Capítulo 70 - "Esqueceu quem sou?
A água do banho já passava de quente para morna quando a princesa finalmente submergiu na banheira. O aroma de flores frescas e hortelã invadiu o ambiente, ajudando a relaxar seus músculos doloridos. Estava tão cansada que ao encostar a cabeça na borda de madeira adormeceu por alguns poucos minutos, despertando quando Salete bateu na porta anunciando que o jantar havia chegado. Esse pequeno cochilo ajudou a revigorar sua energia, então apressou-se a limpar-se lavando o corpo e cabelos duas vezes para retirar qualquer resquício que a guerra houvesse deixado sobre sua pele. Ao final de seu banho sentia-se uma nova mulher, mais leve devido à limpeza física e mental - cortesia de sua crise de choro nos ombros da amiga. Finalizou o ritual secando-se e aplicando em sua pele uma colônia perfumada e colocando uma camisola longa em seda de um azul tão claro que parecia branco, penteou os cabelos deixando-os soltos para secar e vestiu um roupão em veludo azul escuro com bordados dourados nas mangas. Pela primeira vez aquele luxo não lhe enojou, na verdade causou-lhe imensa satisfação depois de tanta recusa em aceitar aquela nova realidade.
Saiu do quarto de banho e seguiu até a mesa em seus aposentos, onde o jantar já estava servido. Salete a esperava em pé, com um sorriso tão grande que iluminava mais o quarto do que o fogo da lareira acesa e das velas espalhadas.
-- A senhorita parece uma princesa! -- anunciou a amiga, batendo uma palminha ao elogiá-la.
Cecilie puxou uma cadeira e se sentou, apontando o assento vazio ao seu lado indicando que Lete se sentasse.
-- Mas eu sou, Salete. -- revirou os olhos.
-- Mas há algo diferente, senhorita. -- disse a criada ao se sentar, e timidamente puxou um prato para si -- Parece que uma luz acendeu-se sobre você, uma luz que antes estava apagada.
A princesa pensou naquelas palavras enquanto se servia do caldo de cervo com batatas e cenouras. A comida fumegante espantou o frio do início de inverno, que persistia pois a lareira havia sido acesa há pouco.
-- Você é demasiado observadora, querida. -- elogiou a amiga -- Eu e meu pai nos acertamos.
-- Oh... -- quase engasgou-se com o pão que mastigava e apressou-se a engoli-lo -- Isso é uma maravilha!
-- Sim, eu me sinto bem melhor agora, Lete. Sinto que estou de volta ao lugar que sempre me pertenceu.
As palavras que sua mãe lhe dissera naquele sonho delirante, quando despertou depois de ser sido brutalmente envenenada, vieram à sua mente. Será que Cassandra, na verdade, estava se referindo à onde ela estava agora ou ao que pretendia fazer? Cecilie não fazia ideia, e a dúvida persistiria pelo resto de sua existência por culpa de Zaya.
-- Que cara é essa? -- perguntou a criada ao notar uma expressão sombria se formar no rosto da princesa.
-- Salete, o que você pensa da rainha?
-- O que eu... penso? -- a confusão estava clara na voz da mulher -- Não sei se entendi o que quer saber.
-- Não é uma pergunta difícil, só quero saber o que acha dela. -- tentou com afinco tornar sua voz neutra e parecer entediada.
-- Bem...a rainha é... a rainha, oras! Eu não a conheço o suficiente para ter uma opinião dessas.
-- Não conhecê-la não a impede de ter uma opinião sobre ela, Salete.
-- Sim, mas não conhecê-la pode tornar a minha opinião um tanto falsa.
-- Ainda assim você tem uma opinião.
-- Tenho, mas eu não acho que...
-- Mulher, só me diga o que acha de Zaya! -- a interrompeu com um sorriso no rosto, que usou para disfarçar sua frustração com a enrolação da amiga -- Me diga as fofocas sobre ela que acontecem e que já aconteceram no castelo.
-- Tudo bem! -- suspirou resignada -- É só que a rainha não gosta que falem dela, sabe? Uma vez pegou uma criada comentando sobre um vestido que ela usou, dizendo que era do mais fino e caro tecido enquanto ela embrulhava os filhos em sacos de sapê.
