Capítulo 60 - "Estou sentindo culpa o suficiente por nós dois"



     Tudo em que Thomas conseguiu pensar nesses dias em que esteve sendo mantido em cativeiro, foi o quão precipitado ele havia sido. Em retrospecto, percebeu que sua atitude impensada colocou absolutamente tudo à perder, e agora pagaria o preço por ser tão tolo e passional. Sua discussão com Cecilie o havia tirado do sério, mas depois do que viveu nos últimos meses ele deveria ter sido mais cauteloso e não ter fugido na primeira dificuldade. Desde que estavam juntos, aquela fora apenas a primeira briga real deles e o duque não passou no teste de resistência da vida em casal. Na verdade ele havia pensado apenas em si mesmo, pois suas motivações para sair da Cidade Real deixando sua amada para trás foram puramente egoístas e mesquinhas. Queria que a princesa sofresse com o vazio de sua ausência e que percebesse e admitisse de uma vez que o amava, entretanto tudo o que conseguiu foi se mostrar um grandecíssimo idiota.


     Estava quase na segurança de sua propriedade quando tudo aconteceu. Um criado terminava de descer os degraus da porta da frente para recebê-lo e o caos irrompeu ao redor deles na forma de dezenas de soldados da Irmandade atacando-os. Thomas bravamente tentou lutar, mas estava desarmado e não tinha as habilidades necessárias para se defender de tantos agressores ao mesmo tempo. Foi fácil para a Irmandade subjugá-lo, e a última coisa que viu antes de receber um golpe na nuca que o apagou, foi sua casa pegando fogo. Nos últimos dias, não sabia ao certo quanto pois aquele maldito porão não recebia luz do sol, ele rezou fervorosamente para que seus criados houvessem conseguido escapar das chamas e dos assassinos à espreita. Também rezava para que Cecilie o perdoasse por ser tão estúpido e para que o rei à impedisse de fazer exatamente o que Willk esperava que a mulher fizesse.


     Em momento algum desde sua captura o mestre da Irmandade fez segredo sobre a razão de seu sequestro, pois tudo o que aquele desgraçado queria era que Cecilie viesse resgatá-lo. Willk garantiu que o perdoou por sua fuga, afinal estava apenas seguindo seu instinto de sobrevivência, e que o deixaria livre no momento em que a mulher cruzasse a porta de entrada. Ao ouvir aquilo o duque empalideceu e começou a clamar à qualquer divindade que pudesse ouvi-lo, implorando para que sua amada permanecesse na segurança do castelo junto de Abenforth. Thomas sabia ser uma mentira deslavada, mas morreria sozinho ali de bom grado desde que Cecilie ficasse bem. Mas aparentemente sua súplica foi ignorada, pois depois de ouvir uma movimentação ao final da escada do porão, seu temor se concretizou.


     Seu olhar foi diretamente até o dela, como se estivessem conectados e ele fosse capaz de encontrá-la mesmo em meio à uma multidão. Cecilie estava linda, caminhando até a cela de maneira altiva e determinada, um sorriso nos lábios que era dirigido unicamente para ele. O coração do duque parou por um segundo, e depois começou a bater acelerado com a iminência da realidade sombria que se fechava ao redor deles. Ambos morreriam por culpa de sua atitude impensada. De repente uma fúria visceral o dominou e Thomas se levantou, indo até as grades que começou a sacudir com violência, tentando à todo custo salvar a mulher que tanto amava. Tentando inutilmente, pois logo a cela foi aberta e Cecilie estava em seus braços. Ah, aquele abraço... Thomas sentia o corpo vibrar, suas mãos tremiam, o pulmão não era capaz de respirar adequadamente, sentia-se afogar em desespero e angústia e medo.


-- Por que você veio? -- perguntou aumentando a intensidade de seu aperto, inalando o perfume floral dela com o qual tanto sonhou nos últimos dias -- Cecilie, por que você fez isso? Agora nós dois seremos mortos.


     Delicadamente a princesa afrouxou o abraço e afastou o rosto para observá-lo. Se encararam com intensidade até que sentiu uma carícia em sua bochecha, tão suave quanto o toque de uma pluma. Algo dentro dele se partiu ao mergulhar no azul prateado daqueles olhos, o profundo sentimento que viu ali, mesmo que ela se recusasse à dizê-lo.


