Capítulo 7 - "Eu faria o que fosse necessário"
Enquanto sacolejava na carroça que seguia até a vila para a compra dos suprimentos da Irmandade, Nix repassava seus esquemas pela - centésima?- vez. O desenrolar daquele dia seria decisivo para ela e também para Thomas, sendo ele parte importante dos dois planos que criou durante a madrugada. O mais fácil e prazeroso deles seria matá-lo ela mesma, caso descobrisse que as palavras que lhe sussurrou na escuridão do calabouço eram nada além de mentiras. Uma parte dela, cruel e sombria, rezava para que isso de fato acontecesse. Entretanto dentro dela também havia outro desejo, tão intenso quanto aquele, senão mais. Ela torcia para que ele houvesse falado a verdade, ansiava ter a certeza de que aquelas pessoas estavam vivas e bem, protegidas da prostituição, fome e miséria. Aquele povo já sofreu tempo demais, eles mereciam uma vida digna. E quando descobrisse de uma vez por todas o responsável por fazê-los sofrerem por tantos anos, ela agiria e lutaria com tudo o que tinha. Seja contra o rei Abenforth ou contra seu mestre.
-- Você está quieta. -- apontou Rosene, sua companheira de viagem -- Quero dizer, mais do que o normal.
A mulher bufou, irritada, e agitou as rédeas para fazer os dois cavalos que as puxavam irem mais rápido.
-- Eu odeio usar vestido! -- reclamou -- E nem vou mencionar sobre essa droga que você fez com meu cabelo.
-- Deixe de ser boba, você está linda! -- abanou uma mão no ar, como se tentasse espantar o desconforto da mais jovem.
-- Eu estou com um ninho de pássaros na minha cabeça!
-- Isso se chama coque alto, Nix, está na moda.
-- É ridículo! E machuca meu couro cabeludo. -- ela percebeu que soava como uma menininha mimada, mas não se importou o suficiente para parar -- E o vestido é completamente desfuncional, sabe? Como vou correr e lutar com quatro quilos de tecido nas minhas pernas?
Rosene suspirou, entediada.
-- Você não vai. Suas ordens são para se misturar na vila sem levantar suspeitas. Usar aquela sua capa medonha junto de uma espada chamaria o tipo de atenção que queremos evitar.
Sim, ela ouviu exatamente aquilo de Willk no café da manhã e detestou a ordem. Odiava ainda mais agora que o espartilho a apertava e o tecido muito justo pinicava seus braços.
-- Deveria estar grata, querida, já que ganhou uma manhã ao ar livre, sem toda aquela ferocidade masculina borbulhando à sua volta.
-- Eu ainda estou em uma missão, Rosene. -- Nix a lembrou.
-- Sim, mas uma em que pode se divertir para variar. -- deu de ombros -- Você sequer já deu uma olhada ao seu redor?
Sempre saiba extamente onde está. Revirou os olhos ao se lembrar de mais um dos diversos ensinamentos de seu mestre.
-- É claro que eu olhei. Estamos na estrada dos Buracos, há seis quilômetros da fortaleza e há um quilômetro da vila do Cervo Galhado.
Rosene riu alto, uma gargalhada quase musical. O som a encantou e irritou.
-- Um típico soldado, sem dúvidas. Não foi o que eu quis dizer, Nix. Você notou que as árvores frutíferas já estão florindo? Ou percebeu o canto dos pássaros anunciando o início da primavera?
A mulher olhou ao redor e observou as árvores que margeavam a estrada notando, aqui e acolá, pontos coloridos das frutas que viriam. O branco, rosa e amarelo sobrepostos ao verde das novas folhagens eram chamativos e muito belos. Depois, ela aguçou a audição e ouviu o piar de vários passarinhos, próximos e distantes, que pareciam demasiado felizes em seus afazeres. Nix compreendeu imediatamente o que Rosene quis dizer.
