Capítulo 30 - "Há momentos em que não me reconheço"
Nix estava imersa no castanho dourado dos olhos de Thomas, tão sinceros e profundos. Ela realmente percebeu o arrependimento dele e seu pedido de desculpas, mesmo depois daquela pesada confissão, a emocionou até o âmago. No instante em que ele lhe beijou as mãos uma segunda vez, demorando-se um segundo a mais no ato, sentiu que haviam atravessado alguma barreira outrora intransponível na relação deles. Sentiu que estavam mais próximos, mais íntimos. Desejou secretamente que fosse sempre assim, e acabou por perdoá-lo do fundo do coração. Mas ao abrir a boca para dizer-lhe isso, o caos explodiu. Maggi adentrou o quarto ofegante, anunciando a pior coisa que poderia acontecer.
-- Eles estão aqui! -- disse ainda parada à porta, uma mão apoiada no batente enquanto tentava recuperar o fôlego.
Então, esquecendo-se se toda a emoção que os envolvia segundos atrás, Nix agiu.
-- Precisamos sair daqui. -- falou enquanto seguia até o alforje jogado na cama -- Agora! Pegue nossas moedas, Thomas, e o outro alforje ali no canto. -- apontou a penteadeira próxima à porta do quarto de banho.
Não demorou nem um minuto para que juntassem suas coisas e logo os três se reuniram no corredor, sem saber ao certo para onde deveriam ir.
-- Me diga o que viu. -- pediu Nix enquanto olhava atentamente ao redor em busca de uma rota de fuga, já irritada por se sentir encurralada e não ter pensado em como escapariam caso fossem pegos.
-- Ramsei e mais três homens estão lá embaixo, conversando aos sussurros com meu pai e...
-- Diga tudo logo, Maggi! -- vociferou Nix.
-- Eles pareciam nervosos e ouvi o nome do curandeiro ser citado. Na verdade eu acho que...
Dessa vez o som que interrompeu a fala de Maggi foi o de passos subindo as escadas. Nix imediatamente fez um sinal exigindo silêncio e, tentando não fazer barulho, seguiu até o final do corredor o mais rápido que pôde, ignorando as dores insistentes em seu quadril.
-- Esse quarto está ocupado? -- a menina acenou negativamente
-- É o quartinho de serviço. -- informou.
-- Ótimo.
A mulher abriu a porta e eles entraram apressados, trancando-a em seguida.
-- O que vamos fazer? -- Thomas perguntou, tenso.
-- Preciso pensar. -- Nix seguiu até a janela do aposento minúsculo, que ficava logo acima da entrada da estalagem -- Eles desconfiam de você?
-- Não. Os Irmãos mal olham para mim desde que você... -- parou e encarou Thomas, receosa.
-- Pode falar, Maggi. -- autorizou sem se virar para eles, puxando uma pequena fresta da cortina verde para espiar a movimentação na rua.
-- Eles me ignoram desde que quase matou aquele Irmão para me defender. -- disse baixinho.
Nix percebeu quatro cavalos amarrados na pequena cerca de madeira da entrada da estalagem, que não estavam ali minutos antes. Virou-se para seus dois companheiros e encontrou-os a olhando atentamente, num misto de expectativa e medo. Nos olhos de Thomas também havia curiosidade.
-- Eu a encontrei nos estábulos na companhia de um homem, contra a vontade dela. -- explicou para ele -- Por sorte eu cheguei a tempo. Quantos anos você tinha, Maggi?
-- Tinha acabado de completar quatorze anos.
-- Você vai precisar salvar a si mesma desta vez. -- aproximou-se deles e estendeu a mão para Tom -- As moedas.
Sem demora o homem depositou o saquinho de couro em sua mão, que estava bem mais leve do que antes, mas ainda havia o suficiente para ajudá-la.
-- Tome aqui e ouça-me com atenção. -- entregou-lhe as moedas que tilintaram ao serem passadas para suas mãos -- Você vai até os estábulos bem despreocupadamente, e então preparará três cavalos e deixará dois presos sob o grande carvalho nos fundos da estalagem. O terceiro você vai usar para chegar até a Estrada Principal, e assim que puder enxergar o edifício da carruagem-correio desmonte, solte o cavalo e siga à pé. Lá compre sua passagem até a Cidade Real e ao ser abordada pelos guardas nos muros de contenção, diga que foi enviada pelo duque Thomas Longford Segundo. Diga que foi resgatada por ele das garras da Irmandade e que está lá para pedir asilo. Você me entendeu?
