Capítulo 62 - "Mantenha-se firme"



     Uma semana se passou e o reino estava um alvoroço total. O Conselho havia anunciado o alerta de guerra e os sinos replicaram por uma hora inteira, em todas as cidades, na intenção de comunicar aos cidadãos o que estava acontecendo. O rei decretou novas leis que entraram em vigor imediatamente, e em apenas sete dias tomou o controle de três Cidades Fortes - além de Vila Violeta e a Cidade das Rosas. O toque de recolher acontecia uma hora após o pôr do sol, e quem fosse pego nas ruas além do horário seria investigado e mantido preso até que se provasse inocência. Todos os súditos do sexo masculino a partir de dezesseis anos deveriam se alistar no exército de sua majestade, independentemente de sua vontade de seguir carreira militar ou não. Além disso homens até sessenta anos também deveriam se apresentar, salvo as excessões que pudessem comprovar enfermidades ou deficiências. 


     Mulheres também tinham suas tarefas à serem cumpridas. As casas mais próximas à Cidade Real receberam metros e metros de tecidos para costurarem uniformes para os novos recrutas do exército. Crianças recolhiam galhos de árvores que poderiam ser aproveitados, sejam em flechas ou nas dezenas de fogueiras espalhadas no acampamento de guerra localizado nas beiras externas das muralhas de contenção. Nas cidades mais distantes de onde o reino se preparava para a guerra, as mulheres e crianças que viram seus pais e maridos partirem tiveram de arcar com as obrigações da lavoura, ordenha, ou o que quer que os homens tivessem deixado para trás. Eram tempos difíceis e todos deveriam fazer o que fosse necessário.


     Como sempre souberam que esse dia chegaria, as reservas de provisões estavam bem abastecidas. Entretanto o racionamento era necessário, pois ninguém poderia imaginar até quando aquela situação se estenderia. Grãos de diversos tipos começaram a ser vigiados constantemente, e liberados aos poucos para alimentar as tropas e as cidades mas empobrecidas. Cidadãos em extrema pobreza e sem condições de se defenderem foram acolhidos dentro da Cidade Real deixando as Casas de Misericórdia mais apinhadas de pessoas do que o costume. O porto também estava sob comando do rei, e cada navio que zarpava ou atracava era vistoriado com atenção, e deveria apresentar documento legal constando o motivo da viagem. Os comerciantes passaram a buscar mercadorias com menos frequência e em um mês os preços já haviam subido.


     Mesmo num clima tão pesado, onde todos tinham a contínua sensação de que o caos explodiria à qualquer momento, não foi encontrado nenhum sinal de William ou da Irmandade das Sombras. Estavam silenciosos demais, deixando a população do reino ainda mais tensa. E nesse exato momento a rainha Zaya dava vazão à apreensão que a dominou no último mês, soltando um gemido intenso enquanto sentia suas entranhas se revirarem num orgasmo violento. Não demorou muito e seu companheiro também foi arrebatado pelo gozo, e o homem saiu de dentro dela no exato momento em que sua semente jorrava, despejando-a ao chão sobre um pedaço de pano. Ainda arfando pelo sexo a mulher imediatamente se apressou à se recompor, colocando as saias no lugar e conferindo seu cabelo.


-- Não há um fio fora do lugar, majestade. -- anunciou o homem com um sorriso zombeteiro, enquanto apanhava o pano sujo e o jogava à um canto -- Usa tantos grampos em seus cabelos que nem uma tempestade seria capaz de tirá-los do lugar. Que dirá um pobre homem como eu.


-- Você é minha tempestade particular, Robert. -- sorriu para seu amante que terminava de ajeitar suas vestes.


-- Oh, minha rainha, longe disso. -- se aproximou e deu-lhe um beijinho casto nos lábios -- Sou apenas uma chuvinha refrescante de verão.


-- E isso é tudo o que preciso. -- o segurou pela nuca, puxando-o para um beijo mais ardente em despedida -- Agora, vamos. Está quase fazendo com que eu me atrase para o almoço, soldado.


     Tentou fazer com que sua voz soasse severa, mas o sorriso que abriu em seguida invalidou seu esforço.


