Capítulo 42 - "Em que Willk transformou minha filha?"
Quando a viu sair acompanhada de sua comitiva de soldados, a reação de Thomas foi acompanhá-la imediatamente. Precisava conversar com ela, saber como se sentia, ajudá-la com a escuridão que sabia habitar dentro dela e que certamente estava ameaçando sufocá-la naquele momento tão delicado. Precisava abraça-la e se desculpar por não tê-la reconhecido antes, precisava garantir à Nix que tudo ficaria bem. Precisava senti-la em seus braços para se acalmar e ser capaz de garantir aquilo à si mesmo. Deu um passo na direção dela, mas uma voz potente o impediu.
-- Você não. -- disse o rei.
Thomas retirou o olhar de sobre a porta que foi fechada e o encarou. O homem parecia ter tido sua energia drenada. Suas feições estavam abatidas e soturnas, os olhos cinzas denunciando a obscura tempestade que se agitava em seu interior. Apesar de lhe dever respeito, por ser seu rei e marido de sua tia, tudo o que sentia naquele momento era desprezo. Como Abenforth pôde ter feito aquilo à própria filha? Abandoná-la logo depois da morte da mãe? Mesmo que fosse ilegítima, Cecilie era filha dele e..
-- Posso ver o julgamento em seus olhos, Thomas. -- suspirou e passou uma mão sobre o rosto, mostrando cansaço. Não físico, e sim emocional -- Mas sua opinião ao meu respeito não pode ser pior que a minha própria.
-- O que o senhor quer de mim? -- perguntou de uma vez.
-- Quero que me diga tudo o que sabe sobre minha filha. -- pediu -- Venha, vamos nos sentar.
Caminhou até os degraus do altar do trono e ali sentou-se pesadamente. Tom o acompanhou, mas permaneceu em pé com as mãos nos bolsos.
-- Eu não me sinto confortável com isso, majestade. -- anunciou.
-- Preciso de uma razão mais plausível para aceitar sua recusa sem insistir com mais afinco. -- lançou o tronco para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, encarando-o.
-- Nix não vai gostar de saber que lhe dei informações sobre ela. -- deu de ombros -- Provavelmente vai querer me escalpelar quando souber. Então, majestade, prefiro que todas as perguntas que tenha, faça diretamente à ela.
-- O nome dela é Cecilie! -- o homem sentado bradou -- E você realmente acha que ela vai me responder? Ela me odeia, mas... -- fechou os olhos e massageou as têmporas -- preciso que me escute. Preciso concertar as coisas, Thomas. -- abriu os olhos e o encarou, surpreendendo-o em como a tonalidade azul acizentada era idêntica à da filha -- Eu não fiz aquilo deliberadamente. Eu estava em choque, em luto pela mulher que amava... Uma semana. Era o tempo que eu pretendia deixá-la naquele orfanato enquanto eu acertava algumas coisas, então eu iria buscá-la para viver comigo. Aqui. Mas três dias depois recebi um bilhete informando que minha filha havia fugido... minha menininha... -- sua voz desapareceu aos poucos e Thomas apenas aguardou que continuasse -- Eu a procurei por um ano inteiro. Enviei contingentes e mais contingentes de homens em todas as direções possíveis. Nessa época eu fui relapso em meus deveres, o que deu a oportunidade à Irmandade das Sombras para ganhar forças para passar de um empecilho irritante para um perigo real. Zaya me obrigou à desistir, me obrigou a aceitar que minha filha estava morta em algum canto desconhecido. -- seu olhar se tornou perdido e machucado -- Então eu fiz um funeral. Velei e enterrei um caixão vazio enquanto rezava à qualquer um que pudesse ouvir, implorando que a trouxessem de volta para mim.
Ele se lembrava do funeral de Cecilie. Se recordava com impressionante clareza daquele dia. O sol estava claro, os pássaros cantavam, as flores desabrochavam inundando a paisagem com cores e o ar com seus aromas perfumados. Aquela alegria primaveril, aquela vivacidade, apenas serviu para zombar da tristeza e luto deles, tornando o funeral de um caixão vazio ainda mais sombrio do que já era. As únicas pessoas na cerimônia eram o rei, Thomas e o sacerdote.
