Capítulo 8 - "Eu não sou ninguém"


     A reação da jovem foi bastante emocional. Ela limpou uma lágrima que lhe escapou enquanto Nix se aproximava, em passos lentos e calculados, como um caçador que não quer assustar a presa.

-- Está tudo bem agora, querida. -- a tranquilizou -- Tom teve um problema e saiu às pressas, nem mesmo seus pertences ele levou.

-- Sim, eu soube. -- fungou -- Por que não me disse antes?

-- Por que eu não sabia por quem estava procurando. -- mentiu -- Tudo o que Tom me disse em seu bilhete foi que deveria vir o quanto antes até a vila do Cervo Galhado e finalizar o assunto dele com uma jovenzinha que o estaria esperando.

-- Ele lhe disse apenas isso? Dessa forma tão vaga? -- a olhou desconfiada.

--Sim, e fez o certo. Nunca coloque num papel algo que possa lhe comprometer ou a outros. Nunca escreva nada que não quer que outros leiam. -- aconselhou -- Agora me diga, o que nosso benevolente Tom lhe prometeu?

-- O mesmo que aos outros, senhorita.

     Levou apenas um segundo para a mulher  compreender.

-- Abrigo nas fazendas reais? -- pediu a confirmação. 

-- Na verdade ele me levaria até  a Cidade Real. -- corou.

-- Como amante? -- enojou-se ao imaginar aquilo, já que a garota deveria ter por volta de dezessete anos.

-- Não! -- gritou de olhos arregalados -- Não, senhorita. Eu pedi para trabalhar na Casa de Caridade, talvez como assistente de algum Curandeiro Chefe.

-- Casa de Caridade? -- perguntou -- É algum tipo de abrigo para doentes?

-- Mais ou menos. É um lugar onde eles se tratam, e vão embora assim que estiverem curados! -- explicou, e seus olhos brilhavam de empolgação -- Numa conversa eu acabei dizendo ao senhor Tom a minha admiração pelo cuidado aos enfermos, então ele me garantiu que eu seria aceita numa das Casas da Cidade Real.

     Um lugar onde se tratam os doentes. Nix nunca ouviu falar sobre aquilo e ficou encantada ao imaginar um lugar como aquele, que tinha o único propósito de curar. Todos os doentes e feridos que Nix já viu em sua vida tiveram dois fins: ou se saravam sozinhos, no máximo com ajuda de algumas ervas, ou morriam.

-- Eles cobram quanto ouro pela cura? -- perguntou curiosa.

-- Eu não sei. -- deu de ombros -- Mas existe algumas poucas que não cobram nada, são mantidas pelo rei e atendem apenas quem não tem dinheiro.

     O rei Abenforth. Aquele que era bom e generoso, e não mal e cruel como Willk a fez acreditar. Fechou as mãos em punhos para esconder o tremor que encontrar, finalmente, a confirmação das palavras de Thomas lhe causou. A confirmação de que foi usada, enganada e manipulada. Respirou fundo, guardando sua tristeza, decepção e raiva para depois, e continuou a conversa.

-- E sua família? Não vai com você? -- questionou verdadeiramente interessada.

-- Oh, não, eu não tenho ninguém. Estive nas ruas até pouco tempo. Conheci uma mulher que me chamou para trabalhar para ela. Disse que precisava de mim com urgência, e eu fiquei tão feliz! Mas depois descobri que era um trabalho sujo e fugi. -- seu tom ao terminar a frase foi sombrio -- Foi aí que conheci Tom.

     Estive nas ruas até pouco tempo. Uma lembrança a invadiu com força: pés descalços, roupas sujas e desgastadas, a dor da fome e do frio e do medo. Nix sabia o que aquela pobre menina viveu, sabia a alegria exultante que era ser resgatada das ruas. Mas diferente de Nix que encontrou abrigo, proteção e treinamento - mesmo que nas mãos de um crápula -, aquela jovem foi aparentemente arrastada até o prostíbulo mais próximo, para provavelmente trabalhar no lugar das mulheres que o duque ajudou anteriormente. Não poderia apenas tirar informações dela e lhe virar as costas, deixando-a novamente à mercê do mundo. Olhou para a moça que a observava curiosa.

-- Quero que me encontre nos fundos do correio em dez minutos. -- disse simplesmente e saiu apressada.

     Seguiu até a carroça da Irmandade que ainda estava estacionada no mesmo lugar. Rosene costumava levar um dia inteiro nas compras, não por gastar demais, mas sim por conversar demais. Pegou sua bolsa de viagem, sua capa curta azul clara, e foi até o encontro da menina, que já a esperava no local combinado.

-- Eu não posso levá-la até a Cidade Real. -- disse e tristeza lampejou nos olhos da garota -- Precisa ir sozinha.

-- Mas...

-- Silêncio! -- a interrompeu e começou a tirar as próprias roupas -- A carruagem-correio para a Cidade das Rosas parte em poucos minutos, e você estará nela. Agora tire seu vestido.

-- O quê? -- assustou-se com a ordem.

