O único som no salão principal era o barulho de seus passos ressoando sobre o mármore. Thomas andava de um lado para o outro dominado pelo nervosismo enquanto esperava que Nix fosse levada até ali. Tia Zaya foi mais do que eficiente ao cumprir sua promessa de lhe conseguir uma audiência particular com o rei, mas ele havia sido o primeiro à chegar no salão acompanhado de seus guardas. Havia se alimentado, se limpado e barbeado para estar apresentável na presença do soberano. Apesar de ser casado com  sua tia, Thomas nunca considerou Abenforth Strong como seu familiar. Não, isso não era verdade. Haviam sido próximos na infância de Tom. Quando passava uma temporada no castelo, tão distante quanto podia dos olhos do pai, o rei brincava com ele, o levava em cavalgadas pelos campos e o ensinava coisas das mais diversas. Desde os nomes das plantas que encontravam nos bosques, até sobre suas obrigações como um cavalheiro e lorde.

     Abenforth não só abriu as portas de sua casa para o sobrinho da esposa, mas também acolheu um jovem carente de afeto e percebeu aquilo. E fez algo a respeito. O rei o incluiu com prazer na coisa mais preciosa que possuía: sua família. A filha dele havia sido sua primeira e única amiga de infância e Thomas sentia falta dela diariamente. Mas a tragédia não poupa nem mesmo os monarcas, e a menina faleceu antes de completar dez anos de idade. O rei nunca mais foi o mesmo, fechou-se dentro de si tomado por seu luto e sofrimento que perduravam até os dias de hoje. E Thomas perdeu não só sua melhor amiga, mas também seu tio amado. Agora o homem era apenas "sua majestade" e não "tio Abe".

     Um barulho do outro lado do salão foi ouvido e viu o rei chegando junto do príncipe,  ambos com sua habitual escolta. Sentiu um arrepio na coluna quando os olhos de Abenforth cruzaram com os dele por um segundo, e mesmo à distância percebeu toda a fúria que ele nem mesmo tentava esconder.  O rei subiu os três degraus que o levavam ao seu trono e sentou-se imponente, enquanto Christopher se acomodou numa cadeira simples que fora colocada ao lado, e ambos iniciaram uma conversa em voz baixa. Vez ou outra o olhar de um deles recaía sobre Tom, que começou a sentir uma forte apreensão. Estariam eles decidindo o futuro dele, o futuro de Nix, sem nem mesmo ouvir o que eles tinham a dizer? Seriam capazes de tamanha atrocidade? Começou a suar frio, repassando o discurso que havia preparado em sua cabeça, verificando se necessitava de alterações. Precisava ser conciso, ir direto ao ponto e esclarecer que Nix havia sido manipulada e enganada e... duas batidas soaram na porta às suas costas, seguida de mais outra. Ela havia chegado.

     Virou-se rapidamente de frente para as altas portas duplas que estavam sendo abertas naquele instante e... ele a viu. E seu coração parou. E depois começou a bater de novo, frenético e exultante. Ela estava abatida e pálida, magra num vestido azul grande demais para ela, mas estava viva. Misericoridosamente viva e olhava para ele intensamente, a sombra de um sorriso nos lábios. Seus pés agiram por conta própria levando-o até ela, que adentrava o lugar sendo escoltada por quatro soldados. Abriu os braços, ansioso por tê-la entre eles, mas um dos soldados impediu que a alcançasse barrando-o ao colocar uma mão em seu peito. Tom retirou os olhos de sua amada e encarou o homem com violência.

-- Tire essa mão de mim. -- disse baixo e contido -- Agora.

     Apesar de estar sob suspeita Thomas ainda era um duque e sabia como dar uma ordem. O soldado endureceu o maxilar, contrariado, mas o obedeceu com relutância. Sem mais impedimentos ele chegou até Nix e a abraçou apertado. Senti-la ali, firme e quente e real depois de tantos dias de angústia e sofrimento era mais do que ele podia aguentar. Sentiu lágrimas queimarem seus olhos, mas não se permitiria chorar ali. A soltou e recuou para observá-la mais atentamente. Estava com olheiras e aparência cansada, e havia um discreto inchaço em seu queixo que passaria despercebido à olhos menos atentos.

-- Alguém te bateu?! -- a pergunta soou mais como uma exclamação indignada -- Quem lhe fez isso?

-- Não tem importância. -- ela disse em voz fraca sacudindo as mãos que tilintaram, ele olhou para baixo e apenas agora percebeu que estava algemada e sentiu seu interior revirar, furioso -- O que está acontecendo, Thomas?

-- Uma audiência particular com o rei. É nossa única chance de... -- tossiu, nervoso -- Bem, vamos apenas explicar tudo à ele.

     Apesar de ter interrompido sua explicação infeliz, Nix compreendeu imediatamente a importância da situação. Ela acenou afirmativamente e aprumou os ombros, pronta para a batalha. Mas ele não estava. Queria beijá-la e abraçá-la e dizer que a protegeria, dizer que a amava. Se encararam por alguns segundos enquanto ele mergulhava no cinza de seus olhos, tomou fôlego para lhe dizer todas aquelas coisas mas uma voz estrondosa o impediu.

-- Vocês tem meia hora, Thomas. -- anunciou o rei do outro lado do salão -- Sugiro que começem logo.

     Era a hora. Entrelaçou seu braço ao de Nix e deu um passo na direção do altar, mas ela permaneceu parada, o olhar vidrado. A encarou preocupado e percebeu nela um olhar apavorado.

-- Vamos, Nix. -- Thomas a chamou.

