Capítulo 79 - "Essa vingança não é apenas sua"
-- Eu irei matá-la! -- rugiu o rei levantando-se de sua cadeira já correndo até a porta -- Irei matá-la com minhas próprias mãos!
Thomas poderia jurar que as paredes do castelo tremeram com tamanha fúria que emanava do homem, e o duque se compadeceu de seu rei imaginando a magnitude da dor que o atormentava naquele momento. Entretanto ele estava numa missão, e apesar de estar inclinado à realmente permitir que Abenforth buscasse sua vingança contra a mulher que destruiu sua vida e a de Cecilie, Thomas seguiria à risca as ordens de sua princesa. Ele se levantou e correu até a porta, sua juventude o ajudando à alcançá-la antes do rei irado.
-- Majestade, contenha-se! -- ele pediu estendendo as mãos para acalmar o monarca.
-- Saia da minha frente, Thomas! É uma ordem, não ouse defendê-la!
-- Senhor, eu não estou!
-- Saia agora, saia! -- o rei o agarrou pelo colarinho e o empurrou com violência para o outro lado.
Thomas foi pego de surpresa pelo ataque, e cambaleou liberando o acesso à porta. Porém se recuperou rapidamente e no instante em que o rei tocou a maçaneta, ele chegou por trás e empurrou a porta com toda a força girando a chave e a tirando da fechadura. Ao ver o arregalar ensandecido dos olhos cinzentos de Abenforth, e já familiarizado com a tempestade que eles anunciavam, ele saiu de perto do homem apressadamente guardando a maldita chave no bolso da calça.
-- Se eu precisar acabar com você para sair daqui, eu o farei. -- o rei ameaçou em voz vazia e cruel, e Thomas não duvidou nem por um segundo que ele seria capaz daquilo.
-- Boa sorte para explicar à Cecilie que você matou o noivo dela. -- tentou usar uma voz tranquila para acalmar o homem que dava pequenos passos ao seu redor, cercando-o.
-- Minha filha vai entender quando eu disser que você estava me impedindo de vingar a morte da mãe dela. Última chance, Thomas. Me dê a chave.
-- Não. Por favor, senhor. Ouça-me. Eu preciso...
O duque não foi capaz de terminar sua sentença, pois Abenforth pulou sobre ele num ataque tão rápido quanto o de uma víbora, o derrubando sobre a mesa de trabalho do escritório. Sentiu um baque no rosto próximo ao olho esquerdo e tardiamente percebeu que levou um soco que que o deixou atordoado por alguns segundos.
-- Me dê essa chave agora mesmo! -- o rei gritava desvairado por sua sede de vingança, o punho já preparado para um novo ataque -- Agora!
Thomas não se incomodou em responder pois estava mais preocupado com a integridade de seu belo rosto. Levantou a perna direita levando o joelho até a barriga do monarca com toda a força que conseguiu reunir, fazendo-o perder o fôlego ao sentir o contra ataque do duque.
-- Você vai acabar na forca, Thomas! -- o homem ameaçou em voz entrecortada, soando ainda mais raivoso que antes.
Barulhos altos começaram a soar vindos da porta conforme os guardas reais tentavam invadir a sala para ajudar seu rei que parecia estar em apuros.
-- Majestade, me escute! -- Thomas pediu mais uma vez por sobre a confusão do lado de fora.
-- Duque, abra essa porta imediatamente! -- uma voz trovejante soou atrás da madeira junto com pancadas e outros murmúrios.
-- Está tudo bem, soldado. Fique calmo. Isso é apenas uma conversa de família. -- ele gritou para impedir os soldados de invadirem.
-- Majestade! -- o soldado insistiu -- Não se preocupe, senhor. Andem, vamos logo com isso. No três... um...
-- Abenforth, quem acha que descobriu toda a verdade? Quem acha que mandou que eu viesse até o senhor? Estou apenas cumprindo as ordens de Cecilie.
Os olhos selvagens do rei se abrandaram ao ouvir o nome da filha, e logo um estrondo ensurdecedor irrompeu na sala.
-- Afaste-se do rei! -- bradou um soldado, a espada já em mãos num ataque que prometia ser certeiro.
Thomas levantou as mãos mostrando-se inofensivo - ele não tinha pretensão nenhuma de entrar numa luta desarmado, principalmente contra tantos soldados assim. Os homens simplesmente não paravam de entrar pisoteando a porta que jazia caída no chão.