-- Eu fui treinada para observar as pessoas, Rose. Detectar um inimigo que esteja disfarçado ou até mesmo camuflado. Persegui-lo sem que ele perceba, matá-lo com ou sem dor. Não fui ensinada a ver a beleza das coisas.
Nix pretendia soar séria e concisa na intenção de finalizar aquela conversa estúpida. Mas percebeu que, na verdade, acabou por parecer... magoada. Rose demorou a se pronunciar, parecendo analisar suas palavras e, mais importante, a faísca emocional em seu tom.
-- Isso você pode aprender sozinha. -- disse a mais velha suavemente.
Seria ela capaz de se ensinar aquilo? Procurar algo belo com a única intenção de apreciá-lo? Ela gostaria muito. Mas primeiro precisaria da segurança de não ter de olhar por sobre o ombro a cada minuto, ou preocupar-se com perigos à espreita e ter de lutar para viver. Precisaria que a guerra finalmente acabasse.
-- Rosene, se você pudesse... -- parou, reconsiderando, e balançou a cabeça em negativa -- Deixe para lá.
-- Me diga. -- pediu -- Por favor.
Nix olhou detalhadamente para a mulher, que parecia diferente ao ar livre, parecia mais viva, mais verdadeira.
-- Se você pudesse tornar o mundo um lugar melhor, o que faria?
Corrigiu rapidamente a direção que os cavalos tomavam, voltou a observá-la e viu no fundo de seus olhos um lampejo de esperança.
-- Eu faria o que fosse necessário. -- afirmou determinada -- Eu mataria quem fosse preciso.
-- Mesmo que desmaiasse ao ver o sangue? -- perguntou Nix e sorriu para ela, fingindo divertimento para ocultar sua inquietação.
-- Eu desmaiaria quantas vezes fossem preciso.
Algo mudou no ar com aquela frase e ambas silenciaram, observando a estrada sem vê-la completamente, imersas nos próprios pensamentos tumultuados. O estômago de Nix estava revirado, como se a alertasse de que tudo estava para mudar. Mas ao mesmo tempo ela se forçava a ser racional e paciente, afinal, poderia descobrir que tudo o que Thomas lhe disse era mentira e que há uma boa razão para Willk esconder uma ou outra coisa dela. Sequer pensar que ele a manipulou por tanto tempo a causava náuseas, mas forçava-se a cogitar aquela possibilidade mesmo que a repudiasse. Não poderia se permitir mais ser enganada, mesmo que significasse, pela segunda vez em sua vida, perder tudo. O último quilômetro passou num borrão e logo chegaram à vila. Rosene iria cumprir seus afazeres e Nix daria uma passada casual na estalagem e, depois, iria para onde achasse conveniente e produtivo. Parou a carroça perto do boticário e já ia descendo quando sentiu um aperto férreo em seu braço.
-- Prometa que vai tornar o mundo um lugar melhor, Nini.
A mulher a chamou pelo apelido que usava nos primeiros anos dela na Irmandade, com uma pontada de afeto na voz.
-- Sabe que eu odeio promessas, Rose.
Ela percebeu que Rosene parecia querer dizer algo mais e que estava em dúvida se deveria ou não. Decidiu não pressioná-la, desceu da carroça tentando não tropeçar na porcaria do vestido, e amarrou os cavalos num poste de madeira. A outra veio logo atrás, subitamente animada.
-- Bem, é isso, então! Até breve! -- disse alegre demais, a abraçou - abraçou! - e acrescentou -- Um pacote secreto e urgente chegou da Cidade das Rosas na semana passada, enviado por Zach. Era escoltado por oito irmãos. Eu não sei o que ele está mandando você buscar, mas se fosse tão importante quanto lhe disse pela manhã, não a enviaria até lá sozinha.