Cecilie soltou um suspiro assombrado.
-- E era verdade? A pobre mulher era miserável à esse ponto? E ninguém a ajudou?
-- Sim, ela era muito pobre! Mas a razão disso era porque gastava quase todo o salário com bebidas. Era tão viciada que mal sobrava para comer e vestir.
-- E o que Zaya fez?
-- Ué, a rainha a demitiu!
-- Mas que... vaca! -- exclamou, fazendo Salete arregalar os olhos.
-- Bem, eu achei que foi justo!
-- Como pode dizer isso, Lete?
-- A mulher mal cuidava dos filhos, e no castelo causava desavenças dias sim, dias também! A rainha madou as crianças para um abrigo, as tirando das mãos incapazes da mãe viciada. -- deu de ombros, mergulhando um pedaço de pão no caldo em seu prato -- Desculpe-me se a choquei, mas não consigo me apiedar de uma pessoa que faz os próprios filhos passarem necessidades.
-- Você tem razão, Lete. -- concordou vagamente, enquanto seus pensamentos estavam acelerados pensando naquilo tudo.
-- Além do mais, essa foi uma das poucas que a rainha demitiu. -- silenciou, parecendo pensar melhor -- Na verdade, pelo que me lembro, foi a única. A rainha não gosta de lidar com a criadagem, quem faz isso é a governanta.
-- Mas lidar com essas coisas é função dela, não?
-- Sim, mas a mulher prefere se dedicar apenas aos filhos. Ela quase não desgruda da princesinha, e até mesmo do príncipe herdeiro que já é quase um homem formado. Ela pode ser fria e inexpressiva, mas é uma mãe exemplar... foi por isso que tomou as crianças daquela louca viciada, a rainha não suporta ver crianças sofrerem.
Cecilie encarou a amiga, que estava completamente alheia à complexidade de sentimentos que borbulhava em seu interior. Havia raiva, descrença, desejo de vingança e surpresa. Muita surpresa. Afinal, como alguém poderia dizer aquilo da pessoa que assassinou sua mãe a deixando praticamente órfã?
-- Por que diz isso?
-- A senhorita não sabe? A rainha fez o rei abrir uma Casa de Misericórdia para abrigar as crianças de rua. Isso já há alguns anos. Ela faz algumas visitas periódicas, levando doces e brinquedos. Dentre as crianças é o único lugar onde pode-se ver aquela mulher sorrindo.
-- Isso não faz sentido... -- murmurou inconformada.
Salete estaria falando da mesma rainha que matara sua mãe anos atrás? Estaria Cecilie - e William - enganados sobre o culpado? A explicação mais plausível era que o orgulho e ambição da mulher valia o sofrimento de uma única criança e a morte de um bebê não nascido. Sim, era isso! Tinha que ser.
-- O que não faz sentido? -- a princesa levantou seu olhar perdido de sobre a mesa e encarou a amiga, que a observava cautelosa.
-- Nada, Lete. -- sacudiu a cabeça espantando aqueles pensamentos e sorriu -- Vamos deixar esse assunto para outra hora, sim?
-- Tudo... bem? -- concordou, parecendo ligeiramente confusa.
Finalizaram o jantar e serviram-se de um pedaço de bolo de baunilha cada uma, junto de uma dose generosa de geleia de framboesa. Deliciaram-se com o doce enquanto Salete bombardeava a princesa com as fofocas mais recentes e quentes do castelo. Aparentemente uma criança endiabrada polvilhou pimenta em pó nos tapetes que estavam no sol para secar, o que causou dois dias inteiros de espirros em todos até que o moleque confessasse sua estipulia - depois de se divertir bastante assistindo as crises alérgicas. Também houveram três nascimentos, um deles foi na área de lavanderia, onde nasceu uma menininha que foi batizada de Lavender. O mais recente escândalo era o de uma camareira que assumiu um relacionamento com dois homens - e os três estavam vivendo juntos na mesma casa!
-- Eu não acredito! -- exclamou a princesa, depois soltou uma gargalhada de puro choque.
