Capítulo 4 - "Poupe-se, rapaz"
Ela estava absolutamente desconfortável com a situação. Thomas a olhava naquele momento como se não a visse, e por um instante ela quis saber o que ele estava pensando. Seus olhos castanho claros, antes suaves e gentis, agora estavam arregalados de compreensão e medo. Sua pele empalideceu ficando com aparência quase doentia, destacando o hematoma arroxeado em seu olho esquerdo. Nix nunca passou, em suas missões anteriores, por algo semelhante. Seus alvos lutavam e esbravejavam. A agrediam de todas as formas que pudessem e tentavam escapar. Mas não ele. Incontáveis segundos depois, o homem baixou o olhar para o cantil que, num ímpeto de incomum bondade, Nix ofereceu a ele.
-- Se acha que a água está envenenada, me devolva a droga do cantil. -- esticou o braço direito, mas não o tomou dele.
-- Veneno. -- sussurrou cabisbaixo e sacudiu a cabeça, soando desacreditado -- S-suponho que o que me aguarda na mão de seu mestre seja muito pior do que isso, n-não é?
Nix não pôde deixar de notar uma leve gagueira e imaginou que se devia ao fato de ele estar sob grande pressão, já que na noite anterior, durante a breve conversa despreocupada deles, não havia traço algum daquela dificuldade. Ela baixou seu braço e Thomas levantou seu rosto para olhá-la novamente, enquanto aguardava uma resposta. A mulher permaneceu em sombrio silêncio pois se recusava a dizer o que ele claramente já sabia. E ela também achava desnecessário assustá-lo ainda mais.
-- Beba. Estamos quase chegando. -- disse da forma mais suave que se permitiu e retornou para o banco da frente.
Logo o som ritmado do trote do cavalo abafou o barulho das goladas sedentas que o homem dava nos fundos da carroça. Nix apenas esperava que ele houvesse compreendido o significado de suas palavras: se prepare.
Se prepare para a sede e fome e frio que o farão passar. Se prepare para as surras que virão diariamente, junto dos intermináveis interrogatórios. Se prepare para se despedir de quem um dia foi. Se prepare pois Willk era conhecido por fazer seus inimigos implorarem pela morte.
Mais alguns quilômetros e ela pôde vislumbrar a sede da Irmandade. Uma fortaleza de três andares, tão larga quanto era alta, construído em pedra cinza. Dali, ela podia ver as diversas janelas espalhadas pelo lugar, tão pequeninas à distância. As muralhas que o rodeavam eram fortes e maciças, com milhares de pontas de flechas no topo, prontas para espetar qualquer um que fosse tolo o suficiente para tentar invadir. Porém tão rápido quanto surgiu a imagem desapareceu, ocultada pelas árvores do Bosque do Trevo que rodeavam o lugar, se alongando por muitos metros além. A estrada que já era ruim ficou ainda pior, porém ela nao diminuiu o passo pois ansiava por terminar aquela maldita tarefa o quanto antes. Aquele homem agia de formas estranhas e inesperadas aos olhos dela, a surpreendendo mais do que gostaria de admitir. O que a intrigava é que ele parecia ser bom. Mas um homem bom assassinaria quase uma centena de pessoas? Homens fracos, mulheres e crianças? A resposta é não e isso nem mesmo a gentileza irritante dele seria capaz de mudar. Mas instigava demasiado a sua curiosidade. Estava se segurando para não olhar para trás, não queria demonstrar como ele a desestabilizava, até que se lembrou de uma janela fria e um homem que caminhava por um jardim, afastando-se dela. Lembrou-se da sensação de ansiar por um olhar sequer, por uma despedida, por um mísero sinal de que ela importava.