-- Talvez queira me castigar mais tarde, majestade? -- o homem lançou uma piscadela sedutora, fazendo o sorriso da rainha aumentar ainda mais.


     Quando Robert tocou a maçaneta, ambos respiraram profundamente e ocultaram a felicidade da paixão que compartilhavam sob uma máscara de neutralidade. A porta foi aberta e Zaya saiu de seu aposento em passos leves e postura elegante, a expressão vazia como se nada tivesse acontecido há dois minutos atrás. Sendo seguida de perto por Robert, o soldado que era seu guarda pessoal há cinco anos e amante há seis, rumou até a sala de refeições. Nos primeiros meses de seu romance com o soldado, Zaya ficou extremamente na defensiva. Sentia-se culpada e desconfortável, como se todos no castelo soubessem sobre sua infidelidade. Claro que o homem não fora seu primeiro amante, houveram outros antes dele, mas nenhum daqueles pomposos aristocratas significaram algo para ela. Mas Robert... ah, aquele homem de origem humilde e jeito brincalhão arrebatou seu coração que era sempre tão comedido. Desde a primeira vez que se viram, enquanto ela fazia uma caminhada nos jardins para absorver a luz do sol após um rigoroso inverno, ele a conquistou. Naquele dia o sorriso do novo soldado a aqueceu mais do que o calor do sol, derrubando barreiras que antes achava intransponível. Seu preconceito, sua afeição ao poder e riqueza, tudo isso perdia a importância quando estava junto dele. E quando o via brincar com Crystal nas raras interações que conseguiam, Zaya sentia-se completa. Sentia o desejo de fazer aqueles momentos pai e filha mais frequentes, mas seria arriscado demais e alguém poderia perceber as semelhanças entre eles, como os cabelos levemente ruivos e o formato dos olhos. O rei sabia perfeitamente sobre sua infidelidade, mas a parte dela no acordo era manter isso em absoluto segredo e por mais que seu tolo coração apaixonado quisesse gritar aos quatro ventos que amava Robert, ela não faria aquilo. Sua lealdade ao seu marido e suas responsabilidades para com a Coroa vinham antes de suas emoções.


    Chegando na sala de refeições, encontrou todos à sua espera. Os homens se levantaram em respeito e Zaya seguiu até seu lugar trazendo um sorriso discreto como pedido de desculpas pelo seu atraso. Passou os olhos pela mesa incomumente cheia, cumprimentando as esposas dos Conselheiros que estavam hospedados no castelo até que o rei finalizasse o alerta de guerra. Apenas três homens permaneciam ali, dois deles casados. O restante estava cumprindo missões que lhe foram designadas pelo rei, e suas respectivas esposas estavam sendo cuidadas em suas próprias casas, vigiadas por soldados. Sorriu internamente ao imaginar quantos bastardos haveriam ao final daquela guerra, e quantos homens seriam inteligentes o suficientes para perceberem que haviam sido traídos.


     A refeição teve início e transcorreu sem problemas. Abenforth manteve-se silencioso e taciturno, mas aquilo não era nenhuma novidade, já que aquele humor estava sendo contínuo no rei desde que Cecilie desaparecera. Pobre homem. Seu coração de mãe verdadeiramente se compadecia dele, entendia sua dor e voluntariamente partilhava dela. Claro que no fundo de seu coração não estava sofrendo, sua vida estava talvez em sua melhor fase, mas tinha empatia o suficiente em seu coração para sentir pena de seu marido. E de seu sobrinho. Levou o olhar até o duque discretamente, observando-o brincar com a comida em seu prato. Havia perdido peso, as olheiras arroxeadas ao redor de seus olhos estavam cada vez mais aparentes e nunca mais o viu sorrir. O cabelo fora raspado, mas já parecia ter crescido alguns centímetros. Suspirou sentindo um aperto no coração ao perceber que Thomas nunca mais seria o homem extrovertido e risonho que um dia fora. Não enquanto sua metade não voltasse para ele.


-- Senhoras, me acompanham num chá às três da tarde? -- convidou as damas quando a refeição teve fim.


-- Será uma honra, majestade. -- concordou uma delas, sorrindo-lhe animada por estar recebendo a atenção da rainha.