-- Pois acredite! -- riu-se Salete, extasiada -- Agora as coisas estão se acalmando, pois o marido 1 fez uma cena na cozinha, gritando que a vida deles não era da conta de ninguém!
-- E ele está certo! -- concordou e tomou um gole de seu chá -- E o marido 2, trabalha aqui também?
-- Oh, não... ele é um artesão, faz vasos de cerâmica. Eu passei na loja dele outro dia, por curiosidade, sabe? As peças são muito lindas, e eu entendi o porquê de ela querer os dois homens. -- seu olhar cintilou em admiração -- Os dois são lindos de morrer! Aquela gulosa, eu aqui sem nenhum e ela com dois homens lindos! Diga-me se acha isso justo, Cecilie?
-- Não é, mesmo. Sabe, eu acho que você precisa superá-la! Vou ajudá-la a conseguir três namorados, ou então quatro!
-- Quatro!? -- assustou-se -- Isso é demais para mim, nem tenho tantos buracos para dar conta do recado!
-- Salete do céu... -- as duas mulheres caíram na risada, rindo até a barriga doer e lágrimas de alegria escorrerem por seus olhos.
Cecilie adorava aqueles momentos de descontração, e Salete parecia gostar deles tanto quanto ela. Por fim o riso cessou, e ao notar o breu da noite através da janela a princesa percebeu ser tarde. Thomas não devia demorar a chegar.
-- Esse jantar foi incrível, Lete. Obrigada pela companhia. Vamos repetir na próxima semana com Elsa e Margareth?
-- Sim, vai ser incrível! -- a criada limpou uma lágrima que lhe escorreu, e ainda ria um pouco quando se levantou.
-- Vai ser uma ótima maneira de te ajudar a se distrair um pouco do trabalho que tenho para você. -- Cecilie levantou-se também e ficou de frente para a amiga.
-- Trabalho? -- franziu as sobrancelhas -- Que trabalho?
-- Você, senhorita Salete Owens, vai fazer o meu vestido de noiva. -- anunciou pomposamente.
Lete abriu a boca com a surpresa, depois a fechou e a abriu de novo. Cecilie divertiu-se com aquela expressão e abriu um grandioso sorriso que demonstrou o tamanho da felicidade que sentia. Incapaz de falar uma palavra completa, a reação de Salete foi mais primitiva. A criada soltou um gritinho de animação e pulou para os braços da princesa, que retribuiu ao abraço com alegria. Juntas, as duas mulheres pularam em comemoração. Um estranho sentimento gelado invadiu o peito de Cecilie, fazendo seu coração acelerar ao reconhecer a preciosidade que era ter uma amiga.
-- Parabéns, parabéns, parabéns Cecilie! -- Lete a soltou, e a encarou -- Eu estou tão feliz! Você e o duque formam um casal tão lindo e... -- interrompeu-se -- Oh, mas eu não poderei fazer o seu vestido! Tem que ser a modista real, além do mais a rainha jamais aprovaria essa quebra de protocolos e..
-- Salete! -- a princesa a sacudiu -- Acalme-se! Esqueceu quem eu sou? -- sorriu perversa -- Eu sou Cecilie Mayser Strong, e eu posso fazer a porra que eu quiser!
O duque de Longford ficou quase uma hora na banheira, esfregando-se com afinco para retirar toda a sujeira e suor acumulados sobre si, resultado de tantos dias na estrada e sem banho. Quando saiu da água sua pele estava avermelhada e as gotículas lhe escorriam pelo abdômen traçando desenhos indistindos que desciam por todo seu corpo. Quando seguia em direção à toalha passou em frente ao espelho de chão e estancou seus passos, depois encarou-se no espelho atentamente analisando as mudanças físicas que sofreu desde que conhecera Cecilie seis meses antes. A mais aparente delas eram seus cabelos, que outrora caíam em ondas sedosas sobre os ombros, mas que agora eram raspados rente à cabeça. Entretanto haviam mudanças mais sutis e que, para ele, significavam mais. Ele havia emagrecido um bom par de quilos, e agora seus músculos eram torneados e firmes. Suas mãos, antes lisas e bem cuidadas, agora tinham calos e uma coleção de cortes causados pelos treinos e pela batalha. Suas feições, que antes eram divertidas e sorridentes, agora eram desconfiadas e carregavam uma escuridão que era resultado do luto e ódio que o consumiu nos últimos meses.
