Capítulo 26 - "Chega de só sobreviver"
Ele a beijou. E não foi nem um pouco como Nix havia imaginado noite após noite em suas vigílias enquanto observava Thomas dormir, e isso a estava deixando severamente incomodada. Claro que sabia que em algum momento aquele beijo acabaria acontecendo. Em suas secretas fantasias noturnas ela imaginou que o ato seria passional, que ambos seriam movidos pela intensa atração que os impulsionaria aos braços um do outro num beijo avassalador. Mas foi... a droga do completo oposto disso! Não houve línguas e mãos e gemidos sem fôlego, houve carinho. Suavidade. Conexão. Como se... como se aqueles macios lábios masculinos sempre tivessem pertencido à ela, e que estivessem apenas perdidos, afastados pelas circunstâncias às quais ambos foram submetidos. Mas no instante em que estiveram finalmente colados junto aos dela lhe passaram a sensação de pertencimento, de finalmente voltar para casa. Essa merda melosa não faz sentido! Faz?
Suspirou frustrada enquanto observava a porta que Thomas fechou à pouco, contendo a preocupação que a alfinetava. Precisava confiar nele e faria aquilo. Mesmo sabendo que o homem é absolutamente capaz daqueles afazeres, o medo que Nix sentia era constante. Medo da Irmandade encontrá-los. Medo da inexperiência de Tom entregar o disfarce deles. Medo de perdê-lo. Bufou exasperada irritando-se consigo mesma. Tudo na sua vida agora parecia girar em torno daquele maldito homem e Nix não gostava do rumo que as coisas pareciam estar tomando. Ela poderia muito bem lidar com luxuria e desejo carnal, mas aquilo que parecia estar nascendo entre eles... aquele... sentimento que ela ainda não era capaz de nomear, era demais para ela.
Fechou os olhos sentindo uma forte dor de cabeça devido à fome e exaustão e respirou fundo. Na escuridão de seu subconsciente, cenas do banho que tomaram juntos a invadiram. Lembrou-se do olhar atrevido de Tom quando sugeriu aquela loucura, lembrou-se de admirar cada detalhe do corpo dele enquanto se barbeava, alheio às atenções de Nix. Lembrou-se da fome que viu em sua expressão quando estavam juntos na banheira. Se não estivesse sentindo tanta dor ela o teria atacado ali, não com armas e lâminas, mas com beijos e mordidas. Teria tirado daquele corpo o calção que manteve tão respeitosamente. Depois, provaria o sabor da pele dourada do pescoço recém limpo, e desceria seus lábios e língua lentamente até o... Chega!
Abriu os olhos e respirou fundo para acalmar as batidas de seu coração e também a comichão entre suas pernas. Baniu seus pensamentos eróticos para uma caixinha bem no fundo da mente, a trancou e se obrigou a ser focada e racional. Como não encontraram mais nenhum inimigo há três semanas, Nix sabia que tinham certa vantagem em sua fuga. Mas a Vila do Tombo era próxima à Cidade do Lírio Azul, onde havia uma sede secundária da Irmandade governada por Ramsei, um dos comandantes de Willk. Portanto deveriam ficar em alerta total pois essa proximidade era perigosa e poderia ser fatal, já que a qualquer momento algum irmão poderia surpreendê-los. Pensando nisso, percebeu apreensiva que Thomas havia saído há algum tempo. Sem esperar nem mais um segundo decidiu ir atrás dele e, fazendo considerável esforço, levantou-se. Sentiu uma leve vertigem enquanto seguia até a porta e amaldicoou o vestido horrível que usava a cada passo, já pensando o que diabos faria caso precisasse lutar. Tocou a maçaneta e ao mesmo tempo esta se moveu, abrindo a porta abruptamente, revelando um Thomas que sorria de orelha a orelha.
-- Trouxe o jantar! -- exclamou ao adentrar o quarto carregando um tipo de mesa com rodas feita de ferro, forrada com uma toalha branca um tanto encardida, e sobre esta uma refeição completa. Um pernil de javali assado com rodelas de batatas e vagens, sopa de aspargos e cenoura, purê de abóbora com torradas e de sobremesa, dois pedaços de torta de pêssego.
-- Quem você ameaçou para conseguir essas delícias? -- perguntou observando os alimentos e salivando ao sentir o aroma irresistível.
-- Ninguém! -- disse ele enquanto arrumava os pratos e talheres na mesa de madeira que ficava próximo à janela do quarto -- Eu só pedi para aquela jovenzinha que ajudou a preparar nosso banho para que agilizasse o jantar.
Nix observou o rosto dele levemente corado, e percebeu imediatamente o que aquelas palavras significavam.
