Capítulo 46 - "Está me repreendendo?"



Nix demorou a adormecer. Depois de um desfile de criadas que adentraram seu quarto lhe oferecendo comida, chá, outro banho, mais chá, lençóis limpos e etc, ela teve paz apenas tarde da noite, próximo à alta madrugada. Quando enfim o silêncio reinou, arrastou uma cadeira até a grande janela de seu aposento e sentou-se ali para observar a paisagem noturna enquanto analisava calmamente os próprios sentimentos conturbados. Encontrou seu pai, que era o rei que queria matá-la, mas que agora faria de tudo para salvá-la. Pensou nas feições torturadas dele, no arrependimento e tristeza que estavam claros em suas palavras, em sua postura insegura e perdida ao se dirigir à ela mais cedo naquela tarde. Parecia um homem verdadeiramente corroído pelo remorso, mas ainda assim, não conseguia perdoá-lo. Saber que o pai sofreu penosamente por todos esses anos, lamentando seu erro e martirizando-se por tal, não lhe causava nada além de satisfação. Era cruel, ela sabia, mas saber que ele foi tão dilacerado quanto ela lhe parecia o mínimo de castigo que Abenforth merecia.


     Mas isso não era tudo. Apesar de sentir-se vingada, também se compadecia dele. Era surreal esse sentimento a alfinetando, e nas primeiras horas do chocante encontro ignorou aquela sensação. Na verdade, só percebeu aquilo quando o pai se retirou do quarto dela com olhar perdido e ombros caídos, passos incertos e expressão angustiada. Ela odiou-se por ser tão fraca, odiou a certeza de que ainda amava aquele homem tanto quanto em sua infância. Porém, ainda assim, não era capaz de perdoá-lo verdadeiramente. Não agora. Precisava de tempo para assimilar aquela nova realidade, as verdades que surgiram tão brusca e inesperadamente. Recordou-se de seu passado compreendendo alguns detalhes depois de tantos anos, um deles era a constante ausência de seu pai. A explicação era que Abenforth comandava o reino e, nas horas vagas, visitava sua segunda família. Bufou em indignação. Era isso que foram para ele? A segunda família? Uma distração de suas obrigações para com o reino e sua verdadeira família? Como sua mãe pôde aceitar ser sua amante, sua concubina? Como Cassandra pôde ser feliz vivendo daquela maneira? Essas respostas Nix não encontraria sozinha, mas não estava pronta para fazer as perguntas ao pai.


     Está na hora de se tornar quem nasceu para ser, a voz de sua mãe naquele sonho intenso soou em sua mente. Sabia o que significava e seu coração se contorsia ao pensar no que ela lhe disse. Cassandra queria que voltasse à ser Cecilie, mas para isso precisaria atravessar um longo caminho de dor, traumas, erros, arrependimentos e o mais difícil: perdão. Precisaria perdoar o pai e a si mesma para, finalmente, se tornar quem nasceu para ser. Como se fossem poucas as coisas em sua mente naquele momento, ainda havia Thomas. Onde ele se encaixava nisso tudo? Como era possível que ele tivesse conquistado o amor de Cecilie e de Nix? Empertigou a coluna com tal pensamento. Cecilie o amou de maneira inocente, como um amigo muito querido. Mas Nix... não, não era amor. Recusou aquilo pois era demais, era demais. O que sentia pelo duque era paixão, era fogo ardente, era afeição pelos dias e noites que passaram na companhia um do outro, era preocupação com a vida que ameaçou e depois salvou à alto custo. Sim, era apenas isso.


     Viu o negro eterno tornar-se azul escuro, e depois alaranjado conforme o sol nascia no horizonte. Era o dia de seu julgamento e precisava estar pronta para seja lá o que precisasse enfrentar. Levantou-se sentindo o corpo pesado e dolorido pelas horas que passou na mesma posição e adormeceu imediatamente ao deitar na cama macia.



