Capítulo 73 - "Eu o perdoei. Eu me perdoei"
Cecilie não adormeceu após deixar o quarto de Thomas. A princesa se acomodou confortavelmente numa poltrona em frente à grande janela de seu quarto e, sozinha observando o nascer de um novo dia, traçou um plano que colocaria em prática ainda naquela tarde. Não havia razões para protelar, precisava encerrar aquele assunto de uma vez por todas pois somente após a justiça por sua mãe ser feita ela poderia seguir com leveza e felicidade completas rumo ao seu futuro. Para seu futuro junto de Thomas.
"Eu quero ter filhos com voce"... seu amado lhe disse no discurso de pedido de casamento. A mulher suspirou e encarou o anel brilhando em seu dedo, pensando naquelas palavras. Cecilie era capaz de muitas coisas, mas seria ela capaz de ser mãe? Não apenas gerar e parir uma criança, não era isso que temia... mas sim ser mãe. Ser presente, carinhosa, atenciosa, dar educação, amor... Ela jamais havia pensado naquilo, a sobrevivência sempre fora assunto mais importante e iminente do que um futuro que outrora era incerto. Entretanto tudo havia mudado. O futuro agora era real, e novos planos deveriam ser traçados, não é? A maternidade estaria dentre tais planos? Não sabia, não sabia...
Sentiu um nervosismo invadi-la e fechou os olhos para se acalmar, e acabou adormecendo sem nem mesmo perceber. Na escuridão de suas pálpebras, viu surgir uma menininha de olhar cinzento sorrindo para ela. A princesa cogitou por um momento estar vendo sua versão mais jovem, mas logo percebeu não ser o caso. Aquela menininha tinha cabelos castanhos, não negros. Cabelos volumosos e com ondas familiares. Também tinha uma única covinha na bochecha esquerda, e uma aura de inocência que tinha o poder de desarmar qualquer pessoa. Um estalo a atingiu quando compreendeu quem era aquela criança: era sua filha. Tão sua quanto de Thomas e mesmo que fosse apenas um sonho, uma resposta dos deuses ou um presságio do futuro, Cecilie a amou profundamente. Um amor tão puro e perfeito que fez seu coração doer.
A criança então começou a correr rindo animada, os gritinhos de empolgação infantis preenchendo o ar. Foi só naquele momento que percebeu estar sonhando, pois agora Cecilie corria atrás dela numa brincadeira divertida enquanto continuava a se encantar com o som da risada da filha. Até que a menina parou e a encarou profundamente, e a princesa surpreendeu-se em quanto aqueles olhos azul acizentados eram tão iguais aos seus.
-- Gaia! -- disse a criança, que logo voltou a correr para longe, deixando-a confusa.
-- O que disse? -- perguntou tentando alcançá-la, mas a filha já estava longe -- Ei, volte aqui!
A criança parou novamente e a encarou com a sombra de um sorriso torto - semelhante ao de Thomas - depois respirou fundo e disse.
-- Senhorita, acorde!
Cecilie despertou assustada e a claridade vinda da janela lhe cegou por alguns instantes, deixando-a ainda mais desnorteada. Imediatamente procurou ao redor a menininha linda que era sua filha, encontrando apenas uma Salete que a encarava atentamente. Foi só um sonho... repetiu incessantemente em seus pensamentos, engolindo o bolo desconfortável de decepção que se alojou na sua garganta quando percebeu o quanto desejava que fosse real.
-- A senhorita está bem? -- sua amiga questionou, preocupada ao perceber sua letargia.
-- Sim... -- percebeu sua voz falhar, deu uma tossida seca e repetiu -- Sim, Salete. Eu só... tive um sonho muito estranho.
-- Eu imagino que para deixá-la impressionada desse jeito, tenha sido realmente perturbador. Sinto muito.
Encarou as feições entristecidas da amiga, e percebeu que a mulher pensou que havia sonhado com coisas ruins. A princesa sorriu de canto ao se levantar e se espreguiçar, relaxando todo seu corpo.
-- Não um sonho bom, na verdade. Mas não vamos nos preocupar com isso, temos muito a fazer hoje.
A princesa seguiu até seu quarto de banho e notou que a banheira já estava cheia de água fumegante. Pegou seu frasco de óleo de lavandas da mesa do banheiro e despejou metade, inspirando o perfume em seguida.
-- Temos? -- repetiu Salete, um tanto confusa -- Tipo... nós duas?
Cecilie sorriu largamente para a amiga, um sorriso ladino que anunciava confusão.
-- Salete, você quer sair para uma aventura? -- perguntou em voz baixa e misteriosa, e se o brilho nos olhos escuros da amiga fosse algum indício, a resposta que receberia seria exatamente a que precisava.