Mas a maior mudança de todas foi a interior, foi em sua essência. Comparado à quem um dia fora, Thomas agora era sombrio. Sua alma fora corrompida quando se entregou aos sentimentos ruins que vieram sobre ele como feras selvagens quando Cecilie se entregou à Irmandade para salvá-lo, nos dias seguintes àquilo ele tentou se manter forte mas ao ver o corpo naquela carroça ele se entregou. Se o diabo em pessoa lhe aparecesse fazendo uma oferta em troca de sua vingança, o duque se venderia sem pensar. Riu debochado de tal pensamento, afinal na verdade foi mais ou menos aquilo que ele fez. Se entregou à sentimentos obscuros e se arrependia daquilo. Não, não se arrependeu de matar aqueles desgraçados. Thomas se arrependeu de gostar de matá-los.
Lembrou-se da briga que teve com Cecilie certa vez, quando ela ainda era apenas Nix, onde a acusou de ser um monstro por ter cometido tantas atrocidades. Envergonhou-se de suas duras palavras e percebeu o quanto fora um tolo inocente ao dizê-las à mulher. Depois de tudo o que viveu, o duque percebeu que ninguém é inteiramente bom ou mal, que nenhuma alma é incorruptível, que ninguém passa por tanto sofrimento sem macular seu espírito. Mas então o que define se uma pessoa é do bem ou do mal? Suas intenções? Sua capacidade de manter seu leão interno sob controle? Ele não sabia, e tudo ainda era muito recente para que tivesse a resposta dessa pergunta. A linha que separa o bem do mal agora lhe parecia muito tênue, as nuances que lhe eram brancas ou pretas agora pareciam cinzas.
Um leve tremor sacudiu seu corpo, o despertando de suas divagações filosóficas. Precisava vê-la, senti-la, precisava estar com Cecilie para recuperar a humanidade que lhe parecia tão distante agora. Antes de buscar a toalha olhou-se mais uma vez no espelho, agora encarando seus olhos. Viu no brilho dourado as marcas da guerra, fechou-os com força e uma única cor acusatória brilhou na escuridão de suas pálpebras. Vermelho. Vermelho do sangue dos que matou, vermelho da pira funerária fumegante que transformou dezenas de corpos em pó. Que final mais lamentável aqueles homens tiveram... queria que tudo tivesse sido diferente, que essa maldita guerra nunca houvesse começado, que Cassandra estivesse viva e que sua amiga Cecilie jamais houvesse desaparecido. Mas a vida não foi gentil com eles, infelizmente. E Thomas sabia que, se precisasse, faria tudo de novo. Por ela ele entregaria cada parte de sua alma de bom grado, aceitaria os traumas sem reclamar, sem hesitar.
Partiu para secar o corpo, apressado, trêmulo pelo frio que o invadia sem piedade. Vestiu-se o mais rápido possível e saiu quase correndo até os aposentos da princesa. Cecilie espantaria as trevas que cercavam sua mente tentando sufocá-lo, afinal a mulher conhecia aqueles sentimentos intimamente, tendo lidado com eles por anos a fio. Ao se aproximar das portas do quarto dela, os soldados em guarda o cumprimentaram e iam anunciá-lo quando o duque ouviu o som mais magnífico de todos: a risada dela. Estancou abruptamente e sentiu seu peito inundar em regozijo. Cecilie ria alto de alguma coisa que Salete lhe dizia num zumbido indistinto que, do lado de fora, ele não compreendia. Sem nem mesmo perceber um sorriso mínimo curvou seus lábios, e levantou uma mão para impedir o guarda de abrir a porta. A princesa estava se divertindo com a amiga, ele não ousaria interrompê-la. Mesmo que precisasse de seu calor, de sua luz para tirá-lo da escuridão da culpa, ele esperaria.
Cumprimentou os soldados num aceno breve e deu-lhe as costas retornando aos seus aposentos, onde fez um jantar solitário.
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