Capítulo 56 - "Essa fortaleza já está com rachaduras"



    Ao se retirar da sala de visitas, Christopher já tinha um destino em mente. Sentindo seu coração bater tão forte quanto suas passadas, rumou diretamente até o escritório de seu pai. De alguma maneira o rapaz acreditou piamente nas palavras de Cecilie, mas precisava de uma confirmação. Precisava conhecer a versão de seu pai para compreender como o homem pôde mentir para ele por tantos anos. Abenforth nunca fora alguém muito paternal ou carinhoso, e o príncipe acreditava que o homem tivesse sido endurecido pelo peso de sua coroa, jamais cogitou que a razão fosse a dor de perder uma filha. A primeira opção lhe era confortável, mas a segunda o feria pois o fazia sentir-se insuficiente. Ao longo dos anos, nunca foi próximo do seu pai o suficiente para o considerar um amigo. Ele era seu rei e Christopher era seu herdeiro, a relação deles basicamente se limitava à isso. Chegando ao local, pediu que os guardas do rei anunciassem sua presença, e imediatamente sua entrada foi permitida.


-- Christopher. -- cumprimentou o rei e apontou a cadeira vazia em frente a sua mesa -- Imaginei que viria. Sente-se.


     O rapaz sentou-se e, ao encarar os olhos cinzentos do pai tão iguais aos dele - iguais aos dela -, sua mente silenciou. Não sabia o que deveria dizer, então deu voz apenas à única palavra que rondava seus pensamentos naquele momento.


-- Por quê? -- pediu em voz emotiva.


     De alguma forma, Abenforth entendeu exatamente à que seu filho se referia.


-- Eu amava Cassandra. -- deu de ombros, o semblante carregando uma ternura que o rapaz nunca havia visto antes -- Ela era filha da cozinheira do castelo, poucos meses mais nova do que eu. Como segundo filho, eu tive mais liberdades do que meu irmão mais velho, William, então eu podia brincar livremente por aí. -- seu olhar tornou-se vago por um instante, enquanto era invadido por lembranças -- Éramos amigos inseparáveis, Cassandra e eu. Vivíamos correndo pelo castelo, pelos jardins e em todo e qualquer lugar que pudéssemos imaginar. Meu pai, seu avô Oliver, estava ocupado demais ensinado William para se preocupar com o que seu caçula fazia. Assim os anos foram passando, nossa amizade se fortalecendo cada vez mais. Eu tinha quinze anos quando percebi que a amava, mas não me declarei. Contive meus sentimentos, temendo que Cassandra me recusasse. Ela era... -- suspirou, os lábios se curvando num sorriso de saudade -- Uma força da natureza. Indomável, decidida... Foi ela quem deu o primeiro passo em nossa relação, numa tarde enquanto nadávamos nas margens do rio ela me beijou. Naquele instante, Christopher, eu entendi.


-- Entendeu o quê?


-- Que era ela. Que sempre seria Cassandra.


     Seu estômago parecia revirar com as palavras de seu pai, assim como sua cabeça.


-- Mas... e minha mãe?


-- Zaya sempre soube de Cassandra e Cecilie. Isso nunca foi um segredo entre nós, na verdade, era de conhecimento de quase todo o reino.


-- Se nunca foi um segredo, então por que fiquei sabendo disso apenas quando sua filha apareceu aqui? Acaso pensou em mim? Em como me senti com isso, como ainda me sinto?


     Abenforth inclinou-se para a frente, cruzando as mãos sobre a madeira escura de sua mesa, e encarou o filho profundamente.


-- Você nunca soube pois há quase dezesseis anos Cecilie era considerada morta. Eu... cometi um erro, um erro idiota, e a perdi. E nunca lhe disse que teve uma irmã pois era doloroso demais, Christopher. Quando for pai, entenderá o que quero dizer.


     O príncipe imaginava sim quão doloroso era. Certa vez, poucos anos atrás, sua irmãzinha Crystal adoeceu gravemente. A pequena foi acometida de uma doença nos pulmões que quase ceifou sua vida. Christopher presenciou de perto o desespero de sua mãe, que velou a filha dia e noite. Viu também o quão atormentado seu pai ficou na época, e agora entendia que o homem temeu perder mais uma filha.


-- Foi por causa dela que o senhor nunca me amou? -- perguntou e envergonhou-se imediatamente.


     Sentiu o rosto esquentar e lágrimas lhe queimarem os olhos, mas respirou fundo e conteve sua emoção. Não sentia-se o adolescente que era, com seus recém completados quinze anos, na verdade estava se sentindo um menininho confuso e perdido que buscava incansavelmente a atenção do pai. Ao ouvir a insegurança e a mágoa na voz trêmula do filho, Abenforth se levantou e seguiu até ele e sentou-se na cadeira vazia ao seu lado. Pegou sua mão e a apertou com força entre as suas.