Depois de estar devidamente apresentável em seu vestido de inverno verde brilhante e com seus cabelos negros presos num penteado simples, Cecilie chegou ao salão de refeições que já estava cheio. Ao adentrar o local ouviu quase uma dezena de cadeiras sendo arrastadas pelo chão conforme os homens se lavantavam educadamente conforme exigia a etiqueta. A princesa ainda achava uma grande tolice algumas das regras daquela sociedade à qual estava cada vez menos relutante em aceitar que pertencia, entretanto não era como se fosse fazer algo à respeito. Afinal coisas tão arraigadas assim levavam tempos para serem mudadas, e na verdade outras prioridades exigiam sua atenção mais imediata.
-- Bom dia, filha! -- seu pai se adiantou até ela para cumprimentá-la com dois beijos, um em cada bochecha -- Está esplêndida essa manhã.
Seu olhar cruzou com o de Thomas por sobre o ombro do pai, e ele lhe lançou uma piscadela atrevida junto de um meio sorriso sedutor. Cecilie tentou com força não corar furiosamente, e retornou a atenção para o pai que a observava com concentração, um vinco entre suas sobrancelhas franzidas, os olhos azul acizentados presos no anel que brilhava em seu dedo.
-- Bom dia, pai. Me desculpe pelo atraso, acabei dormindo um pouco mais que o normal.
-- Posso imaginar o motivo. -- a puxou para um abraço, na intenção de sussurrar discretamente em seu ouvido -- Vai me explicar o que significa esse anel, querida?
-- Claro que sim. Podemos nos reunir após o café da manhã? -- sussurrou igualmente baixo.
Abenforth interrompeu o abraço e se afastou, acenando afirmativamente, e passou a acompanhá-la até a mesa. Havia no olhar dele certo desconforto, que Cecilie imaginou que se devia ao fato de o rei estar completamente ciente de suas atividades noturnas com Thomas. O anel em seu dedo não era lá muito discreto, além disso ela sabia bem o quanto as fofocas corriam rápido como incêndio pelo castelo. Será que o rei a repreenderia por seu comportamento indecoroso? Como ela se sentiria caso ele realmente o fizesse, agora que estão se esforçando para se reconectarem como pai e filha? Tantas questões tumultuaram seus pensamentos nas últimas horas, que uma leve dor de cabeça parecia ter início em suas têmporas.
Chegaram ao seu lugar, que fora previamente reservado ao lado do príncipe, então o rei lhe puxou a cadeira e Cecilie se sentou o mais graciosamente que pôde. A hora seguinte foi preenchida pelo barulho dos talheres contra a louça, algumas conversas susssurradas e outras em alto e bom som. Surpreendentemente ninguém à mesa fez qualquer menção à guerra recentemente ganha, e a princesa presumiu que isso se devia às damas presentes deduzindo que os homens achassem que tal assunto fosse pesado demais para ouvidos tão delicados. Bobagem, teve de se conter para não revirar os olhos diante de tamanho senso de superioridade masculina. Ela poderia apostar qualquer coisa que as mulheres estavam tão curiosas pelos seus relatos quanto os homens ali presentes. Entretanto Cecilie não saciaria o interesse de nenhum deles, já que havia deixado claro ao seu pai que gostaria de se reunir com ele apenas.
Depois de sorrir educadamente e interagir cordialmente com todos que conversaram com ela, finalmente o rei terminou sua refeição juntamente com a princesa que tomava o último gole de café de sua xícara de porcelana. O homem se levantou e lhe lançou um olhar significativo.
-- Se me derem licença, a princesa e eu temos assuntos à tratar. -- anunciou o rei à todos e à ninguém em particular.
Sua cadeira lhe foi puxada por um criado e, ao se levantar, notou o olhar um tanto ferido do príncipe ao ser tão claramente deixado de fora dos assuntos pós guerra. Sutilmente ela se inclinou para o irmão enquanto se levantava e lhe sussurrou ao pé do ouvido.
-- Podemos conversar mais tarde se não estiver muito ocupado, o que acha?
Os olhos cinzentos dele brilharam em expectativa e animação, o que a lembrou de sua pouca idade. Haviam tantas responsabilidades naqueles ombros tão jovens, que por vezes Cecilie se esquecia de que seu irmão ainda nem havia completado dezesseis anos de idade.
-- Estou certo de que posso encontrar um tempo para nos reunirmos. -- o príncipe garantiu firmemente, após controlar suas feições na intenção de ocultar sua empolgação.
Cecilie apenas sorriu discretamente e acenou em concordância. Despediu-se dos demais com um rápido aceno e seguiu o pai até seu escritório, não o mesmo onde conversaram meses atrás, mas um outro que ficava próximo ao salão de reuniões do Conselho do Rei. Ao chegarem o monarca instruiu aos guardas à porta que não os interrompessem e, uma vez lá dentro, acomodaram-se um ao lado do outro no sofá. Subitamente o ar ficou pesado, e Cecilie sentiu como se fantasmas do passado estivessem à espreita. Se houvesse vida após a morte, então certamente seu tio William estaria ali agora, observando aquele momento.