-- Está tudo bem, senhores. -- o duque disse em voz suave -- Como eu disse, é apenas um desentendimento familiar.
Porém suas palavras não acalmaram os ânimos exaltados dos soldados que permanecem com as armas em mãos, aguardando apenas uma ordem do rei para avançar sobre ele. Encarou os olhos de Abenforth, que pareciam incertos e em conflito.
-- Eu posso provar. -- o homem disse em voz alta -- Vou pegar uma carta do meu bolso, bem devagar. Vamos todos manter a calma, por favor.
Lentamente Thomas puxou a carta de onde estava, no bolso interno de sua casaca, tentando acalmar o coração acelerado. Quando concordou em contar ao rei as descobertas sobre Zaya, jamais imaginou que o homem reagiria de maneira tão brutal. Realmente era Cecilie quem deveria ter feito isso, pensou tenso ao sentir tantos olhares hostis sobre si. Os olhos de tempestade do rei se estreitaram ao reconhecer a caligrafia do príncipe no envelope, e ele se apressou até o duque tomando-lhe o papel de suas mãos com violência. Ao ler a carta sua expressão mudou de ódio para assombro, e depois para confusão.
-- Saiam daqui. -- ordenou num fio de voz.
Os soldados, provavelmente sem ouvir o comando, permaneceram onde estavam com as armas em punho.
-- O rei pediu para que se retirem, por favor. -- anunciou o duque, recebendo um olhar de aviso dos soldados que ainda o viam como uma ameaça.
-- O que está acontecendo aqui? -- a única voz que o rei não poderia ouvir naquele momento perguntou, vinda de trás da parede de soldados.
Thomas encarou o homem imediatamente aguardando sua explosão, entretanto a energia vital de Abenforth parecia ter sido drenada. Ele estava pálido e abatido, os lábios trêmulos, os olhos marejados ainda encarando a carta em suas mãos.
-- Tia Zaya, não é nada, pode ir embora. -- explicou o duque, mantendo a atenção por sobre o rei -- Por favor. Os senhores também, soldados. -- eles hesitaram, sem sair do lugar -- Que tal ficarem apenas uns dois de vigilância aí da porta, hein? Todos ficaríamos mais confortáveis assim, não acham?
Os guardas trocaram olhares com o homem que parecia ser líder deles, que acenou um comando silencioso. Imediatamente todos embainharam suas espadas e se retiraram, menos dois deles que permaneceram com as espadas em mãos e em pé exatamente onde estavam. Agora sem o enxame de soldados, a rainha era visível ao duque e ao rei, e a mulher os encarava visivelmente alarmada e apreensiva, seus sentimentos evidentes contrastando com a cor alegre de seu vestido azul claro.
-- Tia, o rei e eu temos assuntos particulares para tratar. Nos dê licença. -- pediu educadamente mais uma vez.
-- Que assuntos são esses que causam gritos que são ouvidos à metros e metros de distância? Ouvi vocês lá da biblioteca e...
-- Por Deus, mulher! -- o rei bradou assustando a rainha, que deu um pulo -- Já não ouviu o que Thomas disse? Saia daqui!
Zaya alternou o olhar do marido ao sobrinho, endureceu o maxilar e endireitou a postura rígida, o olhar claramente ofendido por ser tratada com tamanha grosseria. Então ela saiu sem dizer palavra, os ecos do grito do rei ainda em seus ouvidos.
-- Mandem um soldado ficar de olho nela. -- ordenou Abenforth -- Bem discretamente pois não quero que ela perceba, mas não a percam de vista de maneira alguma.
-- Sim, senhor. -- um dos soldados saiu para repassar a ordem, retornando ao seu posto em poucos segundos.
Enquanto isso o rei analisou calmamente o duque à sua frente, que tinha o olho esquerdo inchado e começando a escurecer num hematoma. Ficou constrangido pelo seu descontrole emocional, mas não pediu desculpas.
-- Essa carta é verídica. -- ele apontou ao devolver o pergaminho à Thomas.
-- É claro que é. -- confirmou ao retomar o documento e guardá-lo cuidadosamente em seu bolso.
-- Christopher já sabe o que a mãe dele fez. -- não foi uma pergunta, mas o duque respondeu com um aceno afirmativo mesmo assim -- Tudo o que me resta é supor que Cecilie está por trás disso. -- mais um aceno -- O que diabos está acontecendo, Thomas?
-- Imagino que eu deva responder à sua pergunta, pai. -- a voz da princesa soou da porta, inundando Thomas em profundo alívio.