-- Sim, mas o que direi caso me perguntem onde o duque está?
-- Diga-lhes que ele está à caminho, e que está levando um presentinho para o rei.
Maggi arregalou os olhos ao compreender aquela frase, entendendo que logo Nix seria entregue nas mãos do homem que mais odiava a Irmandade das Sombras em todo o reino. Até mesmo alguém inocente como ela percebeu que aquilo provavelmente não acabaria bem.
-- Eu posso esperar por vocês nos acampamentos reais, que ficam pouco antes das muralhas do castelo. Quando chegarem, o duque pode voltar à segurança e poderíamos fugir, você e eu. -- Nix sorriu, emocionada com a oferta da menina -- Senhora, o rei irá matá-la assim que pôr os olhos sobre você!
-- Na vida há o que queremos e o que precisamos. -- suspirou pesadamente -- E eu preciso fazer isso, Maggi. E você precisa ir agora, mas... eu agradeço profundamente a sua consideração.
-- Eu vou cuidar dela. -- uma voz masculina soou firme e convicta, atraindo a atenção das duas mulheres ali -- Pode ir tranquila, Maggi.
A menina aceitou aquelas palavras e saiu apressada, mas ao tocar a maçaneta olhou para trás. Despediu-se de ambos com um sorriso hesitante e partiu sem dizer palavra. Agora sozinhos e com um plano em andamento Nix precisava encontrar uma saída imediatamente. Mas antes...
-- Por que mentiu para ela? -- perguntou à Thomas que a encarou confuso, mas que logo franziu as sobrancelhas em compreensão.
-- Eu não menti. -- cruzou os braços.
-- Não pode falar pelo rei e garantir minha segurança, Thomas. -- se aproximou dele -- E também não pode sair por aí mentindo para as pessoas, mesmo que seja pelo bem delas.
-- Eu só disse que vou cuidar de você, não fiz promessas pelo rei como insinuou. -- abaixou o rosto em sua direção, ficando à centímetros de Nix que agora era capaz de sentir seu hálito quente.
-- E como pretende cuidar de mim? -- ironizou -- Vai lutar contra dezenas de guardas para me tirar da forca caso o rei decida acabar comigo?
-- Eu encontraria uma maneira, Nix. -- falou dando de ombros -- Posso não ser um guerreiro como você, mas apesar do que pensa sou inteligente o bastante para tirá-la de lá caso seja necessário. E também tenho dinheiro, o que facilita as coisas. -- deu-lhe uma piscadela.
E simples assim, Nix acreditou nele. Com aquele sorriso de canto e olhar sedutor Thomas não era especialmente confiável mas, maldição, ela colocaria sua vida nas mãos dele. Assim como fez quando aceitou beber aquele láudano sedativo quando ele lhe garantiu que estaria junto dela. Nix não se sentia confortável em adormecer na presença de estranhos ou num lugar desprotegido. Preferiria aguentar a dor crua do tratamento que o curandeiro lhe aplicou à ficar vulnerável, mas quando ele lhe disse aquelas palavras tudo pareceu ficar bem. Eu estarei com você. E esteve. E ainda estava mesmo depois daquela briga horrível e das confissões de Nix sobre seu passado.
-- Está disposto a salvar uma criminosa da justiça do rei? -- não conteve a pergunta, pois realmente precisava saber se Thomas faria por ela o que um dia ela fez por ele.
O homem demorou a responder. Desceu seus olhos para os lábios dela dando à eles uma atenção excitante, e depois retornou o olhar para cima encarando-a profundamente, perfurando-lhe a alma, desnudando-a.
-- Estou disposto à qualquer coisa, Nix. -- sua voz não passou de um sussurro -- Há momentos em que não me reconheço... -- aproximou-se mais dela até que seus lábios quase se tocaram -- Eu jamais faria determinadas coisas mas, por você... eu farei.
Ela prendeu a respiração sentindo o impacto daquelas palavras sobre si, que sabia serem verdadeiras pois ela também não se reconhecia, ela também fez por ele coisas que jamais imaginou ser capaz de fazer. Sentiu as mãos formigarem ansiosas por acariciar os cabelos sedosos dele que desciam pouco abaixo dos ombros, e se não estivessem prestes à serem pegos ela o teria beijado. Mesmo que houvesse pedido para ele se afastar, mesmo que houvesse decidido que o melhor era não se envolverem. Afinal, que diabos importavam suas decisões se eles já estavam irreversivelmente envolvidos? Alguma coisa pareceu se encaixar dentro dela, num clique que colocou tudo no lugar. Algo significativo lampejou no fundo de seu ser, mas Nix não tinha tempo para compreender o que havia acontecido.