-- Eu sempre o amei, filho. -- garantiu solene -- Fui falho com você em demonstrar isso. Nos primeiros anos de sua vida eu estava destroçado pela perca de Cassandra e Cecilie, e me mantive afastado. Depois a Irmandade começou a roubar minha paz, e eu não tinha tempo para tentar realmente me aproximar de você e aprofundar nossos laços. Eu fui... -- agora foi o rei quem teve a voz embargada por um choro contido -- Eu fui relapso contigo. Fui um pai ruim para Cecilie e para você também. -- tentou sorrir mas falhou -- Vocês dois já tem algo em comum, percebe? Compartilham o desprezo por mim.


     O príncipe sentiu um aperto no peito ao notar as lágrimas nos olhos do pai, e ao ouvir suas palavras. Se ele que sequer conheceu Cassandra e Cecilie fora afetado pela tragédia da vida delas, imagine o quão partidos estavam seu pai e sua meia irmã? As leis sagradas em que acreditava abominavam o pecado, mas amavam o pecador. Além disso, ele acreditava em outra lei sagrada: perdão.


-- Eu não o desprezo, pai. -- retribuiu ao aperto do homem -- Apenas fui pego de surpresa. Vivi numa ilusão e quando a realidade caiu sobre mim, perdi o chão firme sob meus pés. Eu sempre enxerguei preto e branco e, de uma hora para a outra, o senhor me fez enxergar cinza!


-- Assim como estou tentando concertar as coisas com Cecilie, o farei com você se me permitir. Você é importante para mim, Christopher. É meu filho e eu o amo. Por favor, me dê mais uma chance de tentar ser o pai que você merece.


    Alívio inundou seu coração angustiado e Christopher acenou afirmativamente, enquanto permitia que as lágrimas contidas finalmente transbordassem. Ao vê-lo tão comovido, Abenforth o puxou para um abraço e o rapaz se aninhou no peito do pai como nunca havia feito. Ali ele chorou até se acalmar, prometendo a si mesmo que no futuro buscaria todos os fatos antes de julgar alguém como um pecador profano. Sim, seu pai violou as leis sagradas, mas foi pela razão mais pura possível: amor. Quando sentiu sua alma limpa e purificada da raiva que esteve sentindo de seu pai e Cecilie nos últimos dias, interrompeu o abraço com um sorriso.


-- Obrigado, pai. -- agradeceu sincero.


-- Sou eu quem agradeço, meu filho. -- o homem sorriu -- Fico feliz que tenhamos nos acertado, gostaria que Cecilie fosse tão receptiva quanto você.


-- Vocês ainda estão pé de guerra? -- perguntou curioso, enquanto enxugava as lágrimas -- Soube por Jeremy, meu guarda, que lutaram de espadas outro dia.


-- Oh sim, nós lutamos. Foi a maneira que encontrei de realmente me aproximar dela. A criação que William deu à ela na Irmandade a endureceu, Cecilie é uma fortaleza quase impenetrável quando decide ser hostil.


-- Não se preocupe, pai. Essa fortaleza já está com rachaduras, afinal se não se importasse ela não teria vindo conversar comigo. Logo vocês se entenderão. Agora, preciso ir. Tenho uma visitação nos alojamentos à leste, capitão James solicitou uma transferência considerável de soldados para o acampamento oeste e preciso ver o motivo por mim mesmo.


-- Eu soube, parece que o telhado cedeu ou algo do tipo. Se o concerto puder ser realizado com rapidez, recuse o pedido, ou então o alojamento oeste ficará superlotado.


-- Sim, senhor. -- levantou-se e bateu em retirada.


     Quando tocou a maçaneta, Christopher não a girou. Ele sabia a importância daquele momento com seu pai, a honestidade que compartilharam ali. Porém ainda havia uma coisa a ser dita. Virou-se para o rei, que tinha um olhar interrogativo sobre ele.


-- Eu gostaria que Cecilie tivesse nascido homem. -- confidenciou -- Assim, ao ser legitimada, o trono seria dela e eu estaria livre desse fardo que nunca quis.


     Abenforth deixou o queixo cair, extremamente surpreso pelas palavras do príncipe. Tanto que nada disse, apenas continuou à encará-lo de olhos arregalados. Por fim, contente por ter desabafado tudo o que precisava, Christopher seguiu até seus afazeres. O rei, por sua vez, permaneceu pensativo com as últimas palavras do filho girando em sua cabeça incessantemente.

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