-- Eu me lembro. -- o recordou em voz baixa.
Aquilo fez com que Abenforth retornasse sua atenção até ele.
-- Sim. Você estava lá. -- deu um sorriso pesaroso -- Sabe por que me afastei de você, Thomas? -- ele acenou uma negativa -- Você me fazia lembrar dela. Em quase todas as minhas visitas à Cassandra e Cecilie você estava junto. Vocês viviam correndo e aprontando suas travessuras, rindo e divertindo-se. Vocês dois se deram tão bem na primeira vez que o levei comigo que se tornaram inseparáveis. Então, de maneira tão dolorosa e inesperada, havia só você. Solitário e silencioso caminhando pelos corredores do castelo, lembrando-me de minha falha a cada vez que o via. Lembrando-me o vazio que ela deixou. Eu não falhei apenas com Cecilie. Falhei com minha amada Cassandra... e com você também. Então, por favor, me ajude a concertar as coisas. Eu lhe peço como pai, Thomas, não como rei.
O pedido dele, apesar de sua vontade sincera de tentar não se meter naquilo e sua lealdade para com os sentimentos de Nix, o comoveu. Tom deu um suspiro profundo, que denunciou seu descontentamento em ter de permanecer ali quando tudo o que queria era disparar correndo até ela. Soltou o ar e sentou-se ao lado de Abenforth.
-- O que quer que eu diga?
-- Diga-me como a encontrou. -- pediu o homem.
-- Eu não a encontrei, majestade. -- riu baixinho -- E, na verdade, imagino que seja impossível encontrá-la. É Nix quem nos encontra. Foi assim comigo, e agora com o senhor. Eu nem mesmo sabia quem ela era, nunca sequer desconfiei que Nix na verdade fosse Cecilie.
-- Nix... -- sussurrou o rei -- A primeira vez que ouvi esse nome foi há apenas um ano. Eu não sei se sabe, Thomas, mas há uma hierarquia de poder na Irmandade. Willk gosta de recompensar seus melhores soldados. Essa hierarquia muda facilmente, sabe? Não é difícil irritar Willk e acabar saindo da lista de seus preferidos. Um dia, numa das missivas de minha espiã, havia esse nome. Pedi para que me informasse mais a fundo sobre quem era aquela com nome mitológico, e soube que era uma garota qualquer à quem Willk abriga desde a infância. Ela está na lista, a carta dizia, apenas como fachada. Nix não participa de nenhuma missão realmente importante para a causa da Irmandade, é apenas uma mercenária que trabalha para garantir os fundos financeiros. -- olhou incisivo para Thomas -- Como eu poderia saber que se tratava da minha filha?
-- Não poderia, senhor.
-- Não... -- sacudiu a cabeça numa negativa deprimida -- A carta ainda dizia mais. Suspeito que a mulher tenha recebido tal posição por algum motivo além de suas habilidades e lealdade para com a Irmandade. Há algo além e eu irei investigar. Mas Rosene jamais mencionou aquele nome novamente. Entretanto os marcamos em nossos registros e foi assim que Christopher descobriu vocês.
-- O príncipe tem um talento nato para a guerra. -- comentou, sem saber realmente o que deveria dizer.
-- Sim, mas ele odeia isso. -- abriu um pequeno sorriso -- Odeia ainda mais do que eu odiei quando fui obrigado à assumir o trono. Mas Cecilie... -- seu semblante tornou-se desolado -- por Deus, em que Willk transformou minha filha?
-- Numa guerreira. -- informou-o em voz defensiva -- Eu nunca vi ninguém lutar como ela, nem mesmo um homem. E suas habilidades mentais? São esplêndidas! Sua filha derrotaria qualquer soldado seu com uma mão presa às costas.
-- Espera que eu admire isso? Que sinta orgulho?
-- Cecilie, que estava desaparecida há mais de quinze anos, ressurgiu como uma das mulheres mais imbatíveis do seu reino. -- tentou não soar rancoroso -- O que isso o faz sentir?