-- Vai me dizer tudo o que aconteceu? Sem me esconder nada? -- perguntou seu pai, encarando-a atentamente.
Aquilo era estranho, estar tão perto dele sem querer se afastar. Passou tanto tempo odiando-o que, agora que o ódio se foi, não sabia exatamente como se sentir ou se portar junto de seu pai. Quando o perdoou, ela o fez verdadeiramente e de coração, mas jamais pensou que o veria novamente. Que viveria junto dele, que escreveriam um novo capítulo na história tão conturbada que dividiam. Cecilie confiava nele? O encarou profundamente, analisando as rugas ao redor dos olhos, os fios grisalhos que nasciam dentre os louros escuros de sua têmpora. De repente, com a força de uma manada de búfalos, algumas certezas se firmaram em seu interior: Abenforth não nasceu para a posição que foi obrigado a ocupar, mas William sim, e ele teria sido um rei infinitamente melhor do que seu pai jamais seria. E por ser tão medíocre quanto às suas habilidades de governar o reino, certamente suas lições à Christopher também o eram.
Mas, ainda assim, ela o amava tanto quanto sempre o amou. Abenfoth nunca seria um grande rei pois lhe faltava a centelha da coragem, da ambição, do ímpeto e uma pontinha de crueldade e de malícia implacável. Ele era bondoso, mas não pensava com estratégia. Era gentil e honrado, mas jamais estaria um passo à frente de qualquer inimigo que viesse à se erguer contra ele, contra o reino. Foi por isso que mesmo fraca, a Irmandade esteve de pé causando o caos por tantos anos. Abenforth sempre seria facilmente enganado, manipulado, coagido, era fácil prever suas ações e passá-lo para trás. Se outra guerra surgisse no futuro, seu inocente pai e irmão jamais estariam preparados. Mas ela com certeza estaria.
O que estava prestes à fazer era o melhor não apenas para ela, mas para todos os homens, mulheres e crianças que eram seu povo. Sabia as implicações e o peso que assumiria para si a partir daquele momento até o dia de sua morte, mas não se importava. Sabia que aquele era seu destino, sempre fora, e não mais fugiria dele. Então as mentiras escapuliram facilmente de sua boca, mentiras cuidadosamente forjadas por William para facilitar o seu caminho.
-- Depois de libertar Thomas, Willk seguiu diretamente até o porto para buscar mercenários no outro continente. Ele me fez de refém por todo o caminho, papai, pois pretendia me executar diante do senhor e de seus exércitos na intensão de desestabilizá-lo e deixá-lo ensandecido de fúria para que cometesse algum deslize.
-- Aquele maldito desgraçado! -- rugiu com cólera evidente -- William sempre teve tendências à crueldade mas isso... desculpe-me minha filha, se na juventude eu soubesse o monstro que meu irmão se tornaria, o teria matado há muitos anos. Mas se ele pretendia matá-la, então por que enviou aquele corpo desfigurado se passando por você?
-- Bem, papai, eu realmente não posso compreender as razões de Willk fazer suas maldades. Apenas posso supor que ele queria atormentá-lo. -- deu de ombros inocentemente -- Talvez torturá-lo tanto até que enlouquecesse, nunca se sabe. Ele era capaz de tudo, não?
Meias mentiras unidas à meias verdades, assim como foi instruída. A questão é que para que conseguisse alcançar seu objetivo com maestria, precisava fazer com que a ideia partisse do rei e do príncipe.
-- Sim, suponho que sim. Ele a feriu? A torturou? Ele... -- seu olhar escureceu em terror, imaginando tardiamente as coisas terríveis que sua preciosa filha poderia ter sofrido naquela viagem.
-- Não, papai. -- estendeu a mão, segurando a dele com firmeza -- Ninguém sequer me tocou. Eu fiquei... fiquei o tempo todo sozinha num compartimento, com uma refeição diária apenas. Tudo o que fiz foi planejar e esperar o momentos certo para agir. Honestamente, fui treinada para suportar condições piores.
E assim a princesa relatou o que aconteceu, tendo o cuidado de ocultar a conversa reveladora com seu antigo mestre, a doença dele e o acordo que firmaram. Contou em detalhes como assassinou seu tio colocando um fim à Batalha da Praia, e as ordens que deu aos soldados. Depois, finalizou contando sobre as pilhas funerárias, as execuções dos remanescentes da Irmandade, e o caminho até a Cidade Real.
-- Eu sinto muito, Cecilie... ainda não sou capaz de aceitar tudo o que lhe aconteceu por meus descuidos. Eu fui tão tolo, um péssimo pai, eu...
