Capítulo 6 - "Eu preciso fazer algumas perguntas"
Ela adentrou o escritório particular de Willk com postura relaxada e irreverente, mas seu interior estava agitado e tenso. Ele estava acomodado em sua grande mesa, e escrevia em um pergaminho quando ela chegou, parando imediatamente ao notá-la e guardou sua missiva na gaveta.
-- Pensei que havia me liberado para dormir, mestre. -- ela disse e jogou-se na cadeira em frente à mesa dele, a única da sala.
Não pôde deixar de notar que o lugar estava organizado como de costume. Nada das cadeiras sobressalentes que ela ouviu serem arrastadas minutos antes, ao final da reunião secreta. Ele organizou tudo antes dela chegar para que não percebesse o que ali aconteceu.
-- Você dormiu por mais de dez horas.
-- E fiquei acordada mais de vinte e quatro horas antes disso. -- deu de ombros.
Willk abriu uma das gavetas, tirou dali um pequeno saco de papel e o atirou para ela, que o pegou facilmente com a mão boa. Eram castanhas torradas.
-- Sei que você deve estar morrendo de fome, mas quero o relatório da missão imediatamente. Isso vai ajudá-la a falar.
-- Missão -- bufou e jogou uma castanha na boca -- Aquele homem não tem a mínima noção do que significa ser discreto, a única coisa que faltou foi uma seta vermelha apontando direto para a cabeça dele.
-- Detalhes. -- ordenou Willk.
Então ela lhe contou tudo o que aconteceu. Desde como o encontrou, sobre o comportamento do duque, a conversa deles na taverna Juba de Leão e as moedas de ouro, o tempo que ele a fez esperar até aparecer na estalagem quase ao nascer do sol, a maneira como o abordou e os detalhes da viagem até a fortaleza. Ela teve o cuidado de lhe contar cada palavra que trocaram, pois sabia que era exatamente aquilo que Willk queria. Estranhamente, seu mestre ordenou que ela relatasse tudo, desde o início, uma segunda vez. No final de seu segundo relato, as castanhas já haviam acabado.
-- Só isso? -- pediu ele.
-- Não vai me obrigar a falar a mesma coisa pela terceira vez, vai? -- disse soando entediada.
-- Não. Eu só esperava um pouco mais de resistência da parte do rapaz. Ele é grande e nem tentou fugir.
-- Eu não lhe dei oportunidades para sequer tentar.
-- Mesmo assim foi fácil demais, você não acha? -- disse pensativo.
-- Ele não tem treinamento, e eu sim. É claro que deveria ser fácil. -- disse, irritando-se, mas Willk manteve-se em silêncio -- O que você está sugerindo?
-- Que Thomas Longford queria ser pego.
Incredulidade a dominou ao ouvir aquele absurdo, porém ela se manteve calada, fingindo pensar na possibilidade. Lembrou-se do semblante de confusão e de tristeza que dominou Thomas quando ele entendeu o que estava acontecendo, a devastação que viu obscurecer aqueles olhos castanhos luminosos. Uma certeza a dominou com a força de um raio: Willk estava jogando com ela. Nix não tinha noção de quanto tempo esse jogo de manipulação já durava, mas agora, ela jogaria de volta.
-- Não podemos descartar essa possibilidade. -- concordou e viu satisfação brilhar nos olhos azuis de seu mestre -- Conseguiu fazê-lo falar?
-- N-não v-vou fa-falar na-na-nada -- imitou exageradamente, zombando de Thomas -- É só o que aquele gago maldito diz.
Ela quis socar a cara de Willk por aquilo. E, depois, quis socar a si mesma por sequer cogitar uma loucura dessas. Nix não sabia o que estava acontecendo, não sabia mais se podia confiar nele, na única pessoa que confiou na última década. Mas, se não em seu mestre, em quem ela depositaria sua confiança? No duque que matou centenas? No rei que fazia seu reino sangrar e passar fome? Ela precisava de respostas.
-- Eu posso interrogá-lo amanhã. -- sugeriu com um dar de ombros -- Ou agora mesmo se preferir.
Willk fingiu pensar em sua oferta, e depois a descartou.
-- Tenho uma missão melhor para você. Partirá amanhã junto de Rosene para a vila. Irão comprar suprimentos e investigar o que estão comentando sobre o sumiço do viajante que estava hospedado na estalagem. Depois, vai me enviar um bilhete através de Rose com suas descobertas, e partirá para a Cidade das Rosas.