-- Você a seduziu em troca de favores! -- acusou e cruzou os braços.
-- Seduzir é uma palavra muito forte. -- negou, sério demais -- Eu diria que apenas fui gentil e fiz um pedido educado.
-- Você é um cafajeste! -- abriu um sorriso conspiratório -- Mas um cafajeste eficaz, devo admitir.
-- Eu faço o que posso. -- piscou para ela e os serviu uma porção de cada prato. Ao terminar virou-se para Nix, fez uma profunda reverência e lhe estendeu a mão num convite -- A senhorita me daria a honra?
A mulher revirou os olhos mas foi incapaz de conter o sorriso que curvou seus lábios, juntou sua mão na dele e, para sua surpresa, Tom a beijou. O ato revirou memórias antigas nela: aulas de etiquetas que pareciam intermináveis na sala de estar em sua casa junto de sua mãe. E quando o pai estava presente, passavam horas praticando postura, danças, reverências e frases a serem ditas. "Precisa ser perfeita, minha princesinha, um dia muitos olhos cruéis estarão sobre você", ele lhe dizia com brilho no olhar e voz cheia de carinho. Afastou a lembrança e engoliu o bolo que estava prestes à se formar, aceitou a mão de Tom e, depois de tantos anos, pôs em prática seus aprendizados inúteis.
-- A honra seria toda minha, meu lorde. -- segurou o vestido com a mão livre e fez uma mesura enquanto sorria discretamente, sem tirar os olhos dos dele, que se arregalaram em admiração.
Nix adorava aquele olhar. E adorava ainda mais quando era dirigido à ela. Seguiram até a mesa lentamente devido à dificuldade dela e Thomas puxou-lhe a cadeira, todo cavalheiresco. Depois se acomodou à sua frente e serviu duas taças de vinho.
-- Eu não bebo álcool. -- disse ao ver o líquido avermelhado.
-- Por que não? -- perguntou surpreso.
-- Entorpece os sentidos. -- deu de ombros.
-- Mas essa é a intenção, não? -- riu torto.
-- Não quando se é alguém como eu, que pode ser atacada à qualquer minuto. -- o sorriso sumiu do rosto dele -- Mas como esta é uma noite especial, suponho que uma ou duas taças não farão mal.
Nix aceitou a taça que ele lhe ofereceu e depois de um "à você" dito por Thomas, deu um pequeno gole saboreando o sabor frutado da bebida. Depois o silêncio reinou, só sendo interrompido pelos sons dos talheres raspando nos pratos e pelos suspiros de satisfação que soltavam enquanto enchiam suas barrigas doloridas e vazias com o farto jantar. Quando deram por si a comida havia acabado junto com a garrafa de vinho e ao contrário do que disse anteriormente, Nix foi responsável por quatro taças. Por esta razão sentia-se um tanto leve demais, mas não o bastante para se importar com aquilo afinal estava saciada e o álcool ajudou a aplacar um pouco sua dor.
-- Isso estava simplesmente esplêndido! -- o homem disse enquanto recolhia as coisas da mesa.
-- Foi a melhor refeição que fiz em... bem, um mês. -- soltou uma risadinha e se levantou -- Deixe-me ajudá-lo.
-- Não, não! -- deu um leve tapa na mão dela que estava prestes à pegar seu prato -- Deite-se que eu vou cuidar de você assim que terminar aqui.
Sentiu um calor em seu peito, se pelo vinho ou pelas palavras de duplo sentido dele, não sabia. E nem pretendia descobrir, então apenas seguiu até o banheiro para fazer suas necessidades e passar o pó dental. Ao retornar ao cômodo principal percebeu que os utensílios do jantar já haviam sido retirados e os itens que havia solicitado à Thomas estavam ali numa outra mesa com rodas, menor que a anterior. O cheiro de chá dominou o aposento, e mesmo cheia Nix se forçou à beber duas xícaras. Depois verificou as trancas da porta e janela e, finalmente, deitou-se.
-- Me diga o que fazer. -- pediu ao se ajoelhar no chão ao lado dela.
-- Primeiro molhe o pano nessa água fria, torça e me dê. -- rapidamente o homem seguiu as instruções e Nix ergueu o vestido até a cintura, expondo sua perna que parecia ainda pior que antes.
-- Eu acho melhor chamar um curandeiro. -- Tom disse ao ver o hematoma que havia passado do arroxeado, chegando quase ao preto total.
-- Não fale bobagens. -- tomou o pano dele e o colocou sobre a parte inchada de seu quadril -- Agora pegue as bandagens e enrole no joelho.