     Uma criada a despertou poucas horas depois. Acordou sobressaltada, sentindo uma incômoda ardência nos olhos devido ao sono que ainda a dominava. Repreendeu-se mentalmente por ter dormido tão tarde e seguiu, emburrada, até o banho quente que já estava preparado. Insistiu em se banhar sozinha e regojizou-se por alguns minutos na água morna e perfumada da banheira, apenas aproveitando a sensação de relaxamento que lhe proporcionava. O aroma suave da água de rosas era um calmante natural que a remetia à sua infância. Entretanto não era hora de ser sentimental, então depois de alguns minutos se limpou adequadamente, lavou os cabelos e seguiu para se vestir. Parou em frente ao grande e alto espelho próximo à um cabide que carregava um vestido amarelo claro como os primeiros raios de sol da alvorada. Encarou o tecido rancorosa e mau humorada pois detestava aquela droga de cor, mas logo deu de ombros, conformada, e observou seu corpo demoradamente no espelho. A ferida em seu quadril esquerdo era agora uma cicatriz cor de rosa, a pele fina ainda sensível, mas já não incomodava tanto. Assim como o pequeno corte em seu braço direto, lembrança do arqueiro que a perseguiu junto de Ramsei na fuga da Vila do Tombo. Virou-se de costas e observou o ferimento restante da facada que levou de Pauline. Não tinha mais do que três centímetros, os quatro fios dos pontos ainda estavam firmemente presos, apontando em todas as direções. A pele ao redor estava escurecida, com raios avermelhados desenhando um emaranhado de linhas que anunciavam o começo do caminho do veneno em seu corpo.


-- Maldita Pauline! -- comentou sozinha, ainda de olho sobre a ferida que quase a matou.


     Uma batida na porta a fez se apressar e logo retornou ao aposento principal devidamente vestida. Seu desjejum já estava posto na mesa, farto e extremamente apetitoso. Devido às grandes revelações do dia anterior, não teve apetite nas refeições que lhe foram servidas, então estava morrendo de fome. Seguiu até seu lugar à mesa, evitando olhar de relance para baixo na intenção de não ver aquela maldita cor horrorosa. Encheu o prato e, quando ia abocanhar um pedaço de bolo, estancou.


-- Poderia parar de me olhar assim? -- pediu à criada parada alguns metros adiante, que a encarava descaradamente.


     A jovem corou imediatamente e levou seu olhar para os próprios pés, fazendo-a lembrar de Maggi. Será que a moça tinha conseguido chegar em segurança?


-- Desculpe-me, senhorita. -- sussurrou a moça mantendo o olhar baixo.


     Nix suspirou pesadamente, sentindo-se desconfortável.


-- Por que não se senta e me acompanha no café da manhã? -- convidou.


     A criada levantou o olhar arregalado tão rápido que quase perdeu o equilíbrio.


-- Isso não seria apropriado! O rei não aprovaria tal comportamento, senhorita. Isso é absurdo e...


-- O rei não está aqui, está? -- ofereceu um meio sorriso tranquilizador -- Venha, sente-se, há comida demais para apenas uma pessoa e eu odeio desperdício.


     A jovem olhou indecisa para a porta, e depois de volta para ela. Decidiu não lhe dar muita chance de escolha, então puxou um prato limpo e serviu-lhe uma porção de cada coisa. Não demorou e a moça sentou-se à mesa, tão na ponta da cadeira que parecia um pássaro prestes à alçar voo. Comeram em silêncio nos primeiros minutos, enquanto Nix observava a criada olhar para todo o quarto, menos para ela. Aquilo a divertiu, era uma distração leve e extremamente necessária para ela naquele momento.


-- Qual seu nome? -- perguntou ao servir duas xícaras de café.


-- Salete. -- respondeu em voz timida ao aceitar a xícara oferecida.


-- Trabalha aqui há quanto tempo, Salete?