-- Oh, sim, minha rainha. -- exclamou a outra, ainda mais emocionada -- Será um prazer. Imagino que por ser uma ocasião informal, minha filha Genevieve possa vir? Ela tem quinze anos, está prestes à ingressar em nossa sociedade.


     Sim, Zaya conhecia Genevieve. Na verdade, parecia que a rainha a conhecia desde sempre pois sua mãe não sabia falar de outra coisa em sua presença. Tinha quase certeza de que a mulher estava empenhada em empurrar sua filha para os braços de Christopher, mas fingia não perceber para poupar seu filho de aborrecimentos. O príncipe ainda era jovem demais para começar à ser apresentado à pretendentes.


-- Perfeito, lady Marshall. -- ao ver Thomas finalizar seu suco e se preparar para sair, Zaya apressou-se -- Se me derem licença.


     Os homens se levantaram mais uma vez enquanto a rainha se retirava, seu olhar cruzando brevemente com o de Robert ao sair da sala de refeições. Atrás das portas ela estancou, esperado pelo duque que demorou quase dez minutos para sair.


-- Thomas? -- chamou quando passou por ela sem nem mesmo percebê-la.


     O homem cessou seus passos e a encarou, o semblante extremamente abatido.


-- Sim, tia Zaya? -- sua voz soou vazia de sentimentos.


-- Podemos conversar um momento? -- pediu em voz suave.


     O sobrinho hesitou por um instante, cerrando os dentes tão fortes que o movimento ficou perceptível em seu maxilar. A rainha estava tentando conversar com ele há um mês mas ainda não havia conseguido, pois Thomas lhe dava desculpas esfarrapadas e fugia dela como o diabo foge da cruz. Em respeito à sua dor não havia insistido, mas aquilo estava passando dos limites. Quatro longas semanas haviam se passado e o duque não reagia, Zaya o estava observando sucumbir à sua dor e desespero. Por fim, após muito pesar, concordou com seu pedido num dar de ombros desinteressado.


-- Ótimo. -- a rainha comemorou aquele pequeno avanço e cruzou seu braço no dele, acompanhando-o até a sala de visitas em sua ala do castelo.


     Quando chegaram lá, Thomas se largou no sofá pesadamente e Zaya sentou-se à sua frente numa poltrona larga. O silêncio dominou o ambiente por alguns segundos enquanto pensava qual seria a melhor maneira de abordá-lo, pois estava sendo tão arisco nos últimos dias que tinha certeza de que qualquer palavra errada o faria sair correndo.


-- Estou preocupada com você, querido. -- começou suavemente.


-- Tia, eu não sei o que a senhora quer que eu diga.


-- Qualquer coisa que queira, Thomas. Talvez se desabafar o que está sentindo ajude à ser mais fácil.


-- Eu não estou sentindo nada. -- a voz dele soou tão desprovida de emoções que Zaya realmente acreditou naquilo.


-- Você precisa encontrar algo que lhe dê forças para seguir em frente e lidar com o que está acontecendo, Thomas! Não pode sucumbir à essa angústia, querido. Precisa se manter firme, pois quando Cecilie retornar precisará de você.


     Suas últimas palavras fizeram uma faísca lampejar no castanho dourado de seus olhos, e as sobrancelhas grossas se franziram em algo selvagem.


-- A senhora realmente acredita nisso? -- a voz do sobrinho saiu incerta, insegura, lembrando-a da criança insegura e medrosa que ele um dia fora -- Que ela irá voltar?


-- Você não? -- tentou fortemente lhe passar alguma esperança.


-- A senhora não me respondeu. -- arqueou uma sobrancelha em clara desconfiança.


     Zaya suspirou e se levantou, caminhou com calma até o sofá e se sentou ao lado do duque, tomando-lhe uma das mãos que apertou entre as suas com carinho.


-- Eu prefiro me manter esperançosa, até termos certeza de alguma coisa. -- percebeu o homem estremecer levemente ao pensar no que o "alguma coisa" significava -- Você pode pelo menos tentar, não é?


