Capítulo 36 - "Eu mudei de idéia"
Apesar de parecer que o tempo havia parado enquanto Nix era invadida por aquela lembrança longínqua, apenas segundos haviam se passado enquanto ela encarava Pauline. A dor da faca ainda presa às suas costas próxima à omoplata direita passou ao segundo plano assim que a adrenalina invadiu sua corrente sanguínea. Avaliou a situação e não era nada boa. Cerrou os dentes para conter a dor, sacou sua adaga da bainha presa à sua cintura e atacou a mulher à sua frente.
Pauline desviou de sua lâmina com facilidade e logo revidou com a espada. Nix não teve a mesma agilidade que a outra, mas conseguiu sair do alcance da lâmina inimiga. Não tenho a menor chance sem uma espada, pensou temerosa. Mas jamais iria correr até os cavalos para armar-se, pois isso levaria Pauline até Thomas e sua prioridade era mantê-lo a salvo. Mas... e se ela não estivesse sozinha? Olhou na direção do riacho procurando por ele e o viu de costas para ela, observando a água correr numa postura despreocupada. Misericordiosamente sozinho, alheio ao perigo que corriam. Esse ínfimo segundo de distração deu a Pauline uma vantagem, e a mulher a usou. Colocou as mãos nos ombros de Nix, o que aumentou a ardência e dor em suas costas, e lhe deu uma joelhada na boca do estômago que lhe tirou o ar.
Ela se dobrou para frente enquanto tossia e tentava encher os pulmões, sua visão ficando turva e sua mente enevoada.
-- Não está se sentindo invencível agora, não é? -- zombou a mulher.
-- Willk não a ensinou a lutar com honra, Pauline? -- Nix murmurou com esforço.
-- O mestre me ensinou a vencer. E deveria tê-la ensinado o seu lugar há muito tempo atrás. Eu disse a ele que você não era confiável, eu o alertei sobre as regalias que insistia em dar à você. Justamente você, uma ninguém em quem ele tropeçou aleatoriamente. -- deixou que a mulher falasse a seu bel prazer, ganhando tempo para recuperar o fôlego -- Eu o conheço desde antes da Irmandade existir, sabe? Meus pais eram empregados do pai dele, crescemos praticamente juntos. Até que um dia ele foi expulso de casa e tudo mudou. Sabe o que eu fiz? Eu fui com ele. Deixei minha família e o segui. O apoiei. Aprendi a lutar e matar por ele. Para ajudá-lo a conquistar o que merece! Eu fui seu braço direito até que você apareceu, uma piolhenta magricela! Willk mudou depois disso. Em cada plano havia um espaço para você, a cada conversa você acabava de uma forma ou outra sendo citada. Ele começou a me designar cada vez mais missões até que eu mal parava na Fortaleza, sempre tendo de ir à algum lugar, fazer alguma coisa. Você tirou tudo de mim.
Nix endireitou sua postura e apertou a mão no cabo da adaga, sentindo o sangue escorrendo por suas costas pingando ao chão.
-- Eu não fiz nada disso. -- sua voz estava trêmula -- Você é a única culpada por se iludir à respeito dos sentimentos de Willk. Ele não ama ninguém além de si mesmo.
-- Isso não é verdade e você sabe muito bem, Nix! -- bradou irada -- Ele a amou. Por que acha que Willk ordenou à todos nós que a levassemos até ele com vida? Para lhe dar um sermão e passar a mão em sua cabeça por essa travessura, como sempre fez! Mas eu não vou deixar que ele cometa o mesmo erro duas vezes.
Pauline levantou a espada e a desceu sobre Nix, que segurou o golpe com a adaga usando toda sua força. A faca presa às suas costas a estava enfraquecendo a cada segundo, e sua inimiga continuou a forçar sua lâmina em direção ao pescoço dela, que estava perdendo a luta. Com a mão esquerda segurou a espada que se aproximava cada vez mais e tentou empurrá-la. Rangeu os dentes com a dor e sentiu lágrimas lhe queimarem os olhos mas não podia desistir, senão o próximo a morrer seria Thomas. A lâmina afiada de Pauline cortou-lhe a palma e, soltando um grito selvagem, Nix reuniu toda sua pouca força restante e empurrou a espada dela para longe. Depois afastou-se rapidamente e lançou sua adaga em sua direção, quase cegamente, acertando a coxa esquerda de Pauline.
Uma vertigem súbita a tomou e sentiu seu estômago revirar. O que diabos estava acontecendo com ela? Havia mirado sua adaga no peito da mulher e acertado sua coxa. Sua perna vacilou e ela trombou para o lado, mas recuperou-se e conseguiu evitar a queda. Viu a mulher à sua frente jogar a própria espada ao chão e segurar o cabo da adaga presa à sua coxa, que puxou com força mantendo um sorriso violento no rosto enquanto encarava Nix. O que será...
-- Aaaahhhh... -- um grito próximo soou acima da névoa em sua mente e ela viu Thomas pular sobre Pauline com força total.