-- Bem... -- finalmente olhou-a nos olhos -- Eu nasci aqui. Não exatamente aqui, na verdade. -- explicou com ênfase, fazendo-a sorrir -- Quero dizer, minha mãe trabalha no castelo há muitos anos, e eu estou aqui desde que nasci, então... -- deu de ombros, encerrando sua confusa explicação.


-- Entendi. -- deu um aceno -- E quantos anos tem?


-- Tenho dezenove anos, senhorita.


-- E é feliz aqui?


-- Ah, sim. É um lugar seguro, afinal. O que mais eu poderia querer, não é? -- deu um ínfimo sorriso.


-- O que mais... -- repetiu em voz vazia.


     Distraiu-se por um momento enquanto pensava naquelas palavras. Segurança era suficiente para fazer uma pessoa feliz? Era importantíssimo, claro, mas não deveria haver mais coisas na lista da felicidade? Qual seria a lista de felicidade dela, afinal? Ter um propósito era algo certamente importante. Segurança era tranquilizador, mas ela sabia que era uma ilusão pois não havia um lugar totalmente seguro. Relutantemente adicionou mais itens em sua lista: companhia, amor, família. Sacudiu a cabeça espantando os pensamentos, deveria estar se distraindo com Salete, não se entregando em reflexões tão profundas tão cedo naquele dia.


-- O que tanto olha? -- perguntou ao notar o olhar da moça sobre si novamente.


     Mais uma vez ela desviou os olhos para longe rapidamente, mas depois os retorou até ela, acanhados.


-- Dizem que a senhorita se parece com sua mãe... -- comentou ao tomar um pequeno gole do chá.


     Então os mexericos já começaram, pensou ao morder o pão de centeio com manteiga.


-- Sim, eu me pareço muito com ela. -- concordou -- Como sabe disso?


-- Ah, senhorita... -- deu de ombros -- Sabe como os boatos correm. Além do mais, a relação de seu pai e sua mãe nunca foi segredo.


-- Foi para mim. -- murmurou aborrecida.


     Salete ficou confusa por um instante e, ao abrir a boca para questionar suas palavras, foi interrompida por uma batida na porta que logo foi aberta. Thomas adentrou o aposento em passadas firmes e rápidas, indo diretamente até Nix carregando um sorriso no rosto, e um ramalhete de flores nas mãos. A criada se levantou rapidamente, e uma parte dela quis pedir para que permanecesse ali sentada, mas não foi capaz de verbalizar aquilo pois estava hipnotizada por aquele homem.


-- Bom dia, minha deusa da noite! -- disse alegremente ao beijar-lhe os lábios num toque casto -- Vejo que não me esperou para tomarmos o café juntos.


-- Eu não sabia que viria, então convidei Salete para me fazer companhia. -- apontou a jovem que parecia desejar que um buraco se abrisse no chão para poder desaparecer.


-- Vossa graça... eu não... eu juro que... -- tentou se explicar nervosamente.


-- Não se preocupe, está tudo bem. -- tentou acalmá-la -- Poderia nos deixar à sós?


-- Mas preciso arrumar o cabelo da senhorita, o rei me pediu que...


-- Nós a chamaremos assim que terminarmos, sim? -- Nix a interrompeu com um sorriso no rosto, que esperava ser educado e não ameaçador.


-- É claro. -- fez uma reverência para ela -- Com licença.


     Antes de sair correndo, fez uma nova reverência para Thomas. Franziu as sobrancelhas com a estranheza da situação.


-- Salete fez uma reverência para mim? -- perguntou ainda encarando a porta.


-- É, ela fez sim. -- seu tom de voz foi divertido -- Algum problema?


-- Por que ela faria isso? -- questionou -- Por que alguém faria isso?


-- Saberia se ouvisse o que seu pai tem a dizer. -- uma pontinha de acusação a alfinetou.


     Isso fez com que sua atenção partisse diretamente para ele. Levantou-se e se aproximou, encarando-o seriamente.


-- Está me repreendendo? -- sua voz era baixa e sombria.


-- Não. -- levou uma mecha de seu cabelo ainda úmido para trás da orelha -- Só estou dizendo que há muitas coisas que você não sabe.


