-o fora para ver mais de perto. — ele se aproximou, retirou a camisa do mais velho e fez um leve corte em seu peito. — Diz a lenda que o espírito do marido ainda corre por essa mansão, procurando por belos corações para poder apreciar de perto.
Por um instante senti meu corpo congelar. Será que eu deveria interromper? Mas o que eu poderia fazer de diferente?
Num segundo que pisquei, a lenda se tornou real.
...
Naquela soturna noite de outono, na véspera do Dia dos Mortos, os Patton não encontraram o tesouro perdido dos mafiosos. Em vez disso, o mau agouro recaiu sobre o grupo estúpido de amigos que ousaram desafiar a aura nefasta da Mansão Truman.
Ainda que a polícia ateste que o que aconteceu com os dois rapazes é um caso de assassinato sem solução, corre pela língua das pessoas as terríveis consequências de quem ousa brincar com o que não pode controlar.
A noite até poderia ter sido mais longa, se meu coração não estivesse transbordando em êxtase logo na segunda maldição.
De qualquer forma, por mais que a verdade um dia venha a tona, a ideia que se criou acima da Mansão Truman, permanecerá. E, se a verdade um dia aparecer, não terei receio algum em ser testemunha do que Pretérito fez.
Sinceramente, ainda pondero se devo deixar esta casa.
Talvez eu faça isso um dia.
Ás vezes sinto uma ligeira desconfiança que soa imperceptível para os outros mas perceptível para mim de que o doutor Martell bem conhece os passos por onde Pretérito se aventurou. Mas ao mesmo tempo em que esta desconfiança surge, com pressa ela se desvanece. Afinal de contas, se sua percepção é tão boa assim, ele saberia desde o início que não deveria ter me deixado entediado.
Eu detesto me sentir entediado.
Mas, por agora, o doutor Martell pode ficar tranquilo. Como outrora mencionei, de uma certa forma estou distante do Pretérito.
Afinal de contas, agora tenho esta caneta.
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