-- Não seremos, não. -- ela sussurrou com um pequeno sorriso, depois segurou com firmeza pela gola de sua camisa e o puxou com força de encontro aos lábios dela. O beijou foi rápido mas transbordou carinho, e logo estavam se encarando novamente -- Eu também te amo, Thomas.


     A alegria exultante que sentiu ao ouvir aquelas palavras logo se dissipou com o que aconteceu depois. Com um empurrão em seu peito ele foi jogado para fora da cela, que logo foi trancada mantendo Cecilie lá dentro. O mundo parou de girar por um segundo enquanto encarava a princesa, que continuava a lhe sorrir amorosamente. Seus olhos começaram a arder, sentiu um vácuo nos ouvidos que parecia ensurdecê-lo. Sentiu... sentiu um buraco no peito que ameaçava devorá-o de dentro para fora , sentiu-se despedaçar. Mãos fortes o seguraram em ambos os braços e começaram a arrastá-lo para longe dela.


-- Não! -- bradou ao tentar se soltar -- Me soltem! Seus desgraçados, me soltem! Me soltem...


     Continuou a se agitar, mas foi completamente inútil. Ao chegar ao topo das escadas um saco de pano escuro foi colocado em sua cabeça, e uma voz autoritária o repreendeu.


-- Realmente pensou que ela não viria? -- reconheceu a voz sombeteira de Willk.


-- Me prenda novamente! -- pediu aos gritos -- Ande, vamos, me coloque de volta lá dentro.


-- Para vocês escaparem entre meus dedos mais uma vez? Eu acho que não. Você estar aqui é um incentivo para Nix tentar fugir e salvá-lo, mas com você em segurança na proteção da Cidade Real ela irá se resignar ao que eu tenho preparado para ela.


-- Ela nunca irá parar de tentar fugir! Nunca!


-- Você a conhece, Thomas. Ela é orgulhosa demais. Nix vai ficar para aceitar seu castigo como a guerreira que foi treinada para ser. E obviamente, vai tentar me levar para o inferno junto dela.


     Mais tarde, quando pudesse ser racional novamente, o duque perceberia que Willk tinha razão. Mas agora, tomado por raiva e desespero, tudo o que podia fazer era negar aquela verdade ou ele se quebraria em estilhaços afiados pela dor e remorso. Afinal, aquilo tudo era culpa dele.


-- Eu mesmo posso mandá-lo para lá, seu maldito! -- estendeu os braços e avançou pelo escuro, agarrando o vazio ao ouvir uma gargalhada divertida -- Venha, William! Me enfrente se tiver coragem!


-- Apague ele! -- foi a última coisa que ouviu antes de uma escuridão infinita dominá-lo.




     O duque sonhou com a primeira noite que passaram juntos. Não aquela em que Cecilie se esgueirou pela fortaleza da Irmandade até sua cela, onde lhe fez um interrogatório. Mas sim aquela que mudou a vida deles, naquela caverna perdida nas profundezas da Floresta do Tesouro. Ele podia ver claramente a escuridão envolvendo as rochas, sentia o frio nos ossos depois de um dia sob a chuva torrencial. À sua frente, via Cecilie travando uma batalha interna, razão e emoção lutando pelo controle de suas próximas ações. Thomas viu quando a guerra acabou e, no segundo seguinte, a emoção era a vencedora. Sob o disfarce de Nix, sua prometida se jogou aos seus braços e tomou um lugar em sua vida, espaço que esteve predestinado à ela desde sempre. O beijo que trocaram foi avassalador, e nele encontrou a resposta para tantas perguntas que nem sabia estarem em seu interior. Cecilie era a resposta. Sempre foi e sempre seria.


-- Você vai ficar bem, Thomas. -- a voz dela sussurrou, emocionada.


     Subitamente a mulher desapareceu numa nuvem de fumaça negra, e só restou o duque entre as rochas da caverna, perdido e sozinho.


-- Eu te amo. --  Cecilie disse, a voz cada vez mais distante.


     Abriu os olhos enquanto aquelas palavras se repetiam em sua mente num círculo infinito, de novo e de novo, torturando-o. Se recordou, agora, de que Cecilie realmente as tinha dito para ele, mas não havia prestado atenção pois estava ocupado demais se debatendo ao ser arrastado pelos Irmãos que o levavam para fora, para longe dela. Precisava retornar e tentar resgatá-la, abriu os olhos e se levantou num movimento impulsivo, não reconhecendo o lugar em que estava.


-- O senhor acordou. -- uma voz masculina disse, atrás de onde estava.