-- Rápido! -- retirou o espartilho respirando aliviada, e apressou-se a vestir a calça de lã e camisa que estavam em sua sacola -- Ouça com atenção. Em hipótese alguma chegue na Cidade das Rosas, você precisa desembarcar antes! Desça na estalagem da vila do Rio Verde quando eles forem trocar os cavalos. De lá, pegue uma outra carruagem-correio até a Cidade Valterra, e de lá uma outra até a Cidade Real. Entendeu? Repita o que eu disse e vista isso.

     A garota terminava de tirar a roupa e agarrou o vestido que ela lhe jogou.

-- Descer na vila do Rio Verde, seguir até Valterra e de lá até a Cidade Real. -- relembrou enquanto colocava o vestido de Nix-- Entendi, só tem um problema senhorita, eu não tenho dinheiro!

-- Você tem. Verifique seus bolsos. -- ordenou.

     A jovem o fez encontrando, junto da passagem da viagem, duas moedas de prata e duas de ouro. Nix observou o reflexo dourado das moedas que Thomas lhe dera sentindo alegria no coração. Vestidos de seda são inúteis, mas ajudar aquela garota... isso sim tinha valor e, pela primeira vez, sentiu-se grata pelo duque tê-las dado a à ela.

-- Nossa! A senhorita é rica!

-- Não, não sou. -- pegou a capa curta azul e a colocou sobre os ombros dela -- Eu aconselho que as guarde nos sapatos e no espartilho. São lugares improváveis de um ladrão procurar e, se acharem uma, não procurarão mais e assim lhe sobra alguma coisa. Nunca nos bolsos, ouviu bem? Nem mesmo na mala.

     Colocou sobre o rosto delicado e nervoso o capuz e sorriu, notando que suas roupas ficaram um pouco largas nela.

-- Você vai treinar para se tornar uma Curandeira Chefe? -- perguntou suavemente.

-- Seria impossível. Não há mulheres Curandeiras.

-- Sabe o que significa? -- a jovem sacudiu a cabeça negativamente -- Que você terá de ser a primeira.

     A menina, pela primeira vez, sorriu para ela. Um sorriso de gratidão. E esperança. Jamais alguém sorriu para Nix daquela maneira e, como uma tolinha sentimental, ela sentiu seus olhos lacrimejando. Piscou com força para afastar a sensação.

-- Quando chegar na Cidade Real vá direto ao palácio. Diga que o duque Thomas Longford a resgatou por ordens do rei Abenforth.

     Os olhos dela se arregalaram, chocados.

-- Tom é um duque? -- Nix acenou afirmativamente -- E você o que é?

     O que ela era? Quem ela era? Sua mãe morreu antes de Nix aprender o seu lugar no mundo. Quanto ao seu pai... bem, ela nem mesmo se lembrava direito dele, apenas se lembrava daquele dia, tão distante, quando ele caminhou para longe dela sem olhar para trás.

-- Eu não sou ninguém. -- sussurrou.

-- Não é verdade. -- a garota disse e a abraçou com força -- Você é a mulher que me salvou. Obrigada.

     Nix retribuiu o abraço por apenas alguns poucos segundos, depois a afastou gentilmente, retirou um canivete do cano de sua bota e o entregou à ela.

-- Cuide-se. Agora vá, senão irá se atrasar! -- ordenou. A menina aceitou o presente, o enfiou entre os seios e pegou sua pequena mala -- Boa sorte, garota.

     A jovem assentiu, lhe sorriu novamente e se foi. Nix ficou ali parada, encarando o ponto exato onde a viu pela última vez, enquanto se esforçava para organizar aquela bagunça dentro dela. Seu mundo, mais uma vez, se estilhaçava ao seu redor. Aos sete anos, quando perdeu tudo pela primeira vez, ela só queria sobreviver. Agora ela queria vingança. Iria se vingar de Willk e sua Irmandade de mentirosos. Mas não ainda.

     Naquela manhã ela se sentiu presa numa bifurcação, com dois caminhos à sua frente, duas escolhas, e a dura verdade sobre seu mestre a fez escolher o rumo mais difícil. Sempre tenha o plano B, C, D... e quando o alfabeto acabar, então use os números. Mais um ensinamento, um que Nix estava fazendo uso desde a noite anterior. O plano A consistia em matar Thomas. Mas o plano B... era hora de salvá-lo. Finalmente se colocou em movimento, retirou seu cinto - com sua adaga na bainha - da sacola de pano e o prendeu na cintura, depois enfiou as roupas da menina e os alimentos que comprou na estalagem na mesma sacola e a trespassou por seu ombro. Em seguida esgueirou-se pelas redondezas da vila, encontrou um gorducho distraído, lhe roubou o cavalo e retornou até a fortaleza da Irmandade à galope por um caminho tortuoso longe das estradas. Chegaria lá depois do anoitecer e deveria estar longe quando o bilhete da Cidade das Rosas chegasse até Willk na manhã seguinte, o informando que Nix não desembarcou da carruagem-correio. Mesmo que seus homem jurassem de pés juntos que a viram embarcar, mandaria alguém rastreá-la e quando percebesse que o duque escapou, bastaria somar dois e dois para perceber que ela o traiu. Nix estaria sendo caçada antes do meio dia de amanhã.

     Isso a levava diretamente ao plano C: manter-se em sua vida de soldado. Mas agora um soldado lutando por justiça, por fazer do mundo um lugar melhor, lutando em nome do rei Abenforth. 

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