Ela adentrou o local apressadamente, lançando um olhar intenso para a porta no chão. Depois encarou os soldados, o pai que parecia em farrapos e, por fim, Thomas e seu glorioso olho roxo.
-- Você está bem? -- perguntou ao amado, as sobrancelhas franzidas em apreensão.
-- Eu disse que você deveria ter feito isso. -- ele lhe sorriu de canto, lancando-lhe uma piscadela para garantir que estava bem.
-- Cecilie, me explique o que está acontecendo. Imediatamente. Por que mandou Thomas para me dar tais notícias perturbadoras? Eu quase o matei!
-- Ei! -- o duque se defendeu, ofendido -- Não foi para tanto!
-- Você cale a boca, estou falando com minha filha agora. -- o rei ordenou quase espumando de raiva.
Thomas cruzou os braços e não escondeu sua expressão de desagrado, mas sabiamente manteve-se em silêncio.
-- Eu tinha uma coisa muito importante para fazer, pai. Descobrir o último cúmplice da rainha. Pedi que Thomas lhe contasse tudo para adiantar as coisas.
-- Por que eu fui o último a saber? Eu não entendo!
-- Não? O senhor quase colocou tudo à perder com esse ataque histérico! -- apontou a porta caída ao chão -- Realmente não compreende minhas razões?
O olhar do rei tornou-se um tanto encabulado. Ele fechou os olhos e respirou profundamente, as mãos fechadas em punhos na tentativa de ocultar a tremedeira que permanecia evidente. Uma lágrima solitária rolou pela bochecha do monarca, que não se esforçou para limpá-la.
-- Eu ainda a amo. -- ele confidenciou em voz partida -- Profundamente. Amo Cassandra da mesma maneira como sempre a amei, senão mais.
-- Eu sei disso, papai. E foi por isso que achei melhor contar-lhe a verdade quando tudo estivesse devidamente encaminhado.
Abenforth abriu os olhos parecendo muito mais calmo, e encarou a filha à sua frente.
-- Então agora você é minha herdeira?
-- Sim, senhor.
-- Christopher odiava suas responsabilidades, imagino que tenha sido um alívio se livrar delas. Mas eu ainda não entendo por que Zaya fez tamanha crueldade, ela sempre soube de Cassandra e de vocês e nunca se importou... -- ele soluçou e levou as mãos ao rosto -- Eu não entendo, não entendo...
Então o rei desabou pesadamente de joelhos no chão, entregue às próprias lágrimas que rolavam soltas pelo seu rosto. Thomas podia sentir a dor crua e visceral naquele choro e sentiu os pêlos do braço se arrepiarem conforme desviava o olhar, dando-lhe privacidade para o monarca vivenciar seu luto que perdurava há tantos anos. Cecilie, por sua vez, se apressou até o pai e o puxou para um abraço. Ajoelhados no chão pai e filha choraram a dor da perda da mulher que mais amaram, quase dezesseis anos depois de sua perca. Até Thomas derrubou uma ou duas lágrimas, mas misericordiosamente ninguém notou. Alguns bons minutos depois ambos foram se acalmando, e o silêncio dominou a sala conforme o Abenforth e Cecilie se acalmavam.
-- O senhor precisa ser honesto consigo e comigo agora, papai. -- a mulher disse numa voz embargada -- Vai conseguir lidar com isso?
-- Como assim? -- o rei perguntou limpando as lágrimas -- Há mais a ser dito?
-- O senhor perguntou os motivos de Zaya, não foi? Está preparado para ouvir tudo? Agora eu sei exatamente o que aconteceu e temos muito a fazer ainda hoje. Preciso saber se posso contar com o senhor. -- a mulher acariciou as bochechas do pai com carinho -- Mas se não tiver forças, tudo bem. Eu entendo, pai. Tenho tudo sob controle e irei vingar a morte de minha mãe ainda hoje. Eu prometo.
O rei encarou a filha atentamente, os olhos ainda feridos anunciando a profundidade de seu tormento. Por um momento Thomas achou que ele não suportaria ouvir mais nada, que aceitaria a promessa da filha e se retiraria para deixá-la lidar com tudo sozinha. Porém estava enganado.
-- Se é difícil para mim, também o é para você, minha princesinha. -- ele a puxou e beijou-lhe a testa -- Vamos fazer isso juntos. Quero que me diga absolutamente tudo, Cecilie. Essa vingança não é apenas sua, é nossa.
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