Capítulo 28 - "Eu sei o que fiz"

Já era tarde da noite, Nix ainda não tinha despertado e isso o estava matando. Como solicitado Darcí lhe trouxe todas as refeições no quarto, sempre acompanhadas de uma porção de caldo e do chá que o curandeiro havia recomendado. Três vezes naquele maldito dia Thomas havia empurrado algumas colheradas do caldo pela boca de Nix com todo o cuidado de não permitir que se afogasse, e também lhe oferecia o chá e água fresca sempre que percebia a febre voltar. Ela recebia os cuidados com alguma relutância mas, talvez movida pela fome ou instintos de sobrevivência, acabava por aceitá-los. E depois, nada. Ela só dormia, quieta e silenciosa, sem nem mesmo se movimentar durante o sono.


     Tocou a testa dela percebendo estar gloriosamente fria. Aproximou o candelabro que jazia na mesa de cabeceira para vê-la melhor e percebeu que não tinha mais a aparência doentia daquela manhã. Suspirou aliviado por isso, mas permaneceu apreensivo. Por que ela não acordava? Já deveria ter despertado, nem que fosse por alguns minutos. Bastava disso! Levantou-se decidido à ir tirar o curandeiro da cama e arrastá-lo até ali. Caminhou até a porta à passos largos e, ao tocar a maçaneta, um resfolegar foi ouvido. Virou-se com o coração batendo forte e viu a mulher fazer um movimento com os ombros e levar a mão à boca.


-- Thomas! -- chamou em voz entre cortada -- Eu vou...


     Rapidamente ele compreendeu o que estava acontecendo e correu até o quarto de banho, apanhou a jarra do aparelho de barbear e levou até ela. Nix forçou-se a levantar o tronco e debruçou-se sobre a jarra que Tom segurou para ela, e ali vomitou todo o conteúdo do estômago em duas golfadas violentas. Quando terminou, limpou a boca com uma mão trêmula e jogou-se de volta na cama com um gemido contido.


-- Como se sente? -- ele perguntou ao voltar do quarto de banho, onde havia guardado a jarra suja.


-- Como se tivesse levado uma surra. -- respondeu de olhos fechados -- Na verdade, não. Me sinto ainda pior do que se tivesse levado uma surra. Minha cabeça...


-- Imagine como estaria se tivesse tomado todo o láudano? -- cruzou os braços e se aproximou da cama.


-- Provavelmente eu dormiria até que o efeito dele tivesse passado completamente.


-- Eu duvido muito. Essa ressaca de ópio é inevitável e, se os boatos que ouvi forem verídicos, é a pior que existe.


-- Eu nunca tive ressaca, então na minha experiência essa já é a pior que existe. -- ela abriu os olhos, massageou as têmporas um instante e suspirou, como se estivesse conformada com a dor -- Pode me ajudar a levantar?


-- Eu não sei se...


-- Por favor.  -- sussurrou -- Meu corpo todo está doendo nessa droga de cama.


     Imediatamente Thomas chegou até ela lhe estendendo as mãos, que Nix prontamente aceitou. Num primeiro momento achou um tanto atípico dela pedir ajuda, mas percebeu que no fundo não era tão orgulhosa assim. Ainda mais estando tão debilitada, fraca e ferida. Seu coração se apertou por Nix, que era sempre tão forte e independente, e detestou aquela situação. Preferia que seu cavalo houvesse escorregado, preferia que ele estivesse machucado, não ela. Estava acostumado a ser o indefeso, o dependente, e podia imaginar com profunda clareza o quanto ela estava incomodada em se ver naquela posição. Mas agora que ele precisava auxiliá-la, não a decepcionaria. Seria forte por ela, assim como ela foi por ele nos primeiros dias daquela jornada, quando Thomas mal se aguentava em pé e Nix o ajudou a cada doloroso passo.


     Fazendo considerável força ela conseguiu ficar em pé e Tom a soltou, mantendo apenas os braços ao seu redor caso precisasse segurá-la. Nix fechou os olhos por alguns instantes e testou a perna ferida depositando peso nela.


-- Está doendo bem menos. -- murmurou -- O problema agora é minha cabeça, que está girando e parece prestes a explodir à qualquer momento.


-- Não é melhor se sentar? -- perguntou, preocupado.


     Aquilo a fez abrir os olhos e encará-lo diretamente.


-- Não. -- passou por ele, mancando, e dirigiu-se até a pequena janela do quarto. Abriu uma fresta na cortina florida e espiou lá fora -- Que horas são?


-- Já passa da meia noite. -- cruzou os braços e sentou-se na beirada da cadeira que havia colocado ao lado dela na cama, ainda atento -- Quer que eu lhe peça uma refeição? A taverna ainda está funcionando lá embaixo.


-- Se eu comer agora será um desperdício de alimento, pois colocarei tudo para fora com certeza. -- fechou a cortina e virou-se para ele, se apoiou na parede e suspirou -- Precisamos partir pela manhã.