Abenforth demorou a falar, pensando na resposta, avaliando os sentimentos.
-- Eu estou com medo, Thomas. -- assumiu, surpreendendo-o -- Em meus sonhos quando reencontrava Cecilie, ela ainda era a menininha travessa e petulante que sempre foi. Mas agora ela está lá em cima. Uma mulher feita com seus vinte e quatro anos, que passou mais da metade da vida longe de mim, sofrendo sabe-se Deus que aflições. -- franziu as sobrancelhas -- Willk, aquele desgraçado, participou mais da vida dela do que eu. Willk, dentre todas as pessoas deste reino!
Percebeu que o rei falava de maneira muito íntima sobre o mestre da Irmandade, e imaginou o que dera origens à aquela inimizade que se tornou uma guerra que já perdura há tanto tempo. Mas manteve silêncio sobre suas curiosidades, pois o rei certamente não as sanaria naquele momento.
-- Qual seu medo afinal, majestade? -- perguntou.
-- Temo que minha filha nunca me perdoe, que nunca aceite ouvir minha explicação sobre o que realmente houve, que nunca entenda que eu não a abandonei. -- seus olhos marejaram, angustiados -- Temo que ela desapareça de novo.
-- Ela não vai. Pelo menos não até acabar de vez com a Irmandade.
-- Se acha que vou permitir que Cecilie continue lutando, perdeu o juízo. -- sua voz se tornou dura -- Viu o estado em que ela está? Como ela chegou aqui? Minha filha quase morreu há seis dias, Thomas, não vou permitir que...
-- Não pode impedi-la. -- o interrompeu -- Pediu para que lhe falasse sobre ela, meu rei, então ouça com atenção. Willk a manipulou com mestria para odiá-lo, mas fez muito mais do que isso. Ele a protegeu, alimentou, deu-lhe um lar e um objetivo. Nix era extremamente leal à ele, e mesmo assim o traiu, me salvou e passou por livre vontade para o nosso lado. Ela matou os antigos Irmãos que estiveram em nosso caminho durante a fuga, sem nem hesitar. Ela cuidou de mim depois de ser torturado e me ensinou à lutar. Nix é uma força da natureza, e se realmente acha que pode decidir o destino dela, está profundamente enganado. -- ao final de seu pequeno discurso o rei tinha o olhar sobre ele, e ao contrário do que esperava, era um olhar desconfiado.
-- Soube que lutou para defendê-la quando Christopher deu-lhe ordem de prisão. -- o rei comentou distraidamente.
-- Eu tentei, majestade. -- confirmou -- Estávamos numa pausa para beber água e descansar os cavalos quando fomos atacados. Nix foi apunhalada nas costas com uma adaga envenenada. Ela estava... -- arrepiou-se ao lembrar da gravidade do momento em que quase a perdeu -- estava precisando de cuidados. Então eu cometi o deslize de dizer o nome dela e o príncipe a prendeu.
-- Sim, mas não podemos culpá-lo por isso. -- defendeu o filho -- Afinal, como ele poderia saber que aquela era a meia irmã, de quem nunca nem ouviu falar. Além do mais Christopher é... extremamente correto no que se diz respeito às leis do homem e de Deus. Foi por isso que o prendeu também. Mas, voltando ao assunto, segundo o relato do príncipe você estava... qual foi mesmo a palavra que ele usou? -- pensou por um segundo -- Enfurecido. Ele me disse que ficou totalmente fora de si quando ela foi levada. E as criadas nos disseram que se recusou a comer suas refeições, que estava apático e deprimido e que suas únicas palavras eram "ela está viva?".
Um silêncio desconfortável surgiu. Os dois homens se encararam até que Thomas não suportou mais aquilo.
-- O senhor está sugerindo alguma coisa? -- perguntou.