Fechou os olhos com força, furiosa consigo mesma. Será que era aquilo o necessário para fazê-la fraquejar? Um rostinho bonito e cinco minutos de conversa gentil? Nix não se permitiria ser fraca agora, não depois de tudo o que fez nesses últimos doze anos para se tornar quem ela é hoje. Abriu os olhos e viu o portão de madeira da fortaleza, que logo se abriu para sua passagem e o atravessou enquanto obrigava aquele turbilhão de emoções dentro dela se silenciarem, pois com apenas um olhar Willk perceberia que algo não estava da maneira que deveria. Assumiu sua máscara de tédio e sacudiu as rédeas, apressando o cavalo nos últimos metros para acabar logo com aquela porcaria de missão.
Cinco homens a aguardavam. Quatro deles estavam eufóricos com a chegada de sua nova diversão, ela podia perceber no brilho ensandecido de seus olhos que seguiam a carroça. O quinto homem estava imóvel, de braços cruzados, com a atencão única e exclusivamente nela. Puxou as rédeas e a entregou para um dos homens que correu até ela, descendo graciosa e rapidamente em seguida.
-- Vão descobrir que nosso prisioneiro é um homem um tanto singular. -- disse a ninguém em especial -- Curiosamente, retirar a mordaça é a única forma de fazê-lo ficar quieto.
-- Ele está consciente? -- perguntou Willk que ainda tinha o olhar sobre ela -- Não me lembro de você já ter sido tão contida antes, queridinha.
Com sua visão periférica, viu que dois homens retiravam o suporte de madeira e lona que cobria a carroça para descer o prisioneiro com mais facilidade, enquanto outro seguiu até ele para lhe cortar as cordas das pernas.
-- O que foi, Nix? Esse pomposo foi demais para você? -- perguntou um deles, rindo, e ela apenas revirou os olhos -- Diga-me, bonitão, o que fez para ela não te apagar? Nada a dizer, hã? Que tal uma ajudinha para encontrar sua voz?
Um grito de dor irrompeu e os homens riram. Nix não pôde ver onde Thomas foi atingido, mas ouviu uma adaga ser desembainhada. Isso não é problema seu. Uma voz dizia em seu interior.
-- Ora, aí está! O duque tem voz, língua e todos os dentes. -- zombou o homem -- Por enquanto.
-- Otto. -- Willk disse, baixo e calmo, saindo de sua posição imóvel e finalmente encerrando sua avaliação sobre ela.
-- Estou liberada?
-- Vá. -- disse o mestre -- Eu sei o quanto fica de mau humor quando não dorme. Me entregue o relatório da missão quando acordar.
Sem mais delongas ela saiu em passadas largas e rápidas, seguindo ao refúgio de seus aposentos com a capa negra esvoaçando com o movimento. Ela sentia olhos perfurando suas costas e sabia exatamente a quem pertenciam. Mas em momento algum Nix olhou para trás.
Quando chegou na fortaleza da Irmandade das Sombras naquela manhã, Thomas ostentava um olho roxo. Agora seu rosto, outrora belo e atraente, era apenas uma junção de hematomas e algumas possíveis fraturas no nariz e mandíbula. Entretanto estava satisfeito pois ainda não havia perdido nenhum dente. Não que se importasse muito com eles, apenas não queria dar a satisfação ao seu torturador de vê-los saindo voando de sua boca. Juntou toda sua força e puxou sua cabeça de onde estava, jogada para trás devido à força do último soco que recebeu e piscou para espantar a escuridão que o ameaçava engolir a cada golpe.
-- Você se acha muito forte, não é? -- disse seu agressor.
O homem apenas sorriu. Ou tentou, ao menos. E esperou pelo próximo golpe que viria em breve, mas este não veio. Willk se afastou e pegou um pano, já sujo do sangue de Tom, e limpou as mãos com calma e tranquilidade, dedo por dedo.
-- Pois eu vou te contar uma coisa, rapaz. -- disse e o encarou -- Você não é. Está prestes a desmaiar e eu ainda nem comecei a me dedicar neste interrogatório.