-- N-nem pensar! -- praticamente gritou.


-- Thomas, me escute...


-- Não! Me escute você! -- levantou-se e apontou o dedo para ela -- Nós não passamos por tudo isso para que morra nos últimos quilômetros dessa viagem ensandecida!


-- Não exagere, eu já estou...


-- Fraca, é o que você está. -- a interrompeu novamente aproximando-se e ficando bem próximo do rosto dela e, mesmo com os centímetros a mais, o olhar raivoso de Nix não vacilou nem por um segundo -- Ferida, exausta, e com dor. Posso ver claramente então não minta.


     Nix apenas franziu as sobrancelhas, visivelmente frustrada, mas Thomas permaneceu irredutível.


-- Partiremos depois de amanhã. -- anunciou.


-- Muito cedo. -- discordou ele -- O curandeiro recomendou repouso, creio que três dias serão suficientes.


-- Impossível! -- se afastou da janela e se aproximou -- Você não entende, Thomas, cada segundo aqui é um risco.


-- Assim como será quando irmos embora! -- apontou a janela, já irritando-se com tamanha insistência tola -- Pare de ser inconsequente e teimosa!


-- Eu? -- gritou ultrajada levando uma mão ao peito -- Inconsequente e teimosa? Ora seu... imbecil iludido! -- bateu com o dedo no peito dele -- Tonto ignorante! -- bateu de novo -- Não podemos ficar aqui!


     Irritação começou a alfinetá-lo, assim como os cutucões insistente que Nix ainda dava em seu peito. Pegou a mão dela pelo pulso e a segurou com firmeza, deu alguns passos e a imprensou contra a parede.


-- Vamos trocar ofensas agora? -- falou baixo tentando soar ameaçador.


-- Só enquanto você estiver agindo como um idiota completo! -- tentou retirar a mão do aperto dele, mas Tom apenas a segurou com mais força -- Precisamos partir o quanto antes, pois há Irmãos demais nessa cidade e seremos descobertos em algum momento.


      Aquilo o confundiu por um instante, mas logo compreendeu.


-- A Vila do Tombo é uma Cidade Forte? -- perguntou surpreso.


      A coroa pouco sabia sobre a Irmandade das Sombras. Eles eram muito sigilosos e, quando alguém entrava, só saia de lá morto. Ou sem a língua. Mas quando Thomas conseguiu resgatar alguns informantes semanas atrás, descobriu que haviam diversos pontos estratégicos dispersos em todo o território do reino. A Fortaleza era a sede principal, e as Cidades Fortes as sedes secundárias administradas pelos comandantes de Willk.


-- Não, mas é bem perto daqui, na Cidade do Lirio Azul. -- respondeu depois de alguma hesitação -- Como sabe sobre as Cidades Fortes?


-- Como você sabe? Apenas os soldados do mais alto escalão sabem sobre isso, segundo ouvi falar.


-- Eu sou um soldado do mais alto escalão. -- Thomas apenas manteve silêncio, esperando que a mulher se desse conta do que havia dito -- Ou pelo menos era. A questão é que se Ramsei me ver estamos ferrados então nós realmente precisamos partir amanhã.


-- Ramsei é o comandante de Willk? -- ela acenou afirmativamente -- Qual o sobrenome dele?


-- Eu não sei, Thomas! Grene alguma coisa.


-- Grenthor? -- exclamou, surpreso -- Ramsei Grenthor?


-- Você o conhece?


-- Ele é o barão de Greenville, e tem um assento na corte real que herdou depois que o irmão mais velho morreu de... acidente de carruagem.


     Procurou o olhar dela, buscando a confirmação. Encontrou ali algo obscuro e sombrio.


-- Ele matou o irmão. E depois ameaçou a esposa dele que estava nos primeiros meses de gravidez. Disse que se tivesse uma menina, elas poderiam viver. Mas se fosse um menino... -- deixou a frase suspensa no ar -- A mulher juntou algumas jóias e fugiu logo depois.


     Thomas ouviu boatos sobre a esposa do falecido George Grenthor ter fugido com seu amante dias depois da morte do marido. Agora, anos depois, ele sabia a verdade. Olhou para Nix e subitamente sentiu-se enojado. Soltou seu pulso como se este o houvesse queimado e afastou-se dela, passando as mãos pelos cabelos.


-- Vocês são a escória desta terra! -- disse com raiva borbulhante -- São demônios em peles humanas que só sabem trazer destruição.


     Chegou ao outro lado do quarto e virou-se para ela, que permanecia parada no mesmo lugar com expressão insondável na luz das poucas velas. Nix não refutou sua acusação. Apenas manteve-se em silêncio, como se concordasse com cada palavra. Aquilo, de alguma maneira, o enfureceu ainda mais.


-- Você já fez coisas baixas assim? Suas mãos estão sujas desse jeito, Nix? Tem uma lista de quantos inocentes já matou? Ou perdeu a conta? Talvez nunca tenha se dado o maldito trabalho de contar, não é mesmo? Afinal por que perder tempo imaginando quantas vidas já destruiu. E depois...