Rosene disse aquilo tão baixo que, por meio segundo, Nix achou que houvesse fantasiado aquelas palavras. Enrijeceu a coluna com o peso do que ouviu e logo Rose a soltou, aparentando grande animação, e enfiou-se na botica. A mulher ficou parada na calçada por mais alguns segundos, estarrecida com a confidência que acabara de receber, com o que aquilo significava. Olhou ao redor vendo os transeuntes da vila seguindo com suas tarefas, completamente alheios ao fato de que Nix sentia-se despedaçada, de que sentia que sua vida estava prestes a estilhaçar-se sobre ela. Mas... talvez Rosene tivesse compreendido mal. Afinal, como uma cozinheira poderia ter conhecimento sobre pacotes secretos que chegavam para o mestre? Seria Rosene algum tipo de espiã? Mas para quem trabalhava? Por que ela lhe disse aquelas coisas?
Suspirou e saiu caminhando decidida até a estalagem. As saias de seu vestido farfalhavam a cada passo, o som quase abafado pelo ribombar de seu coração acelerado. Aquilo poderia ser um teste. Willk seria ardiloso o suficiente para envolver Rose naquilo, para orquestrar aquela conversa a fim de testar a lealdade de Nix para com seu mestre. Sim, ela deveria ser cuidadosa. E mais importante, descobrir a verdade por si mesma. Chegou ao seu destino, corrigiu a postura para assumir seu papel e estampou um doce sorriso nos lábios. Passou pelas portas de madeira e adentrou o salão, encontrando ali apenas duas pessoas: um nanico do outro lado de um balcão, e uma mulher jovem - talvez mais jovem que ela - sentada numa mesa ao canto do salão, com uma pequena mala aos seus pés e parecendo ansiosa.
-- Vai um quarto, moça? -- perguntou o homem no balcão.
-- Oh, bom dia senhor! -- cumprimentou alegre e seguiu até ele -- Na verdade estou apenas de passagem pela vila, aguardando a próxima carruagem-correio para a Cidade das Rosas. Tenho interesse apenas em uma refeição, soube que a sua cozinheira é a melhor.
O homem baixinho ficou cabisbaixo, desanimado por ela não ser uma hóspede mais duradoura.
-- Sim, Marlee é a melhor num raio de um quilômetro, sem dúvidas. Já passou um pouco da hora do café, mas deve haver alguma coisa ainda. Sente-se que logo irei servi-la. -- apontou o amontoado de mesas e cadeiras do outro lado da sala e saiu mancando.
Nix tinha apenas duas horas para perambular pela vila, pois disse a verdade ao homem e partiria no próximo comboio da carruagem-correio para cumprir a missão que Willk lhe designou. Deveria chegar na Cidade das Rosas próximo à alvorada e de lá receberia uma carruagem de Zach, junto do pacote misterioso para retornar à fortaleza. Portanto ficaria ali o menor tempo possível para que pudesse visitar outros locais antes de ter de seguir viagem. Apressou-se até uma das várias mesas vazias e sentou-se enquanto aguardava que o estalajadeiro lhe trouxesse a refeição. Sua única companhia naquele salão vazio - a jovenzinha com uma mala - olhava atentamente a rua através da janela e retorcia as mãos sobre seu colo, num gesto nervoso. Achou improvável que ela lhe fornecesse alguma informação relevante, mas já que estava ali, decidiu tentar.
-- Está um belo dia, não? -- tentou puxar conversa.
A jovem tirou os olhos da janela, relutantemente, e virou-se para ela.
-- Sim, muito agradável. -- concordou educadamente e retornou à sua vigília.
-- Eu diria que está perfeito para uma viagem! -- continuou -- Vai partir para a Cidade das Rosas também?
-- Estou esperando um amigo. -- dessa vez a jovem nem mesmo olhou para ela.
-- Esteve hospedada aqui por muito tempo?
A garota suspirou, claramente incomodada por sua insistência.
-- Um ou dois dias.
-- Um ou dois? Não se lembra de quando chegou aqui? -- não foi capaz de segurar a provocação.
Desta vez a jovem se virou totalmente em sua cadeira para encará-la e lhe lançar toda sua atenção.
-- O que você quer? -- perguntou desconfiada.