-- Papai, já passou. Estamos bem agora, vencemos a guerra, vamos deixar tudo isso para trás. -- insistiu carinhosamente, se apiedando do sofrimento dele.
-- Como, minha filha? Se eu não a tivesse deixado naquele orfanato, nada disso teria acontecido! Willk nunca teria colocado as mãos no meu bem mais preciso, você seria uma jovem dama casada e feliz e...
-- Pai, ouça-me. Eu sofri. Muito, mesmo. Mas tudo o que aprendi... eu honestamente não gostaria de ser outra pessoa além de quem sou hoje. Eu o perdoei, eu me perdoei. -- ela sorriu para o pai, que espelhou seu movimento -- Não há mais motivos para se martirizar pelos nossos erros do passado, afinal, não há como mudá-los. Tudo o que podemos fazer é pensar no futuro, o senhor não acha?
Abenforth deu um risinho e virou a mão da filha - ainda unida junto à dele - à fim de ver mais claramente o anel que brilhava em seu dedo anelar.
-- Oh, sim, o futuro. Se isso for de algum indicativo, você e Thomas estão com alguns planos em andamento, certo?
-- Ele me pediu em casamento, papai. -- ela sorriu com o olhar cúmplice que o pai lhe deu -- De novo. Na verdade, eu já havia dito à ele que havia reconsiderado, mas ele refez o pedido mesmo assim.
-- Fico feliz que esteja feliz. -- o homem puxou a filha para seus braços e a beijou na testa -- Vocês fazem um belo par. Para quando pretendem a cerimônia? Aposto que Zaya insistirá numa enorme festança e -- a princesa enrijeceu a coluna ao ouvir o nome da rainha e seu pai imediatamente notou, interrompeu o abraço e buscou seus olhos -- O que foi?
-- Nada. -- mentiu.
-- Cecilie... -- o pai estreitou os olhos em sua direção, fazendo-a quase se encolher -- Diga-me.
-- Não é nada, papai... -- se apressou à desconversar -- Eu só gostaria de uma cerimônia mais íntima, acho.
-- Um casamento real, querida, é importante para os suditos também. Ainda mais em tempos tão difíceis quanto ao fim de uma guerra. Um evento desses tem o poder de ajudá-los a recuperar a fé no amor e a confiança na monarquia.
-- Irei pensar melhor à respeito, papai. Por enquanto, prefiro me ater ao planejamento da cerimônia em respeito às vítimas da guerra.
-- Não se preocupe com isso, já está tudo sendo resolvido, querida. Aquele bando de ladys estavam ociosas demais e aceitaram ávidas a tarefa do planejamento do evento.
-- Ótimo, tenho certeza que elas são mais experientes e capazes que eu nisso. -- riu-se e o pai pareceu encantado.
-- Você é tão linda quanto sua mãe. E tem a risada dela... -- de repente seu olhar cinzento tornou-se distante e repleto de saudade.
O silêncio reinou por um momento enquanto Cecilie o observava, imaginando se deveria deixá-lo a par de suas descobertas e desconfianças. Decidiu que não, pois o pai já havia sofrido o suficiente nos últimos anos e ela só lhe diria a verdade quando tivesse absoluta certeza de todos os envolvidos na morte de sua mãe.
-- Eu sinto falta dela. -- confidenciou num sussurro partido -- Tanta falta, pai.
-- Eu também, pequenina. -- a voz do rei soou igualmente ferida -- Eu também.
Aquela dor que compartilhavam era algo que nunca superariam, ela percebeu. Mas haveria uma sensação de paz quando a justiça fosse feita, disso tinha certeza.
-- Bem, eu devo ir agora se o senhor me liberar. -- disse já se levantando.
-- Claro, filha. O Conselho se reunirá em breve, onde eu repassarei as informações que me deu. Ia lhe perguntar se gostaria de aparecer, mas vejo que tem seus próprios compromissos. -- arqueou uma sobrancelha visivelmente curioso, mas a princesa notou com gratidão que o pai respeitaria sua privacidade.
-- Sim, mas não é nada que não possa ser remarcado. Além do mais, assuntos do reino são muito mais importantes, papai, eu ficarei honrada em participar da reunião do Conselho.
-- Excelente, querida. -- o rei lhe estendeu o braço num convite, e rapidamente a princesa entrelaçou seu braço ao dele -- Vamos, então?
Enquanto rumavam à sala de reuniões Abenforth olhou de soslaio para a filha, que imediatamente captou o movimento. Quando os cinzas dela cruzaram com os cinzas dele, a mulher notou que os olhos do rei brilhavam com o mais puro orgulho e admiração, o que lhe garantia que suas intenções seguiam perfeitamente conforme o planejado.
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