-- E a rainha exigiu uma audiência para vocês dois de maneira deveras insistente. -- desviou-se da pergunta -- Me envergonho em dizer que não pretendia atender ao pedido, mas Zaya estava irredutível. Certamente você lhe implorou tal favor e ela, por amá-lo como um filho, aceitou ajudá-lo. E sem nem mesmo cogitar tal situação, ajudou minha filha. -- balançou a cabeça, pensativo -- Não posso imaginar qual será a reação dela quando contar-lhe tudo isso. Céus, estou me perdendo em divagações como um velho. A questão, Thomas... -- enarou-o sério e concentrado -- é que quero saber exatamente o que houve entre você e minha filha durante a viagem até aqui.
Abenforth tinha um olhar intimidador, aquele olhar típico de quem defende a prole com unhas e dentes. Não estava certo se ele poderia carregar tal olhar naquelas circunstâncias, mas repreendeu-se ao pensar isso. Estava permitindo que seus sentimentos por Nix... por Cecilie... o colocassem contra o rei por lealdade à ela, ao ódio que sentia pelo pai. Mas Thomas sabia a verdade. Havia visto com seus próprios olhos o quanto o desaparecimento dela devastou o homem, o quanto foi consumido por dor e luto dia após dia. Nem mesmo o nascimento de Christopher, quase um ano depois da tragédia, fez com que a luz da alegria brilhassem nos olhos dele novamente. E quando a pequena Crystal nasceu há cinco anos, o rei se recusou à conhecê-la por meses, certamente temendo ver Cecilie quando colocasse seu olhar sobre a menina. A felicidade morreu em Abenforth no dia em que Cecilie desapareceu, e não era justo Thomas irritar-se com ele por estar reclamando seus direitos de pai ao reencontrá-la, por estar tentando protegê-la agora que tinha essa oportunidade, essa segunda chance.
-- Muitas coisas aconteceram entre nós. -- disse evasivo.
-- Isso foi muito vago. -- repreendeu o rei.
-- Bem... -- respirou profundamente pensando numa resposta -- N-nós cavalgávamos quase exaustivamente, tivemos de caçar algumas vezes para comer e...
-- Pelo amor de Deus, Thomas! -- urrou o rei de repente, assustando-o -- Quero saber se você a desonrou!
Sim, ele imaginou que era à isso que sua majestade se referia mas havia tentado escapar do assunto.
-- Sim, senhor. -- confirmou sério, forçando-se a não gaguejar num momento tão importante -- Nós tomamos liberdades recentemente.
O olhar cinza do rei não demonstrou raiva ou surpresa, era mais como... se já soubesse a resposta.
-- E o que pretende fazer à respeito, Thomas? -- intimou-o.
-- Eu já fiz, majestade. Pedi sua filha em casamento minutos antes de chegarmos na Cidade Real, seis dias atrás.
Abenforth balançou a cabeça por longos segundos, os olhos ainda sobre ele.
-- E qual foi a resposta de Cecilie?
-- Ela... -- um sorriso torceu seus lábios ao lembrar-se de que, depois da recusa, ela o havia aceitado -- Ela disse sim. -- frustração o dominou quando recordou de que tudo havia mudado drasticamente e que estava ali conversando não só com o rei, mas com o pai de sua amada -- Imagino que eu deva lhe pedir permissão.
-- Não será preciso, Thomas. -- recusou o rei com um ínfimo sorriso de canto, o primeiro que curvava os lábios dele naquele dia.
-- Não? Mas ela é sua filha, senhor, e...
-- E é sua noiva desde que nasceu. -- o rei o interrompeu.
-- Perdão?
Ele havia escutado direito? Estaria imaginando coisas?
-- Nós sempre soubemos que Cassandra esperava uma menina. E desde o primeiro dia em que ela me disse que estava grávida eu fiquei... exultante. Então como todo bom monarca faz, eu planejei uma vida boa para minha princesinha. Você tinha quatro anos na época, e fiz um acordo de casamento com seu pai, que deveria ter sido cumprido assim que ela completasse dezoito anos. -- o sorriso se alargou -- Acha que eu o levei para junto de meus dois maiores tesouros sem um propósito? Cecilie estava destinada à ser sua esposa desde antes de nascer. -- anunciou, fazendo o mundo dele girar -- Vocês tem a minha benção.
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