-- Pare. -- ela o interrompeu naquele timbre que ele conhecia tão bem, que era puro ódio contido -- Você não está sendo justo.


-- Quer realmente falar sobre justiça, Nix? -- ironizou -- Logo você que cometeu sabe-se lá quantas atrocidades e...


     Ela avançou sobre ele com velocidade surpreendente para alguém que tinha a perna machucada, provavelmente movida pela raiva. A mesma raiva que o impelia a continuar falando tentando feri-la de alguma maneira na intenção de vingar as suas vítimas. Ele próprio poderia ter sido uma delas e esse pensamento apenas inflamou sua ira.


-- Você quer saber quantas pessoas eu matei? -- disse entre dentes, com o cinza dos olhos frios como gelo --  Eu sei o número exato. Você quer os nomes? Eu sei todos. Eu sei a forma que acabei com a vida de cada um, os que pediram clemência e os que me chamaram de "maldita vadia assassina de Willk". -- silenciou por um momento, os olhos presos aos dele e ainda assim distantes, como se estivessem revivendo alguma lembrança -- Eu sei os motivos que Willk me deu para cada sentença, os crimes que eles haviam cometido. Mas agora que sei que fui enganada, eu sonho com eles. Quase todas as noites. -- sua voz agora mal passava de um sussurro e o deixou arrepiado -- Eu vejo seus rostos apodrecidos, seus olhares acusatórios. Sinto suas mãos em decoposição me apertando, me puxando para baixo da terra pútrida, me sufocando. Ouço suas vozes em minha mente -- deu duas batidas na têmpora -- dizendo o quanto sou ruim, e podre e que eu deveria estar naquela vala junto deles.


     O silêncio reinou e Thomas não saberia dizer por quanto tempo. Tudo o que havia ali era o som da respiração difícil de Nix, que ainda o encarava com ódio mortal. As palavras dela lhe foram mais violentas do que um soco no estômago e lhe tiraram o ar com igual eficácia. Ele sempre soube que Nix era parte ativa da Irmandade mas jamais pensou a fundo sobre isso e, quando o fez, perdeu a cabeça. E a perdeu pois gostava demais dela e não queria aceitar as coisas horríveis que ela fez no passado. Mas aquilo fazia parte dela, era o que a havia moldado para ser a pessoa que Nix era hoje, a pessoa pela qual havia... Não, não iria pensar nisso, iria pensar no assunto em questão. Forçou-se a ser racional e, como ela havia pedido, justo. Se fosse qualquer outro Irmão à capturá-lo, ele já estaria morto. E se Nix fosse uma pessoa cruel, como tentaram fazer dela desde que era uma criança, ela jamais o teria salvo. Jamais teria arriscado o próprio pescoço de forma tão definitiva na intenção de prejudicar o próprio mestre. Lembrou-se de cada momento junto dela, da forma que o cuidou, que o ajudou. Tentaram torná-la um monstro sim, mas sua essência permaneceu boa. E era isso que a consumia e mantinha aquele olhar torturado nela, que ele constantemente percebia quando a pegava distraída. Ele achou que aquilo era apenas a tristeza de sua infância sofrida, mas percebeu que também era remorso.


-- Mais do que ninguém eu sei o que eu fiz, Thomas -- a voz dela soou partida e ele se amaldiçoou por isso -- E mais do que ninguém eu sei do que essas pessoas são capazes e como eles agem. Nós partiremos amanhã. Alguma objeção?


     Sim. Era cedo demais para seguir viagem. Esforçar-se demais poderia fazer com que a infecção piorasse. Sentiu vontade de sacudi-la até que compreendesse o risco, mas de repente percebeu que ela compreendia. E não se importava nem um pouco. Tudo o que Nix queria era terminar logo aquela missão, mesmo que morresse no caminho. Aquilo o fez sentir-se ainda pior por tê-la acusado tão cruelmente.


-- Não. -- concordou baixo incapaz de prolongar aquela briga, incapaz de aguentar o olhar raivoso e triste dela que ainda prendia o dele.


     Sem dizer palavra ela se arrastou de volta à cama tentando não mancar, enquanto Thomas tentava não socar a própria cara. Sempre soube que Nix era uma mulher de muitas facetas, com um passado conturbado e com sentimentos mais profundos do que ele seria capaz de imaginar. Era difícil tolerá-la, aceitá-la e entendê-la. Ela fez coisas erradas e ele a odiava por isso. Mas ela  estava se esforçando para fazer o certo e ele a amava por isso. Prendeu a respiração quando algo gelado se espalhou pelo seu peito, invadindo-o com a percepção afiada de que havia se apaixonado por Nix. Mesmo quando a odiou nunca pensou em abandoná-la. Fazer isso era impensável e impossível e ele... ele... havia sido tolo o bastante para se apaixonar por sua captora, pela mulher que o levou para a tortura e morte. Pela mulher que o salvou.

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