-- Eu... -- esforçou-se Thomas a falar -- N-não vou...
-- É, é, você não vai falar nada, eu ouvi das últimas cinquenta vezes que disse isso.
Sim, essa era uma média bem precisa sobre o quanto ele havia repetido aquelas palavras nas últimas Deus sabe quantas horas. Suspirou e aguardou os próximos passos do mestre da Irmandade. Willk abandonou o pano ensanguentado de volta à pequena mesa do canto da sala, pegou a outra única cadeira dali e a arrastou até a sua frente, sentando-se em seguida.
-- Preste atenção no que eu vou lhe dizer, Thomas Longford. -- disse o homem firme e com olhar sério -- Basta me dizer tudo o que seu Rei sabe sobre minha Irmandade e eu paro com isso. Identifique os espiões dele, diga quem está nos investigando. Me diga onde estão os meus espiões. Quantos homens lutam por ele e onde eles estão aguardando pelas ordens reais.
Tom apenas o encarou, esforçando-se para ignorar a dor que sentia. Para distraí-lo, ele se dedicou a memorizar as feições daquele homem maldito. Os cabelos castanho claros eram raspados bem curtos, os olhos eram de um azul frio e cristalino, as sobrancelhas grossas e unidas num semblante de raiva contínua. Willk suspirou e se levantou.
-- Poupe-se, rapaz. -- aconselhou -- Não vai sair dessa vivo, sabe muito bem disso. Diga logo o que preciso saber e vou lhe dar um fim sem dor. Tem a minha palavra.
-- P-palavra... de um... me-mercenário assassino? -- sussurrou ofegante.
-- Há honra até mesmo em homens como nós, acredite. Como mostra de minha generosidade e boa fé eu lhe darei vinte e quatro horas para pensar. Quando eu voltar amanhã, ao pôr do sol, é melhor abrir o bico, senão irei lhe mostrar o verdadeiro significado da palavra dor.
Willk saiu e o outro homem ali presente, o mesmo que lhe cortou o braço mais cedo apenas para fazê-lo gritar, apressou-se até ele e começou a soltar as tiras de couro que o prendiam na cadeira de ferro fundida no chão.
-- Se sabe o que é bom para você, obedeça o mestre.
-- Ele não é... meu m-mestre. -- disse Thomas e se levantou, cambaleante.
Seus passos eram leves e ele foi mais arrastado até sua cela do que caminhando dignamente. Lá, o homem o abandonou e trancou as grades grossas que pareciam chumbo de tão pesadas, e se foi, com os barulhos de seus passos se distanciando até silenciarem completamente. Finalmente sozinho, Thomas se permitiu dar vazão aos sentimentos que haviam dentro dele. Rancor pela ordem recebida de seu Rei e raiva de si por tê-la cumprido. Socou a parede com toda a sua fúria e tudo o que conseguiu foi mais uma porção de dor. Willk tinha razão, ele não era forte. E nem corajoso. Mal conseguiu aguentar alguns ganchos de direita, como conseguiria suportar tudo o que ainda o aguardava? Sentou-se num amontoado de palha que havia num canto e, por fim, decidiu se deitar. Olhos cinza surgiram em sua mente. Lembrou-se de quando aquela mulher lhe ofereceu todo o seu cantil e desconfiou de que ela sabia que aquela porção de água seria a única que conseguiria naquele dia. Por que fez aquilo? Remorso? Tom duvidava. Queria sentir raiva dela, culpá-la, mas não conseguia. Você é minha missão, ela lhe disse. Não, a culpa não era dela. A mulher ainda não sabia que estava do lado errado daquela guerra. O único culpado era ele, que foi tolo o suficiente para se deixar ser pego tão facilmente, de forma vergonhosa enquanto cumpria seu primeiríssimo trabalho real. Lamentando profundamente que suas últimas horas de vida seriam num calabouço putrído e sobre um monte de palha fedorenta, adormeceu.
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