-- Eu não posso... -- sussurrou totalmente amedrontada, empalidecendo ainda mais -- Me tire daqui. Por favor, Thomas, me tire daqui agora!

    Confusão o dominou com aquela reação, mas compreendia o medo dela. Abenforth era um rei gentil e bondoso com seus súditos, mas era implacável com seus inimigos. Principalmente com os membros da Irmandade.

-- Vamos fazer isso juntos. -- garantiu -- Vai ficar tudo bem.

     A puxou novamente e ela o seguiu, relutante. Fizeram o percurso sem demora e logo estavam à cerca de um metro do primeiro degrau do altar do trono, totalmente à mercê do rei que os encarava três degraus acima com expressão áspera. Fez uma reverência que Nix acompanhou desajeitadamente, a olhou de soslaio para lhe passar segurança antes de iniciar seu discurso mas ela estava de cabeça baixa olhando para os próprios pés, os cabelos formando um véu negro ao seu redor, escondendo-a. Estranhou a submissão total dela para com o rei, mas logo deixou de pensar naquilo pois não perdia perder mais tempo. Soltou seu braço do dela, deu um passo para a frente e iniciou seu discurso.

-- Como sabe, vossa majestade me incumbiu de uma missão muito especial, que cumpri à perfeição. Resgatei todos os informantes de Willk e o ceguei por um período de tempo, o que possibilitou que os estoques de comida chegassem ao porto em segurança para serem distribuídos à população. Mas eu fui descoberto, majestade, e Willk enviou Nix para me capturar.

-- Mas isso não saiu como o esperado, não é? -- Christopher comentou, recebendo um olhar irritado do pai pela interrupção.

-- Na verdade, meu príncipe, ela foi muito bem sucedida. Me capturou sem esforço e me levou até a Fortaleza da Irmandade como prisioneiro. Mas Nix... -- olhou para a mulher, que ainda mantinha os olhos no chão -- percebeu que algo estava errado. Então veio me interrogar pessoalmente. Ali eu descobri as mentiras que Willk contou à ela, ele dizia que o senhor é quem havia acabado com as...

     Abenforth levantou uma mão para silenciá-lo, e Thomas se calou imediatamente, apreensivo. O rei encarava a mulher ao seu lado com nítida aversão.

-- Esta parece ser uma história fascinante, Thomas. Mas quero ouvir dela. -- apontou para Nix, que permanecia parada feito uma estátua.

     Abenforth afiou o olhar para a mulher, tomando seu silêncio como desafio. Pânico dominou Thomas, que aproxinou-se de Nix num pulo.

-- Por favor, vossa majestade, ela chegou aqui muito ferida. Ainda está se recuperando e... -- apoiou a mão no ombro esquerdo dela, percebendo que tremia da cabeça aos pés -- Nix, o que está acontecendo? Está se sentindo mal?

     Ela não respondeu. Apenas continuou ali, estática. Christopher resmungou alguma coisa sobre insubordinação, mas Tom não se importou pois estava realmente preocupado com o estado dela, pois estava claro que havia alguma coisa errada.

-- Se essa mulher se recusa a falar, então que seja. -- o rei se levantou -- Talvez ela abra o bico amanhã no julgamento.

     Nesse instante Nix levantou o rosto que estava molhado, banhado em lágrimas. Seu olhar foi direto até o rei de maneira incisiva, acusadora, rancorosa e transbordando mágoa. Tanta mágoa que Thomas deu um suspiro, assustado. O que estava acontecendo? Olhou para Abenforth no alto de seu pedestal e o que viu o confundiu ainda mais. O rei parecia ter visto um fantasma. A cor foi drenada de seu rosto que ficou pálido feito pergaminho, os olhos cinza arregalados em descrença, em surpresa e absoluto choque.

-- Cassandra... -- sussurrou em voz partida.

     Tudo o que Nix fez foi continuar a encará-lo, as lágrimas ainda escorrendo desenfreadas. Seu corpo começou a tremer ainda mais e suas mãos estavam fechadas em punhos entre o aperto das algemas. Então, lentamente, o rei desceu os degraus sem tirar os olhos de sobre Nix. Thomas intercalava o olhar de um para o outro, confuso, tentando compreender o que acontecia ali. Christopher levantou-se para ver a estranha cena se desenrolar, igualmente perdido. O rei parou em frente à Nix, olhou atentamente cada parte de seu rosto, e Tom percebeu que tinha os olhos marejados. Abenforth levantou uma mão para tocar os cabelos negros dela mas, antes disso, desmoronou e caiu de joelhos aos seus pés.

-- Cecilie...-- sussurrou com reverência em voz triste, e chorou abertamente -- Minha amada Cecilie...

     O nome que não ouvia há tantos anos evocou lembranças distantes em sua mente. Duas crianças correndo pelo quintal, subindo em árvores e fazendo todo tipo de travessura. Thomas havia sido amigo de Cecilie desde que se conhecia por gente. Como a menina vivia distante da corte do pai, livre das regras e imposições da sociedade, ambos criaram nomes muito mais divertidos um para o outro do que seus verdadeiros. Cecilie o chamava de Marquesi, zombando de seu antigo título de marquês. Thomas a chamava de Mais Eu, zombando de seu sobrenome Mayzer. Encarou Nix sentindo um aperto na garganta quando a compreensão finalmente o atingiu com a força de um raio. Como pôde não tê-la reconhecido antes?

     Nix na verdade era Cecilie. A filha bastarda do rei Abenforth que estava perdida há quinze anos.

Eu precisava postar esses capítulos pq estava MEGA ansiosa! Hahahaha

E também preciso muito saber o que estão achando dessa história, das reviravoltas, me digam nos comentários! 🖤