A mulher foi pega totalmente de surpresa e mal foi capaz de conter a espada que Thomas lançou sobre ela. Pauline desviou a lâmina dele usando a adaga de Nix e então os dois começaram uma luta acirrada. O barulho de metal contra metal soando ao longe a alertou de que algo muito errado estava acontecendo com ela. Piscou os olhos com força e esforçou-se a focar a visão. Tom tinha a vantagem de uma arma melhor e sua força bruta, mas Pauline tinha mais experiência. Não demoraria para ela virar o jogo então Nix tinha de agir imediatamente. Lançou-se o mais rápido que pôde na direção da espada da mulher ainda ao chão, a apanhou e seguiu até a luta. A vertigem estava piorando diminuindo a precisão de sua mira, então preferiu não correr o risco de acertar Thomas num golpe letal que era destinado àquela maldita mulher. Arrastou-se até as costas de Pauline e, fazendo um esforço descomunal, passou a espada atrás de seus joelhos num corte profundo. Ela caiu ao chão imediatamente, soltando um grito visceral. Agora, tentou dizer à Thomas, mas sua voz não passou de um sussurro inaudível. Encontou o olhar dele que a encarava assustado, respirou fundo e conseguiu gritar.
-- Agora!
Ele compreendeu imediatamente o que ela quis dizer e, antes que a mulher caída reunisse forças para se levantar, Thomas enfiou a espada em seu peito até a metade. Pauline arfou com a dor do impacto, mas ainda assim, lançou um sorriso distorcido para Nix.
-- Eu não me importo de morrer agora. -- falou enquanto sangue lhe escorria pela boca -- E espero que você também não, Nix, pois não tem muito tempo. -- gargalhou -- Eu a matei! Nos veremos no inferno em b...
Thomas puxou a espada do peito de Pauline, que começou a jorrar sangue em grossas pulsadas. Mas nem mesmo isso a silenciou, sua risada maldosa ainda continuou por alguns minutos e só cessou quando sua vida se esvaiu por completo. Nix ainda encarava o corpo imóvel ao chão quando sentiu duas mãos em seu rosto. Levantou o olhar e encontrou Thomas à sua frente, girando à distância. Sentiu a inconsciência se aproximando nas sombras negras que ondulavam nos cantos de sua visão embaçada.
-- Veneno. -- murmurou -- Tire a faca, Thomas. Tire a...
Suas pernas cederam e Nix caiu de joelhos num baque, seu corpo mole e fraco. Ouviu um palavrão ser dito e logo uma dor lancinante a invadiu vinda de suas costas, irradiando por seu braço e seu peito. Calor e frio a invadiram com a mesma intensidade e o ar tornou-se escasso. Tentou se levantar mas não foi capaz, porém logo sentiu-se ser içada para cima e voou, voou para longe, para um lugar sereno, um lugar muito melhor que o mundo em que viveu seus dias. Se a morte fosse tão tranquila assim, então sentia alívio por finalmente estar em paz.
-- Acorde, porra! -- uma voz estridente e furiosa a trouxe de volta da inconsciência.
-- Thomas... -- mais gemeu do que falou o nome dele.
-- Fique acordada! -- ordenou -- Ouviu b-bem, Nix? Abra os olhos e olhe para mim!
Ela tentou obedecê-lo, mas abrir os olhos exigia demais dela naquele momento, portanto preferiu guardar suas forças. Queria espantar o desespero genuíno que percebeu na voz dele mas não poderia fazer nada à respeito, pelo menos não enquanto sentia a escuridão à espreita.
-- P-por favor, Nix! -- pediu angustiado -- Não me d-deixe! Você não pode me deixar, não pode, não p-pode...
Eles estavam cavalgando, ela percebeu tardiamente, Thomas a segurava forte nos braços enquanto o cavalo seguia correndo à toda velocidade.
-- Willk tinha razão... -- ela disse em meio à suas respirações cada vez mais profundas -- Ele sempre teve razão...
-- O quê? -- ele perguntou -- O que isso quer d-dizer?
-- Que sentimentos são fraquezas, são... perigosos...
Sua voz desapareceu aos poucos e sua consciência estava sendo reivindicada quando Thomas, mais uma vez, a despertou.
-- Nix, fale comigo! Continue f-falando comigo.
Aquilo a fez querer sorrir, se tivesse forças para tal.
-- Eu paguei o preço... por me permitir enfraquecer... -- sua respiração tornou-se ruidosa e sua garganta queimou, sedenta -- Mas eu não me arrependo. Eu mudei...
-- Nix! -- ele gritou e a despertou de novo -- Mudou o quê? P-porra não me deixe! Você não pode me d-deixar assim.
-- Eu mudei de idéia... -- sussurrou -- Sim, Thomas... minha resposta... é sim.
Três coisas aconteceram ao mesmo tempo: Thomas soltou um soluço num choro inconsolável, depois lhe deu um beijo no topo da cabeça e murmurou palavras que a mente dominada pelo veneno de Nix não foi capaz de compreender e, por fim, ela mergulhou no vazio da escuridão de onde não teve mais forças para sair.
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