-- Cidade das Rosas? -- questionou verdadeiramente confusa.
-- Encontre Zach para pegar uma encomenda muito valiosa, depois a traga até mim em segurança e devagar, pois são dispositivos muito delicados e perigosos. Use a estrada da Liberdade, ela é mais plana que o caminho usual.
-- Mas a estrada da Liberdade faz a volta por toda a Montanha de Fogo! E passa por Venris antes disso! Vai me custar quase uma semana! -- exclamou.
-- E você tem algum compromisso de que não fui informado? -- estreitou os olhos para ela.
-- Não, mestre. -- respondeu acatando a ordem, por fim.
-- Está liberada. -- a dispensou -- Você e Rosene partem depois da refeição da manhã.
-- Sim, mestre. -- levantou-se e ia saindo quando ele falou com ela novamente.
-- Em seus relatórios não me disse nenhuma vez como se feriu.
Ela estancou. Respirou fundo e virou-se de frente para ele.
-- Porque eu não me machuquei na missão. -- deu de ombros -- Derrubei a bacia de louça do meu quarto e me cortei ao juntar os cacos.
Passava da meia noite quando Nix adentrou a cozinha vinda de seu encontro com Willk. Não encontrou ninguém no caminho, mas ainda era cedo demais para fazer o que estava pensando. A maneira menos suspeita de passar o tempo seria fazendo uma refeição. Encontrou um pedaço grande de pão e comeu apenas metade, embrulhou o restante, junto de um pedaço de queijo, e guardou no bolso da calça para mais tarde. Comeu uma maçã e, por fim, bebeu um copo de leite de vaca. Decidiu aquecer um pouco do leite e levar consigo num cantil velho que encontrou nos fundos do armário. Ao terminar de comer e preparar as coisas, já passava das duas da manhã e a fortaleza dormia profundamente. Apenas os quatro soldados que faziam a guarda estavam acordados, e seria fácil passar despercebida por eles. Subiu até seu quarto - que agora permaneceria sempre trancado à chave - enrolou sua bacia de louça num cobertor e a quebrou o mais silenciosamente que pôde. Depois desenrolou seu curativo improvisado da mão esquerda, pegou um caco grande e o passou por cima de seu ferimento. Fez uma careta e rangeu os dentes para aguentar a dor, parando assim que conseguiu verter o próprio sangue, que derramou sobre as lascas da louça. Retirou da gaveta a camisola e a camisa ensanguentadas, jogou tudo num canto do quarto e, por fim, refez seu curativo
Talvez estivesse exagerando, mas deveria ser extremamente cuidadosa se pretendia jogar aquele jogo perigoso. Só depois de forjar as convincentes provas de seu inocente ferimento, pegou sua capa negra como a noite e esgueirou-se até o calabouço.
Nix precisava de respostas e, para obtê-las, deveria primeiro fazer perguntas. Ela apenas torcia para que o duque de Longford estivesse consciente o suficiente para uma conversa.
Ele dormia profundamente, um sono sem sonhos, até algum maldito barulho acordá-lo. No instante em que o manto delicioso da inconsciência se dissipou, a dor voltou com tudo. Sentia seu rosto inchado, sua cabeça parecia prestes a explodir seu cérebro para fora, seu nariz queimava e latejava, e a dor ali parecia piorar a cada vez que buscava o ar. Virou-se de lado e tentou respirar pela boca rezando para que a escuridão confortável do sono viesse novamente.
-- Thomas! -- ouviu um sussurro chamá-lo.
Um sussurro feminino. Isso o despertou de vez e fez força para se sentar, o que se mostrou uma tarefa difícil pois, mesmo que houvesse apanhado apenas no rosto, seu corpo todo doía. A luz de uma única vela tremeluzia do lado de fora das grades de sua cela, banhando o lugar numa luz dourada macabra. Aquilo era o suficiente para praticamente cegá-lo depois de infinitas horas na escuridão profunda. Fechou os olhos e ergueu um braço para protegê-los do ataque da claridade e, segundos depois quando a visão se habituou à mudança, viu uma silhueta imóvel lhe observando.
-- Thomas! -- o chamou novamente ainda num sussurro, a sombra abaixou-se e apoiou o castiçal que carregava no chão, sentando-se ao lado em seguida -- Consegue compreender o que eu digo?