-- Tia... -- as palavras desapareceram de seus lábios, e percebeu os olhos dele manejando -- A senhora já foi tão feliz a ponto de acordar um dia e dizer que encontrou seu lugar no mundo? Já amou tanto alguém que quando se foi, levou junto não apenas uma parte sua, mas tudo de melhor que existia dentro de você? Se compreender essas sensações, talvez consiga imaginar como me sinto. E o pior... -- percebeu sua voz engrossando pelo despejo daquelas emoções contidas -- O pior é a incerteza. É não saber se ela ainda respira, não saber onde ela está! Ah, e claro, não vamos nos esquecer de que ela foi levada por culpa minha! Foi minha culpa, tia, eu fui um idiota, um maldito idiota! Eu a matei, tia Zaya... -- um soluço escapou de seus lábios trêmulos, junto das lágrimas que começaram à escorrer livremente.


     Sentindo o coração pesado ao ver seu amado sobrinho naquele tormento, a rainha o puxou para um abraço. Thomas não recusou, pelo contrário. Abraçou a mulher como se ela fosse sua salvação, prendendo-se nela para evitar afogar-se em seu desespero infinito. Ficaram ali por algum tempo, Zaya acariciava as costas dele e lhe sussurrava palavras encorajadoras, mesmo que não acreditasse muito nelas. Afinal, caso se permitisse ser brutalmente honesta consigo mesma, a verdade que ninguém queria admitir era que Cecilie já estava morta. Tudo o que precisavam era de uma confirmação. As lágrimas do sobrinho por fim cessaram e ele não demorou à se afastar, ligeiramente constrangido, enquanto limpava o nariz.


-- Desculpe-me por isso. -- pediu evitando seu olhar.


-- Não há o que desculpar. -- acariciou os cabelos espetados rentes à sua cabeça, num segundo de incomum demonstração de afeto -- Sente-se melhor?


-- Na verdade, sim. Se eu soubesse que tudo de que precisava era chorar feito um recém nascido, teria feito isso antes. -- tentou sorrir divertido, mas o sorriso não lhe chegou aos olhos -- Obrigado, tia.


-- Mantenha-se firme, Thomas. -- pediu encarando-o seriamente -- Pode me prometer isso?


     O sobrinho levou uma de suas mãos aos lábios e a beijou com carinho.


-- Eu prometo tentar. -- garantiu, igualmente sério.


-- Bem, suponho que por hora isso seja o suficiente. -- levantou-se e arrumou os amassados em suas saias -- Agora preciso passar um tempo com Crystal, senão...


     Sons fortes de passos nos corredores a distraíram de sua fala, chamando sua atenção para uma comoção acontecendo lá fora. Trocou um olhar aturdido com Thomas por apenas um segundo, pois no seguinte a porta da sala de visitas foi aberta abruptamente. Robert estava pálido e estático, a mão ainda firme na maçaneta, os olhos verdes arregalados em surpresa.a


-- O que aconteceu, homem? -- perguntou o duque, ansioso.


-- A princesa... -- foi só o que conseguiu disser, pois imediatamente Thomas se colocou em movimento.


     O sobrinho correu porta a fora na velocidade do vento, e Zaya seguiu atrás dele sentindo o coração acelerar em expectativa à cada passo. Levaram menos de cinco minutos para atravessarem todo o castelo, encontrando criadas e soldados igualmente apressados pelo caminho, todos desesperadamente aliviados com o retorno de Cecilie. Ao alcançarem o pátio, a rainha notou uma velha carroça presa à um único cavalo acizentado de aparência desnutrida. Desceu as escadarias procurando onde a princesa estaria, mas não a encontrou em lugar algum. Entre a multidão silenciosa que começou a cercar a carroça, Zaya avistou o rei encarando a parte de trás do veículo, pálido e de olhar distante. Forçou passagem entre os curiosos e antes mesmo de se colocar ao lado de Abenforth um cheiro pútrido invadiu suas narinas. Era pegajoso e adocicado, tão forte que chegava à senti-lo sobre sua língua. Estancou seus passos e levou sua mão ao nariz, para tentar não mais sentir o cheiro da podridão que vinha do cadáver da princesa que a carroça levou até eles.

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