Franzindo as sobrancelhas ele obedeceu e logo o curativo estava pronto. Nix torcia para estar melhor pela manhã para seguirem caminho mas não estava muito esperançosa. Pela sua experiência com ferimentos daquela magnitude, o pior poderia ainda estar por vir. Quando terminou de "cuidar dela", Tom passou alguns minutos no banheiro e Nix ponderou se seria seguro que ambos dormissem ou se deveriam se revezar na vigília. Só percebeu que havia cochilado quando sentiu a cama se movimentar e despertou, assustada.
-- Desculpe, não queria acordá-la. -- disse ele ao se deitar e virar de frente para ela.
-- Tudo bem. -- molhou o pano de novo e o recolocou no mesmo lugar, depois virou-se para a direita e ficaram cara a cara -- Isso é estranho, não acha?
-- Uma cama relativamente boa depois de um mês dormindo no chão? É muito estranho! Acho que nem serei capaz de me acostumar com conforto novamente! -- ela sorriu e ele a acompanhou -- É sério! Não se assuste se quando acordar eu estiver dormindo no tapete.
Riram juntos por mais alguns segundos, como se estivessem sozinhos no mundo, como se não houvessem perseguidores sanguinários na cola deles, como se não houvesse uma guerra que precisavam lutar. Olhos cinza encararam os castanhos e ali ficaram cativos. Devagarzinho Thomas se aproximou ainda mais dela e passou o braço com suavidade sobre sua cintura, a puxando para ele. A risada foi morrendo aos poucos, sendo substituída pela habitual tensão que sempre crepitava ao redor deles.
-- Me fale sobre sua mãe. -- pediu a mulher, decidida à ter uma noite normal e agradável com ele.
-- Não há muito a ser dito. -- esquivou-se.
-- Ela morreu?
-- Não.
-- Fugiu e o abandonou? -- ele acenou negativamente -- Não compreendo.
-- Minha mãe vive em seu próprio mundo particular. -- deu de ombros -- Isolada, silenciosa, e apática. Nunca se importou muito comigo. É como... -- pensou por um segundo -- como se ela não existisse.
-- E a relação dela com seu pai?
-- Jamais vi uma interação entre os dois. Foi um casamento de conveniência, para unir e aumentar a propriedade do ducado. Minha tia me disse que ela foi obrigada.
-- E isso a matou. -- ele a olhou confuso, como se pedindo uma explicação -- Não fisicamente, claro. Mas matou quem ela era, quem sonhava em ser tornar.
-- Eu nunca pensei por esse lado. -- colocou uma mecha do cabelo dela atrás das orelhas e deslizou a mão de volta até sua cintura, causando-lhe arrepios.
-- Por que você é homem. Vocês são ensinados e encorajados à tomar tudo que lhes convém, sem pensar no que a outra parte quer ou não. Principalmente quando a outra parte é uma mulher.
-- Eu gostaria de refutar a sua acusação, mas sei ser verdade. Meu pai era exatamente esse tipo de homem desprezível.
-- E por isso você fez questão de ser diferente dele. -- apontou -- De ser melhor.
Os olhos de Thomas brilharam com o elogio, e o coração dela se iluminou em resposta. Aquilo era tão fácil, tão confortável, que mesmo com a razão à alertando para encerrar aquela conversa, não teve a mínima vontade. Ele abriu um sorriso e se aproximou ainda mais, quase colando seu nariz ao dela.
-- E veja onde isso me levou. -- sentiu o hálito refrescante em seu rosto e, ao mesmo tempo, um aperto firme em sua cintura.
-- À uma fuga ensandecida da Irmandade das Sombras que acabou numa estalagem, que também é uma taverna, na Vila do Tombo? -- ironizou -- É, você se saiu muito bem.
-- Tolinha! -- beijou a ponta de seu nariz -- Me levou até você.
Sentiu um frio na barriga com aquela declaração tão idiota e tão... ah, maldito homem! Passou a mão pelos cabelos castanhos dele, que desciam ondulados abaixo dos ombros agora, sentindo a suavidade e maciez dos fios entre seus dedos e puxou levemente na região de sua nuca.
-- O que estamos fazendo, Thomas? -- perguntou olhando fundo nos olhos dele.
-- Seja o que for isso que está acontecendo entre nós, não me afaste. -- retribuiu o olhar intenso com um pedido contido -- E pare de lutar contra. Vamos viver, Nix. Chega de só sobreviver.