-- Eu estou com dor e ferido -- respondeu ele com voz rouca e esganiçada, e levantou-se pesadamente -- Não estou idiota.
Caminhou os poucos passos necessários até as grades que o prendiam e, segurando-se nelas, sentou-se de frente à mulher que o raptou. Ela baixou a touca de sua capa, revelando-se para ele totalmente.
-- Eu preciso fazer algumas perguntas. -- ela disse.
-- É claro que precisa. -- irritou-se ele -- E eu vou responder o m-mesmo que disse ao seu maldito mestre! N-não vou dizer nada, droga! Agora me d-deixe em paz!
Ele preparava-se para se levantar quando ela lhe estendeu um cantil surrado por entre as barras de chumbo. Aquilo o surpreendeu e o fez levantar seu olhar até o dela, onde encontrou aqueles olhos cinza o encarando com seriedade.
-- Não foi Willk quem me enviou, eu vim por conta própria. -- informou e largou o cantil aos seus pés -- Pegue, é leite de vaca. E aqui... -- a mulher retirou um embrulho do bolso da calça que vestia e o depositou junto de seu outro presente -- Pão e queijo. Não é muito, mas vai acalmar seu estômago.
Sim, ela sabia persuadi-lo. Oferecendo alimentos para amenizar sua fome cruel, que o torturava mais do que a dor em toda sua cabeça. Incapaz de recusar a oferta, Tom abre o cantil e toma o leite em grandes goles. A bebida estava deliciosamente quente e ajudou a espantar o frio que sentia naquele lugar úmido.
-- Vai com calma, rapaz! -- alertou a mulher -- Não há muito aí, faça durar mais do que alguns segundos.
Ela irritantemente tinha razão e ele parou, limpando a boca com as costas da mão. Então abriu o embrulho e encontrou seu jantar, um pedaço de pão preto e um de queijo de cabra. Decidiu começar pelo pão, que mordeu com ferocidade.
-- O que você quer? -- perguntou enquanto mastigava, mandando para o inferno a boa criação que teve.
-- Por que Willk está atrás de você? -- perguntou e inclinou-se alguns centímetros para a frente, ansiosa pela resposta.
-- Deveria saber, ele enviou você para me pegar. -- não resistiu à oportunidade de alfinetá-la.
-- Eu sei uma parte. Sei que você acabou com os espiões dele, dessa vila e de pelo menos mais cinco.
Ele mordeu o pão novamente.
-- É verdade. Meu rei me ordenou, ele disse... -- parou, e bebeu mais um gole de leite para ganhar tempo.
-- Independentemente do que acontecer aqui, eu não vou dizer uma palavra à Willk ou a ninguém. -- ela suspirou e passou uma mão pelo rosto -- Eu não deveria estar aqui.
Thomas esqueceu a comida por um momento e a observou mais detidamente, mas a mulher não entregava muita coisa. Suas feições eram uma máscara de ferro, endurecidas talvez pela criação que teve, por tudo o que aprendeu, tudo o que já fez e viveu. Mas havia um brilho no cinza frio de seus olhos, que o encaravam tão atentamente. Thomas via bondade naquela mulher e isso o confundia. Ela o agrediu, o raptou e o levou para a morte certa. Mas também lhe deu sua água, lhe ofereceu uma explicação quando ele estava absolutamente confuso sobre o que estava acontecendo e, agora, lhe trazia uma refeição à troco apenas de responder uma pergunta que ela já sabia a resposta. Ela parecia... desconfortável com algo e acabou por recorrer à ele. Tom entendeu, então, o que aquele brilho significava. Não era bondade. Era a vontade de ser, de fazer a coisa certa.
-- O que você fez com os corpos? -- ela pediu.
-- Corpos? Que corpos? -- perguntou, confuso, e comeu o último pedaço de seu pão.
-- Dos informantes de Willk.
Ele parou de mastigar ao ouvir aquilo e apenas a encarou. Piscou uma, duas, três vezes e, por fim, engoliu a massa grossa com ajuda do leite.
-- Ele lhe disse que eu os matei? -- perguntou chocado, um aceno positivo da parte dela o fez rir -- E você acreditou?
-- Eu não costumo desconfiar do meu mestre. -- disse baixo, num tom de ameaça e estreitou os olhos para ele.