-- Maggi já deve estar terminando de aprontar os cavalos. -- afastou-se dele -- Precisamos ir.
Thomas apenas concordou num aceno breve. Ela se colocou a observar o quarto mais atentamente e descobriu ali uma porta estreita, que imaginou ser um armário na parede. Mas ao abri-la, descobriu ser uma escadaria que descia até perder de vista, escura e com cheiro forte de carvão e mofo.
-- Isso deve dar nas cozinhas. -- sugeriu Thomas atrás dela.
-- Vamos. -- deu o primeiro passo mas ele a impediu, segurando-a pelo ombro.
-- É arriscado demais. Algum criado vai nos ver e nos delatar, Nix.
-- Quantos criados você viu aqui até agora, Thomas? -- olhou-o por cima do ombro -- É um negócio de família, e o estalajadeiro é muito mão de vaca para contratar alguém. Só temos de nos preocupar em encontrar Darcí, a mulher dele.
-- Então deixe-me ir na frente. -- pediu e Nix lhe deu passagem.
Fecharam a porta e ficaram na completa penumbra por alguns segundos, até que finalmente seus olhos se adaptaram à escuridão. Iniciaram uma descida lenta e silenciosa enquanto respiravam aquele ar velho e parado, depois de dois lances de escadas chegaram em uma porta estreita semelhante à anterior. Os dois colaram os ouvidos na madeira na tentativa de captar algum som do outro lado, mas encontraram apenas um silêncio opressor. Então Nix abriu a porta devagar, que rangeu alto, e encontrou um aposento vazio. Parecia um tipo de armário, talvez um depósito que não era utilizado há algum tempo. Alguns poucos metros adiante havia uma porta maior, que sem dúvida daria para as cozinhas. Seguiu até lá mas antes de abrir a porta pegou duas adagas, as desembainhou e entregou uma à Thomas.
-- Se nos encontrarem, você corre. -- ordenou aos sussurros, a mão já firme sobre a maçaneta.
-- Nem pensar, Nix. E não peça de novo.
-- Não foi um pedido.
-- Eu não atenderei seu pedido, e muito menos sua ordem. -- sorriu -- Só vamos sair logo daqui, sim.
Bufando de frustração Nix abriu a porta e encontrou a cozinha aparentemente vazia. Saiu apressada, seguida por Thomas, indo diretamente até a porta que dava para os fundos da propriedade, o lugar perfeito para escaparem dali. Mas vozes abafadas e passos pesados foram ouvidas do lado de fora, impossibilitando a saída deles.
-- Mas que merda! -- exclamou Tom -- Vamos voltar ao armário!
-- Não! -- ela estancou ao notar uma outra porta num canto, tão velha e encardida quanto as outras, mas que tinha um desenho infantil em tinta branca desbotada -- Por aqui, Thomas.
Correu até lá e adentrou o cômodo abruptamente, que como desconfiou de inicio, descobriu ser o quarto de Maggi. Tom entrou logo em seguida e tentou trancar a porta, mas descobriu não haver tranca. Olhou para ela, os olhos brilhando em apreensão e medo.
-- Estamos ferrados. -- declarou a tragédia anunciada.
-- Não enquanto não formos pegos. -- ouviu uma porta ser aberta e batida, ergueu o dedo sob os lábios em sinal de silêncio com um aviso no olhar.
Thomas acenou afirmativamente compreendendo seu comando, e lhe lançou um meio sorriso conspiratório. Vou tentar não espirrar, disse sem emitir som. Nix revirou os olhos, mas seus lábios se curvaram ao responder um idiota, igualmente silencioso.
-- Como ela não está em lugar nenhum? -- uma voz masculina bradou do outro lado da porta, seguida pelo estrondo de algum objeto sendo quebrado.
-- Eles estavam lá em cima! -- Darcí dizia visivelmente amedrontada -- Eu não sei o que houve, mas não devem estar longe. Ela está ferida e...
-- Você realmente acha que isso será capaz de contê-la, sua imbecil? -- uma outra voz disse, mais contida e baixa , e Nix soube que aquela frieza pertencia a Ramsei -- Eu não ordenei que me comunicassem sobre cada maldito hóspede que aparecesse aqui?
