Capítulo 24 - "Que diabos aconteceu com vocês?"
Levaram metade de uma hora para chegarem na única estalagem da Vila do Tombo, que também era a única taverna dali. Por essa razão mesmo que o sol ainda estivesse brilhando no céu, o lugar já estava apinhado. Antes de adentrarem o local fizeram a volta para os fundos e usaram água do poço para se limparem e ficarem pelo menos um pouco apresentáveis, e dessa forma chamarem menos atenção. Depois guardaram as espadas nos alforjes e Nix entregou uma de suas precisosas adagas para Thomas.
-- Se nos reconhecerem você corre. -- ordenou -- Entendido?
-- N-não vou deixá-la para trás! -- retrucou incomodado.
-- Vai sim. Não estou em condições de lutar por nós dois. -- apontou sua perna machucada -- Se nos reconhecerem o que você vai fazer?
-- Eu vou correr. -- concordou emburrado.
-- E só vai usar a adaga se for pego. Agora vamos.
Caminharam lentamente até a entrada da estalagem, Thomas carregando os dois alforjes e Nix puxando a égua pelas rédeas. Logo um rapazote os avistou e correu até eles.
-- Vão passar a noite? -- perguntou afoito, segurando o chapéu que quase caiu em sua agitação.
-- Vamos sim, amigo! -- concordou Tom ao notar o silêncio de Nix -- Que tal cuidar bem de nossa querida Amora aqui, hã? Vai lhe garantir uma moeda brilhante para amanhã.
O menino acenou afirmativamente, extasiado à menção do trocado que ganharia, pegou as rédeas das mãos da mulher e imediatamente partiu para os estábulos.
-- Não me falou que havia dado um nome para a égua. -- olhou-o de canto.
-- Você teria rido de mim. -- coçou a cabeça, parecendo envergonhado -- E dito que era tolice.
Por alguma estranha razão aquilo a incomodou. Não a percepção de que ele a conhecia ao ponto de saber o que ela acharia sobre determinado assunto, mas porque realmente achava uma tolice e havia acabado de perceber que não era. Dar nome à um animal era sinal de respeito, carinho. Lembrou-se, repentinamente, de uma garotinha que tanto tempo atrás nomeou um cachorro de três patas que viu flutuando no céu em uma nuvem. Em que momento de sua vida Nix havia perdido seu coração? Por que esse homem sempre a fazia pensar, refletir e principalmente sentir coisas que preferia que permanecessem adormecidas?
-- Vamos entrar. -- disse apenas e cruzou seu braço com o de Thomas, pegando-o desprevenido.
Mas ele não se afastou, então ambos entraram juntos tentando chamar o mínimo de atenção possível. Caminharam sem olhar para os lados, e foram diretamente até o balcão onde um homem grande e barrigudo servia uma caneca de cerveja fermentada.
-- Santa mãe! -- ele exclamou ao vê-los -- Que diabos aconteceu com vocês?
E com isso o plano de passarem despercebidos foi por água a baixo, já que com o grito do homem todos os olhares dos presentes foram imediatamente até eles.
-- Oh, senhor! -- Nix começou sua encenação -- Acabamos de chegar de uma viagem pelos oceanos e, veja só, tivemos nossas malas roubadas! Compramos um cavalo no litoral para irmos para casa e, depois de dias perdidos, esta é a primeira cidadezinha que encontramos.
O homem os encarou mais atentamente franzindo as sobrancelhas, desconfiado, não parecendo ter acreditado totalmente neles. Era hora de usar seu trunfo. Arregalou os olhos e soltou um grande suspiro de alegria, levando uma mão até a barriga.
-- Meu Deus! -- disse sorrindo maravilhada -- O bebê se mecheu! -- puxou a mão de Thomas e a colocou sobre seu ventre -- Sinta, querido, o primeiro chute do nosso filho.
O maldito homem parecia aturdido, sua única reação era encará-la como se lhe houvesse saído um terceiro olho na testa. Apressou-se a lhe dar um beliscão de forma discreta, na intenção de fazê-lo entrar na mentira. Ele apenas piscou ao sentir a fisgada e abriu um grande sorriso, acariciando sua barriga vazia.
-- Isso é maravilhoso! -- bradou -- Esse é meu garoto! Sinta, querida, ele não para de se mecher.
Não exagere, Nix sussurrou entre dentes, disfarçando seu aviso com um enorme sorriso. Depois virou-se de volta ao estalajadeiro que aparentava ligeira descrença. O que para ela, era melhor que desconfiança.
-- Estávamos em lua de mel, bom senhor. -- mentiu em voz doce -- Planejamos navegar por três meses, conhecendo todo e qualquer lugar que tivéssemos oportunidade. Mas meu marido se mostrou muito viril -- afagou a mão de Thomas que ainda repousava em seu ventre e olhou para ele de forma, esperava, apaixonada -- e logo meu estado ficou delicado então interrompemos a viagem.