Pensou em tantas coisas para dizer. Quis avisá-lo de que aquilo provavelmente acabaria mal, com um ou ambos os corações partidos ou feridos. Quis lembrá-lo de que ela não era uma boa pessoa e que, se soubesse o que era bom, se manteria afastado dela. Quis sugerir que talvez acabassem mortos e que seria estupidez um envolvimento romântico às vésperas de uma guerra. Mas percebeu que palavras seriam ineficazes pois não transmitiam o que realmente ela queria expressar. Sentiu uma vontade avassaladora de provar aqueles lábios de novo, mas sabia que não deveria. Havia tantas razões para que subjugasse aquele desejo, tanto que pôde ouvir uma voz em sua mente, uma reprimenda vinda de Willk: sentimentos a fazem fraca. Abominou aquela frase, aquela ordem manipulatória disfarçada de conselho e o homem que a proferiu. Num ímpeto de impulsividade escolheu a fraqueza. Eu não sou o que Willk fez de mim, percebeu de repente, eu sou muito mais. Nix cedeu àquela vontade latejante que silenciou por tanto tempo, puxou o rosto de Thomas para perto e o beijou.
Num primeiro instante o ato foi semelhante ao inocente afago que trocaram horas atrás, mas não permaneceu assim. Nix entreabriu os lábios e passou a língua por sobre os de Tom num convite para a devassidão, que sem demora foi aceito e logo suas línguas dançaram juntas uma dança enérgica e sensual. O aperto dele em sua cintura se intensificou e logo seus corpos estavam tão colados quanto era possível. Sentiu seus seios entumescidos pressionados no peito dele e a sensação foi diretamente enviada para um certo lugar mais abaixo. Um gemido escapou-lhe, rouco e sedutor, o que pareceu despertar algo no homem que aprofundou ainda mais o beijo. Estavam prestes a devorar um ou outro, a serem consumidos pelo fogo que os queimava de dentro para fora, insigando-os à mais e mais e mais. Movida pelo instinto Nix impulsionou sua pelve de encontro à dele, buscando alívio para a violenta excitação que torturava sua feminilidade mas, tudo que encontrou, foi uma dor aguda.
-- Maldição! -- exclamou encerrando o beijo, frustrada.
Empurrou o corpo masculino com delicadeza, e o observou. A expressão de Thomas era indescritível. Suas pupilas estavam dilatadas, seus lábios inchados e vermelhos, e aquele brilho de lascívia nos olhos castanho dourados a fizeram sentir-se tentada à continuar o que haviam começado, mas espantou o pensamento forçando-se a recuperar o controle, lembrando-se da realidade deles. Percebeu que havia cometido um grande erro.
-- Me desculpe! -- pediu ele, culpado -- Eu me empolguei e...
-- Tudo bem, não foi culpa sua. -- o interrompeu -- Eu também me empolguei, acho que bebi vinho demais.
-- Então isso -- apontou o espaço entre eles -- foi o vinho? -- soou desacreditado -- Jura?
-- Eu o desejo, Thomas! -- irritou-se -- É isso que quer ouvir? Eu o desejo muito e apesar desse beijo avassalador minha decisão de não complicar as coisas vai ser mantida.
Revolta afugentou o brilho dos olhos dele e suas sobrancelhas grossas se uniram, raivosas.
-- Você não pode estar falando sério! -- exclamou -- P-por Deus, mulher! Do que tem tanto medo?
-- Entendo que esteja frustrado, mas... -- tentou acalmá-lo.
-- Ah eu estou além, muito além de frustrado! -- foi a vez dele a interromper.
--... eu sinceramente acho melhor que nós...
-- Não ouse dizer is-so! -- falou alto, sua voz sobrepujando a dela.
--... esqueçamos o que aconteceu.
Ambos se encararam esperando que o outro fosse ceder, mas os dois estavam irredutíveis em suas convicções.
-- Você tem certeza disso, Nix? -- perguntou, soturno.
-- Sim, Thomas. -- sentiu uma pontada no peito quando percebeu que aquela recusa o afastaria dela para sempre, mas não recuou -- Não levar essa loucura adiante vai ser o melhor para nós dois, você pode ter certeza!
Mágoa contorceu as belas feições dele e ela se xingou por aquilo, por ser tão serva de seu mestre que não era mais capaz de escolher a emoção. Nix sempre ouviria a razão, a lógica, analisaria e pesaria a realidade, os fatos. Sempre preferiria o cérebro ao coração.
-- N-nunca mais irei importuná-la. É uma promessa.
-- Eu odeio promessas. -- sussurrou sentindo um aperto doloroso no peito.
-- E eu não me importo. -- disse em voz sombria, afastou-se dela e deu-lhe as costas.
Nix concentrou-se nos sons e movimentos que a respiração do homem fazia, já sentindo falta do calor de seu corpo, de seu toque, de seu espírito alegre. Sentiu-se fria e vazia, como se tivessem lhe tirado o sangue das veias. Sempre o cérebro ao coração, pensou tristemente, mesmo que este último esteja dilacerado.
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