-- Sim, senhor, mas ela parecia tão inocente. Fingindo-se de grávida e... -- um estalo interrompeu a fala da mulher, seguido de um ganido de susto e dor. Nix e Thomas trocaram um olhar tenso.
-- E vocês me desobedeceram, bando de imprestáveis! -- rugiu -- Agora saia das minhas vistas antes que eu perca o pouco que me resta de paciência, e fique em seu quarto até Willk chegar aqui. Este lugar agora está sob o total comando da Irmandade.
-- Willk? -- ofegou a mulher em voz trêmula -- Mas senhor...
-- Nix é assunto exclusivo de Willk e suas explicações você deverá dar à ele. Agora saia. -- passos rápidos soaram anunciando a partida de Darcí, e não demorou para Ramsei continuar -- Enviem um bilhete para Willk informando que Nix foi vista na Vila do Tombo, e outro para a fortaleza pedindo reforços. Começaremos a caçada em meia hora e não se esqueçam de pegá-la viva, ou o mestre vai nos esfolar.
Sequer mencionaram o nome de Thomas, o que era um mínimo alívio. O foco da Irmandade era Nix, a desertora, que deveria ser entregue ao mestre para receber sua punição e servir de exemplo aos outros soldados. Um frio gélido invadiu sua barriga ao ouvir o nome de Willk. Sabia que iria vê-lo novamente, mas ainda não estava pronta. A mágoa por suas mentiras e manipulações ainda estava sufocante, a dor da traição ainda trazia um gosto amargo em sua boca. Precisamos ir, disse sem som. Thomas apontou para trás dela com um gesto de cabeça e, ao averiguar o que havia ali, encontrou uma pequena janela. Graças aos céus haviam perdido peso e conseguiriam passar por ali. Tentando não fazer nenhum ruído seguiram até lá e moveram o vidro para cima.
-- As damas primeiro. -- lhe estendeu a mão de maneira galante e Nix a aceitou, revirando os olhos.
Atravessou a janela sem muitas dificuldades, porém rangeu os dentes para suportar a dor em sua perna ferida sem fazer caretas, e logo seus pés bateram no gramado do lado de fora num som oco. Thomas veio logo em seguida, um tanto desajeitado mas igualmente rápido. Estavam há três metros dos fundos da construção, e há dez estavam suas montarias. Caminharam os poucos metros apressados e escoraram as costas no final da parede. Nix espiou o terreno atentamente procurando alguma movimentação. Nada. Respirou fundo e virou-se para Thomas que estava parado ao seu lado.
-- Precisamos correr o máximo que pudermos. -- avisou -- Há uma grande janela que dá para os fundos e é quase certo que seremos vistos. Está pronto?
-- Nix você não vai...
-- Você está pronto? -- o interrompeu irritada. Thomas a encarou preocupado, mas assentiu. -- No três. Um... dois... agora!
Eles saíram correndo pelo descampado, num terreno totalmente aberto e desprotegido, às vistas de qualquer um que para lá olhasse. A perna dela logo começou a queimar como fogo, mas a mulher apenas trincou os dentes e se forçou à correr ainda mais. Thomas tinha a vantagem das pernas mais compridas - e sem ferimentos - então seguiu à frente dela. Estavam próximos dos cavalos que pastavam tranquilamente sob o grande carvalho quando uma movimentação foi ouvida. Haviam sido vistos. Sem olhar para trás Thomas acelerou ainda mais o passo e alcançou as montarias, as desamarrou esperou por Nix para ajudá-la.
-- Monte logo! -- gritou, virou-se para trás e arremessou uma adaga no peito de uma mulher que a perseguia já quase em seu encalço -- Vá, vá!
Thomas hesitou por um instante mas fez o que ela pediu e não demorou para Nix alcançar seu próprio cavalo e montar num salto. Partiram à galope, os cascos dos animais levantando poeira conforme aceleravam colina acima. Os alforjes sacudiam sobre os ombros deles, mas a adrenalina era tanta que mal foram capazes de senti-los. Nix olhou por sobre o ombro para trás e viu os três Irmãos correndo para longe, certamente em busca dos próprios cavalos para saírem em perseguição. Pense, Nix, pense! Forçou-se a pensar em um plano para despistá-los, mas não conseguiu pensar em nada. Aquela região era árida e seca, não havia árvores para se esconderem, nem cavernas ou rochas e nem mesmo um mísero arbusto. Havia apenas a planície que se estendia à quilômetros. Ela teria de lutar.
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