-- Coisas que talvez eu nunca queira saber. -- cruzou os braços -- E não me julgue por isso, Thomas.


-- Não é o que estou fazendo. -- passou um braço por sua cintura, a puxando de encontro a seu corpo.


     Nix passou as mãos pelo seu tronco, e as levou até sua nuca, acariciando-a. Tom estava divino. Seus cabelos castanhos estavam penteados e amarrados num rabo de cavalo baixo. Vestia roupas elegantes, uma calça bege justa, botas escuras de cano alto, e uma casaca verde. Cheirava à banho e óleo essencial.


-- Como pode estar tão calmo? -- perguntou.


     Thomas apenas franziu as sobrancelhas e, nesse pequeno ato, Nix percebeu a verdade. Ele não estava. Havia ido até ela, provavelmente, na intenção de acalmar-se. Ele juntou sua testa na dela e ficaram ali apenas abraçados, esperando aquele momento decisivo que aconteceria em breve.


-- Vai ficar tudo bem, Thomas. -- tentou acalmá-lo.


-- Se algo der errado, nós vamos fugir. -- anunciou simplesmente.


-- O quê?


-- Eu já consegui algum dinheiro. -- a abraçou apertado -- E já organizei tudo com seu pai. Partiremos antes do anoitecer, então... vai ficar tudo bem, não se preocupe com o julgamento.


     Afastou seu rosto para observá-lo melhor, e em seus belos traços havia a mais pura determinação. 


-- Eu confio em você. -- disse honestamente.


     Um meio sorriso torceu seus lábios e seus olhos castanhos dourados se iluminaram. Thomas buscou a mão dela e a beijou, depois lhe entregou o pequeno ramalhete de flores que ainda segurava, e a encarou intensamente por alguns segundos.


-- Preciso lhe confessar uma coisa. -- ela manteve silêncio, aguardando em expectativa, os olhos presos nos dele -- Nix, eu te...


     A porta foi aberta abruptamente e ambos se assustaram ao serem interrompidos naquele momento tão... o que diabos Thomas queria lhe dizer, afinal?


-- Preciso terminar de arrumá-la, senhorita! -- anunciou Salete ao adentrar o quarto apressada -- Sua escolta já veio buscá-la.


     Nix conteve a vontade de pedir para que a mulher desaparecesse dali, então apenas observou o rosto de Thomas atentamente por um mísero instante. Ofereceu-lhe um sorriso reconfortante, uniu seus lábios aos dele num beijo casto e afastou-se, rumando até a penteadeira para que Salete pudesse aprontá-la. Enquanto as mãos ágeis da jovem organizavam suas madeixas num penteado simples, uma agitação reverberava em seu interior com a curiosidade do que Thomas queria lhe dizer. O procurou através do reflexo no espelho, o encontrando logo atrás dela. Seus olhos continham uma tempestade intensa sob o castanho dourado e, quando encontraram os dela, ficaram presos um no outro até a criada terminar o penteado.


-- Está pronta, senhorita. -- anunciou a criada e se afastou para observar seu trabalho.


     Nix também o fez, retirou sua atenção do reflexo do homem atrás de si e passou a observar sua própria imagem. Seus cabelos negros foram puxados para trás, revelando totalmente seu rosto. Uma trança longa e intricada descia pelo lado direito de seu pescoço, dando-lhe uma aparência inocente, quase angelical. Sabia perfeitamente a intenção daquilo, assim como sabia que não funcionaria pois todos ali sabiam muito bem os crimes que já havia cometido. Finalmente era hora de enfrentar seus erros e lidar com eles, poderia ser esse o primeiro passo para sua redenção? Esperava honestamente que sim. Virou-se de frente para Salete e num aceno agradeceu o cuidado dela, depois encarou Thomas e o olhar que trocaram dizia mais do que qualquer palavra que poderiam proferir. Estamos juntos para qualquer fim, era o que garantiam um ao outro através daquele olhar.

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