-- Mas está, não é? Senão não estaria aqui. -- pegou seu queijo, o mordeu e quase suspirou com seu sabor -- Eu não os matei, senhorita... qual é mesmo seu nome?
A mulher ficou tensa e pareceu ponderar se deveria respondê-lo ou não, mas o fez por fim.
-- Nix.
-- Um nome peculiar, mas combina a senhorita. Eu não os matei, Nix. Nem eu, nem ninguém.
-- Eles estão presos, então? -- ela parecia atordoada.
Dessa vez foi Tom quem pensou com cautela se responderia ou não. Talvez aquilo fosse um ardil para fazê-lo revelar seus segredos aos poucos, um muito mais eficaz que a tortura de Willk. Mas se Nix estava realmente suspeitando de seu mestre, e disposta a descobrir o lado certo daquela luta que se estendia há anos, então ele deveria aproveitar aquela chance. Nix era sua única esperança.
-- O que vou lhe dizer é segredo absoluto. -- ela apenas aguardou -- Eles foram enviados para muito além das muralhas da Cidade Real, para trabalhar nas fazendas do rei. Os homens e mulheres capazes, claro. As crianças, além de trabalhar, também estudam seis horas por dia. Eles vivem juntos em uma grande casa, sendo vigiados, claro.
-- E os fracos demais para trabalhar?
Thomas finalizou o queijo com gratidão, mas ainda sentia fome.
-- Suponho que estejam sendo cuidados até se recuperarem e, se isso não acontecer, há abrigos de caridade para pessoas fragilizadas e doentes. -- deu de ombros.
-- Abrigos para... pessoas inúteis? -- surpreendeu-se -- Isso é um desperdício de dinheiro!
-- Para a Irmandade das Sombras, talvez. -- sentiu dor ao tentar sorrir, mas o fez mesmo assim -- Para nós, isso é humano. É o certo a ser feito. Por que você segue aquele homem?
-- Isso não é da sua conta. -- respondeu defensiva.
-- Você me trouxe direto para as garras dele, então talvez seja sim! Aquele homem claramente mentiu para você sobre isso, e com certeza mente sobre o resto. Aquelas pessoas que ajudei? Acha que as forcei a irem para a proteção do rei? Eles choraram de felicidade por saírem dessa vida, por saírem da podridão, fome e miséria que Willk levou até eles. E agora eu morrerei por isso.
Ele notou que ela empalideceu a cada frase que proferiu, mas não a polpou daquelas verdades que para ela deveriam ser tão duras.
-- Não pode ser... -- ela sacudiu a cabeça negativamente -- É o rei Abenforth quem traz a fome e miséria! Ele destruiu as plantações em todo o reino, tomou tudo para si. Todos os grãos, toda a comida sai das fazendas dele e ficam na Cidade Real enquanto o resto de nós passa fome e briga entre si por um saco de farinha.
-- Abra seus olhos, senhorita Nix. Willk destruiu as plantações anos atrás, na intenção de voltar a população contra o rei. Abenforth tentou reconstruí-las mas foi inútil, já que sempre eram detonadas novamente. Então, ele ampliou significativamente as fazendas reais para poder alimentar seus súditos.
-- Ah, é? E onde está toda essa comida?
-- Os espiões de Willk sempre descobriam para onde o rei estava mandando as provisões. Então, ele ia até lá e simplesmente roubava tudo. O rei aumentou o número de soldados que escoltava os comboios, mas como seu mestre sempre estava um passo à frente ele dava um jeito de bolar uma armadilha engenhosa. Centenas de soldados morreram nas mãos da Irmandade por tentar levar alimento à população das cidades e vilas mais distantes da Cidade Real. Quando a história de nosso reino for escrita daqui alguns anos, senhorita Nix, o seu nome será mencionado na lista dos vilões.
A mulher arregalou os olhos, nitidamente perturbada por tudo o que ouviu. Thomas tomou o restante de seu leite e devolveu o cantil para ela, junto do pano que embrulhou seu pão e queijo. Nix tomou as coisas da mão dele e se levantou com graciosidade, levando o castiçal consigo.
-- Dê um jeito de ficar vivo por mais uma semana. Diga o que ele quer ouvir, diga mentiras, não importa. Eu vou... -- suspirou, cansada -- vou investigar e, se o que me disse for verdade, eu vou tirá-lo daqui. -- sorriu para ele -- Mas tenho algumas exigências.
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