-- Não precisa ser grossa, senhorita -- deu de ombros -- Apenas soube que um conhecido estava na cidade e imaginei se não o encontraria nesta estalagem. Talvez o tenha conhecido em seus um ou dois dias aqui.
-- Talvez seja o homem que ocupa o quarto do segundo andar. -- ela relaxou a postura tensa -- Nate.
-- Impossível. Meu amigo se chama Tom.
A garota sobressaltou-se, levantou imediatamente, sorrindo, e pegou sua pequena mala.
-- Houveram poucos hóspedes durante minha estadia, senhorita. O único homem que conheci foi o senhor Nate. -- disse enquanto se encaminhava rapidamente para a porta -- Preciso ir, faça uma ótima viagem.
Nix se levantou para ir atrás dela, porém no mesmo instante o homenzinho retornou trazendo uma bandeja.
-- Simples, mas delicioso! -- ele disse ao colocá-la sobre a mesa.
-- Na verdade, senhor, lembrei-me de que preciso comprar alguns suprimentos para minha viagem. -- mentiu e entregou-lhe uma moeda de prata -- Poderia embrulhar a comida enquanto eu bebo o café?
O homem arregalou os olhos para a moeda que era uma quantia obcena por um café da manhã.
-- Sim, sim! Claro, senhorita, claro! -- o homem praticamente saltitava de alegria -- Vou acrescentar uma porção de carne seca e de torta de rim, que tal?
-- Creio que eu mereça duas porções de cada, sim? -- pediu, mostrando dois dedos.
Ele acenou afirmativamemte, correu até a cozinha e ela o aguardou, tomando seu café pacientemente. Pretendia interrogar a garota novamente, e não rompeu numa corrida frenética atrás dela por apenas uma razão: duvidava que estivesse muito longe, já que estava tão compenetrada em sua observação daquela janela enquanto esperava por seu suposto amigo. Terminou seu café e caminhou até a janela. Tudo o que via eram os fundos da minúscula capela da vila.
-- Aqui, senhorita, aqui. -- o homem voltou estendendo-lhe uma sacola de pano de tamanho considerável, ainda agitado de euforia.
Ela pegou sua refeição e seguia até a porta.
-- Mais uma coisa, meu amigo Tom esteve hospedado aqui por esses dias.
-- Ah sim, o viajante. -- riu -- Homem festeiro! Pagou uma semana adiantado, mas não aparece aqui desde a noite passada. Deve ter encontrado companhia nos braços de... -- calou-se envergonhado e tossiu.
-- De uma mulher, sim -- gargalhou -- Isso é bem a cara do Tom. Bem, quando o vir diga que Jane esteve aqui e lhe deixou um abraço. Tenha um ótimo dia.
Saiu e olhou ao redor. Nada da garota. Foi então até a taverna e a conversa ali era que o amigo Tom havia ido embora num trabalho urgente. Na padaria, lhe disseram que o novo viajante da vila era um bebum que deveria estar desmaiado sob algum arbusto. Na loja de doces, a informaram que ele adoeceu e jazia na estalagem agonizando em seu leito de morte. Seguiu até a capela divertindo-se com o quanto todas aquelas fofocas sem pé nem cabeça divergiam entre si. Se perguntasse em mais algum lugar, provavelmente lhe diriam que o viajante Tom se transformou numa mariposa gigante na noite passada e saiu voando céu a fora. Ao se aproximar da capela diminuiu os passos, seguindo até os fundos desta, encontrando a garota sentada sobre a própria mala, com feição ainda mais ansiosa do que antes.
-- Nos encontramos novamente. -- disse soando distraída, com um sorriso.
A jovem se assustou e levantou, olhando ao redor buscando uma rota de fuga, completamente assustada.
-- Não precisa temer, querida. -- a acalmou e jogou sua isca -- Tom me enviou.
A moça abriu a boca, surpresa, e levou as mãos ao coração.
-- Graças a Deus! -- exclamou de olhos marejados.
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