     Olhando em direção ao som encontrou um homem se levantando de onde estivera sentado, próximo à uma árvore alta. Percebeu que estavam num bosque, provavelmente nos arredores de onde estivera sendo mantido em cativeiro.


-- Quem é você? -- questionou bruscamente, imaginando se tratar de algum Irmão que ficara ali na intenção de se divertir com seu sofrimento.


-- Sou James, Capitão da Guarda Real. -- anunciou um tanto desanimado -- Precisamos ir, vossa graça.


     Por um mísero instante Thomas se permitiu sentir esperança, mas esta logo de dissipou ao captar o olhar carregado de tristeza no homem à sua frente.


-- Você veio com ela até aqui, não foi? -- sua voz não passou de um sussurro partido.


-- Eu fiz o que minha princesa ordenou. -- disse simplesmente, claramente odiando as palavras que saiam de sua boca -- Por favor, senhor... quanto mais rápido chegarmos à Cidade Real, mais rápido reunirei o exército e voltarei para salvá-la.


-- Tem um plano em mente? -- a esperança em sua voz soou patética aos seus próprios ouvidos.


-- Ainda estou seguindo as ordens da princesa. Podemos ir?


     Thomas apenas acenou e o capitão seguiu até o cavalo que nem mesmo havia percebido estar ali, à esquerda deles. Rapidamente o homem explicou que seguiriam juntos na mesma montaria até uma estação da carruagem correio próxima dali, onde conseguiriam outro animal. E assim foi feito, a viagem foi realizada o mais rápido que foram capazes, e ainda assim foi lenta demais na opinião do duque. Viu o negrume infinito tornar-se azul escuro e ir clareando conforme o sol nascia no horizonte, anunciando um novo maldito dia que seria certamente odioso. A ansiedade o consumia conforme viu ao longe as muralhas de contenção da Cidade Real, bateu os calcanhares em seu cavalo o incitando a acelerar ainda mais seu galope. Finalmente - finalmente! - chegaram quando o sol majestoso iluminava o dia, e o animal mal havia chegado ao pátio de entrada do castelo quando pulou de seu lombo. Correu até as portas de entrada que lhe foram abertas por dois guardas que o encaravam confusos e curiosos, ouvindo passos atrás de si que sabia pertencerem ao capitão da guarda. Sabia que seu tio tinha hábitos matinais e que levantava cedo, então não se espantou quando o viu correr até ele seguindo a movimentação que ouviu com sua entrada furiosa. Quando o rei o viu arregalou os olhos totalmente alarmado, e uma palidez assombrosa invadiu suas feições quando percebeu o que havia acontecido. Sem dizer palavra o homem começou a correr desenfreado, subindo as escadas que o levariam até o quarto que Cecilie ocupava. Thomas e James correram em seu encalço  e quando adentraram o lugar encontraram uma criada nos aposentos da princesa, de pé em frente à janela com olhar apreensivo. O rei intercalou o olhar entre ela e um amontoado de almofadas sob a coberta.


-- Onde ela está? -- perguntou com voz trovejante.


     Ao se aperceber da ira na voz do rei a criada, que Thomas sabia se chamar Salete, se contraiu em medo. Então a mulher caminhou até o monarca em passos incertos e ombros caídos, e lhe estendeu um pequeno livro de capa de couro preta que apenas agora percebeu estar nas mãos dela.


-- A princesa pediu que eu entregasse isso ao senhor, majestade. -- fez uma profunda reverência depois que Abenforth tomou o livro de suas mãos -- Eu sinto muito, mas eu tive de ajudá-la. Ela me disse que era muito importante.


     Seu olhar cruzou com o de Thomas que sentiu um frio na barriga quando viu a compreensão nos olhos de Salete, que certamente havia percebido que ele estava de alguma forma envolvido na fuga da princesa. O rei apenas ignorou a mulher e abriu o livro, encontrando ali um bilhete. O duque conseguiu lê-lo por sobre o ombro do tio, admirando-se pela primeira vez com a caligrafia cursiva e bem desenhada de Cecilie.


     "Por favor, não castigue Salete ou o capitão James. Eu os obriguei à me ajudarem. E não culpe Thomas, tampouco. Ambos sabemos que eu precisaria enfrentar Willk mais cedo ou mais tarde, afinal, o senhor tem suas batalhas e eu as minhas. Eu te amo, papai.

Me perdoe.


Cecilie"

    

-- O que vocês fizeram? -- perguntou num sussurro.