Compreensão começou a invadir as feições do homem gordo. Ele abriu a boca e puxou o ar para falar alguma coisa, mas Nix decidiu dar a cartada final.
-- Depois de tamanha bênção fomos atingidos por uma série de infortúnios! -- começou a chorar, desolada -- Tivemos pertences roubados e precisamos viajar bem lentamente para a segurança do nosso bebê. -- fungou e limpou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto -- Mas agora ficará tudo bem, finalmente! Estamos perto do fim dessa jornada. Diga-me, em quantos dias chegaremos até nosso lar que fica em Noren?
Piscou os olhos úmidos e esperançosos para o homem, que engoliu em seco. Noren era a última cidade ao sul do reino, há cerca de um mês dali, e o estalajadeiro procurava uma maneira de lhe dizer aquilo.
-- Noren fica há pelo menos um mês de viagem, senhora. Talvez dois no seu estado. -- respondeu temeroso.
Ela demorou a reagir, fingindo-se de catatônica. Contou até dez enquanto encarava sem piscar o homem que parecia cada vez mais assustado. Por fim, abriu o berreiro. Chorou de soluçar, chamando mais atenção ainda sobre si. Mas agora acompanhada de pena e pela necessidade de ajudar uma grávida desamparada.
-- O senhor teria um quarto disponível? -- ouviu Thomas perguntar por sobre os lamentos dela.
-- Claro, claro! Por aqui, venham! -- chamou o homem, certamente ansioso por se livrar daquela choradeira.
Foram levados por um corredor, onde encontraram dois lances de escadas. Subiram por ali com Nix ainda fungando e soluçando, abraçada à Thomas por duas razões: para adicionar drama à sua encenação digna de uma companhia de teatro, e para ajudá-la a caminhar com a dor severa que a estava castigando. Chegaram ao último andar onde encontraram uma pequena sala redonda com apenas quatro portas.
-- Esses são nossos melhores quartos! -- anunciou orgulhosamente o estalajadeiro, abrindo a primeira porta -- Perfeitos para um jovem casal ainda em lua de mel.
Thomas soltou Nix que adentrou o quarto, fazendo um esforço descomunal para não mancar, largando-se pesadamente na cadeira da penteadeira assim que a alcançou. Ouviu seu companheiro solicitar que lhes preparassem banhos quentes, uma farta refeição no quarto e roupas limpas, já que haviam sido roubados. Ouviu um tilintar e percebeu que Tom havia dado algumas moedas ao homem, após perceber certa hesitação. Com dinheiro no bolso, o estalajadeiro saiu saltitante, garantindo que providenciaria tudo o quanto antes. Agora sozinhos, Thomas adentrou o quarto e fechou a porta, cruzou os braços e apenas a fitou.
-- O que foi? -- ela perguntou, enxugando o rosto molhado.
-- Eu é que te pergunto! -- soou abismado -- Que loucura foi essa?
-- Foi eu nos garantindo um quarto! Aquele homem estava prestes a nos expulsar daqui!
Thomas se aproximou dela a passos lentos, sacudindo a cabeça impressionado, e algo na postura dele a deixou alerta. Os pêlos de sua nuca se arrepiaram ao perceber uma mudança no olhar castanho, que pareceram escurecer.
-- Você cometeu um erro com essa mentirinha de marido e mulher. -- ele disse baixo, com a voz levemente rouca.
-- Mas é claro que não! -- discordou -- Nós não podemos nos separar, de que outra forma conseguiríamos ficar no mesmo quarto sem causar um escândalo?
-- Não me refiro à isso, querida. -- deu de ombros -- Só quero dizer que poderemos acabar nos perdendo no personagem.
-- O que quer dizer com isso? -- perguntou e se levantou para encará-lo, ficando à um palmo de seu rosto.
-- Que sinto que estamos perto de acabar complicando as coisas, Nix. -- olhou para os lábios dela -- Vamos dormir juntos hoje.
-- Pare de ser idiota, estamos dormindo juntos há mais de um mês!
-- Não em uma cama. -- sorriu de lado, predatório.
Ela percebeu o que ele estava tentando fazer. Deixá-la desconfortável e tensa com aquela droga de situação mal resolvida entre eles. E estava conseguindo, aparentemente, mas dois podiam jogar esse jogo.
-- Pois então... -- aproximou-se dele quase colando seus lábios, passou a mão por sua nuca e puxou os cabelos levemente -- fique a vontade para dormir no chão.
O instante em que se encararam, mais próximos do que jamais estiveram, pareceu durar uma doce eternidade. Thomas passou as mãos com firmeza na cintura dela. Ele vai me beijar, pensou sentindo as batidas de seu coração acelerando, e eu não vou impedi-lo desta vez. Quando se moveram em sincronia, o destino os interrompeu.
-- O banho! -- uma voz feminina anunciou enquanto batia com força na porta do quarto.
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