-- Majestade. -- chamou o capitão, tenso e rígido -- A princesa tinha um plano.


     Aquilo chamou a atenção do rei, que se voltou para o homem. O encarou abismado por alguns segundos, o semblante abatido e feroz, completamente destruído ao perder mais uma vez sua amada filha.


-- Como pôde fazer isso pela minhas costas? -- gritou furioso, descontrolado -- Como você pôde?


     O rosto de James ficou rubro e ele baixou o olhar para o chão, aceitando a raiva de seu rei. A comoção logo atraiu mais pessoas, e o príncipe apareceu no corredor andando apressado até eles.


-- Você está vivo? -- assustou-se ao ver o duque -- O que está acontecendo?


-- Cecilie... -- Abenforth disse apenas, os ombros caídos em desamparo, e o príncipe imediatamente compreendeu.


-- Isso explica por que ela nos convenceu contra a retaliação.


     Apesar de não ser muito próximo do primo, Thomas percebeu lamentação em sua voz. Mesmo que não gostasse da meia irmã, pareceu verdadeiramente se entristecer pela sua partida.


-- Nós estamos perdendo tempo! -- o duque disse, alto demais no silêncio pesaroso que se instalou entre eles -- Capitão James sabe onde ela está, devemos reunir os exércitos e partir imediatamente!


-- Isso é verdade? -- perguntou o rei ao soldado.


-- Sim, majestade. -- fez uma reverência.


-- Reúna seus homens. -- ordenou saindo de seu torpor, o olhar vazio dando lugar à uma determinação férrea -- Partiremos em uma hora.


     James acenou em concordância e saiu dali à passos rápidos. Thomas sentia-se perdido, sem saber qual seria seu papel em tudo aquilo. Levou sua atenção ao rei, que encarava o bilhete de sua filha, e imaginou o quão destroçado o homem se sentia.


-- Majestade... -- chamou o tio, que não olhou para ele -- Iremos recuperá-la. A viagem dura algumas horas, mas assim que chegarmos à Vila Violeta nós...


-- Você não irá conosco, Thomas. -- o rei o interrompeu e levou os olhos até ele, cansados e tristes.


-- Não? -- sobressaltou-se -- Mas eu...


-- Minha filha deu a vida por você, não vou permitir que tenha sido em vão. -- guardou o bilhete de volta ao livro e o fechou com força -- Você fica.


     Dito isso Abenforth saiu dali furiosamente, seguido por Christopher em seu encalço. Sozinho com Salete, ambos se encararam por alguns segundos.


-- Vossa graça foi capturado, não é? -- a mulher perguntou, recebendo apenas um aceno como resposta -- Agora eu entendo.


-- Se ela não voltar... -- parou, incapaz de terminar sua sentença.


-- Não diga isso. Sua majestade irá resgatá-la. Talvez até mesmo a Irmandade seja derrotada hoje.


-- Acredita mesmo nisso? -- perguntou verdadeiramente curioso, não sentindo em seu coração aquela certeza. Tudo que havia nele era culpa e remorso e dor.


-- Preciso acreditar. -- disse firme, passando os olhos pelo quarto -- Acha que o rei irá me prender? Por tê-la acobertado?


-- Não, ele jamais iria contra as vontades de Cecilie. Você está livre.


-- Isso é bom, não é? -- soou incerta.


-- Eu imagino que seja, sim. -- um silêncio incomodo se instalou entre eles por alguns segundos.


-- Então por que me sinto tão angustiada? -- perguntou num fio de voz, contorcendo as mãos nas saias de seu vestido.


-- Isso é culpa, Salete. -- explicou o duque, apiedando-se da mulher -- Mas não precisa se sentir assim. Estou sentindo culpa o suficiente por nós dois. -- recebeu um olhar de pena que fez revirar suas entranhas -- Se me dá licença.


     A mulher lhe ofereceu uma curta reverência e Thomas partiu deixando-a sozinha. Pensou em procurar sua tia, talvez pedir um abraço e algum conforto, mas desistiu da ideia. Sequer cogitar alguma interação o levou à exaustão, então preferiu se retirar para seu quarto. Gostaria de insistir em ir junto do exército ao ataque à Irmandade, mas imaginou que o rei estivesse furioso com ele e que aquilo só pioraria e atrasaria as coisas. Ao adentrar em seus aposentos aquela familiar sensação de inutilidade se instalou em seu coração mais uma vez, e se sentou em sua poltrona encarando o chão de mármore. A única coisa que poderia fazer era esperar.


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