Capítulo 21 - "Perdeu a razão?"
Sem esperar pela reação dele Nix jogou uma espada em sua direção. A arma subiu no ar, fez um arco perfeito e... caiu no chão, aos pés de Thomas que havia dado um grande passo para trás a fim de se desviar da lâmina. Olhou para ela, chocado, contendo uma súbita vontade de rir.
-- Perdeu a razão? -- perguntou, abaixando para apanhar a espada.
O punhal em couro estava gasto, mas ainda era relativamente confortável. Balançou-a levemente testando seu equilíbrio e estranhou aquele peso em sua mão. Sentiu-se novamente um menininho magricela, descoordenado, prestes a ser humilhado. Jogou a arma ao chão imediatamente como se houvesse lhe queimado.
-- Não. -- disse ela naquele tom baixo, contido -- Mas minha boa vontade não vai durar muito. Agora pegue essa droga de espada e vamos treinar.
-- Por quê? -- perguntou e cruzou os braços, recusando-se veementemente a cumprir aquela ordem.
-- Qual o objetivo de um treino, alteza? -- afiou o olhar em sua direção e pendeu a cabeça para o lado com um sorriso irônico.
-- Eu já treinei. Por anos. -- enfatizou-- Se fosse para ter surtido algum efeito, já teria acontecido. Eu sou um caso perdido, Nix.
A mulher deu um passo distraído, ainda carregando sua espada na mão direita.
-- Não, não é. -- outro passo -- Você é grande, você é forte... -- mais um -- Além do mais, não pode ser pior do que eu um dia já fui.
Aquilo despertou sua curiosidade e ele aguçou os ouvidos com uma ideia surgindo em sua mente.
-- Mesmo sabendo um pouco sobre seu passado, é difícil te imaginar indefesa. -- soou desacreditado -- Lutar parece... fazer parte de você. Poderia me motivar dizendo como foi que ficou tão boa.
-- Eu sei o que está fazendo.
-- Sabe, é? -- sorriu para ela, o sorriso mais cafajeste de seu arsenal.
-- Sim. -- deu mais um passo, chegando ainda mais perto dele que ainda lhe sorria, ao contrario dela que apenas bufou impaciente -- Acha mesmo que sou tola o bastante para cair nessa sua enrolação? Agora, pegue a espada antes que sofra as consequências. -- ameaçou.
-- Hum, eu acho que não. -- a ignorou, e Nix se aproximou ainda mais -- Que tal um acordo? -- sugeriu usando sua voz diplomática.
--Desculpe-me, acaso eu dei a impressão de que isso é negociável? -- ela estancou e o encarou visivelmente exasperada.
-- Mas é claro que é! Afinal, eu não sou um prisioneiro. Sou um homem livre, um duque, sobrinho de sua majestade, rainha Zaya! Faço o que quero e quando quero e, no momento, não sinto-me inclinado à atender o seu pedido. -- disse a última palavra devagar, provocando-a.
Eles se encararam, sem piscar. Uma tensão pareceu faíscar ao redor de ambos, e Thomas subitamente se tornou completamente consciente dela. Nix estava há menos de um metro dele, a roupa suja dos dias de viagem e respingada de sangue. Sua camisa tinha os primeiros botões abertos que revelavam uma porção de pele sedosa, o instigando a ver o que havia oculto mais abaixo. Levou os olhos de volta ao rosto dela, onde a sombra de um hematoma começava a escurecer seu olho esquerdo. Seus cabelos lisos estavam revoltos, volumosos pela cavalgada. Selvagem, perigosa. Aquela mulher exalava sensualidade e Thomas, que não era bobo nem nada, precisava de um jeito de virar aquela perda de tempo ao seu favor. Assim garantiria seus dois mais recentes objetivos: ajudar Nix a se libertar das sombras de seu passado e, se ela aceitá-lo, satisfazer aquela necessidade crescente em seu âmago. Satisfazer repetidamente e com força.
A avaliação que Thomas fez de Nix não passou despercebido à ela, que sentiu o corpo queimando conforme aqueles olhos castanhos passeavam sobre si, famintos. Sentiu vontade de pular sobre ele. Se para beijá-lo ou matá-lo, ainda não tinha certeza. Thomas a provocava, a instigava, e aquilo era revigorante. Fingiu-se de irritada apenas para incentivá-lo a continuar com aquela brincadeira tão divertida de gato e rato. Mas ela não esperava aquilo. Aquela energia pairando ao redor deles, estalando, os impulsionando um para o outro. Sua racionalidade ordenava a parar com aquilo que parecia estar começando a surgir ali, nos confis da Floresta do Espanto. Mas seus outros instintos... ah, eles estavam tentando mandar a razão à merda. Estavam implorando para que as mãos de Thomas tocassem os lugares por onde seus olhos haviam acabado de passar. Um caso entre eles complicaria tudo, rugiu sua racionalidade. Mas seria totalmente delicioso, tornou seu desejo. Calem a boca, silenciou sua mente, tomando o controle da situação. Respirou profundamente e segurou o ar enquanto olhava fundo nos olhos dele, pensando, pesando. Apesar de ter desertado Nix ainda estava numa missão, e não poderia deixar que seus sentimentos atrapalhassem tudo. Ela soltou o ar e tomou uma decisão. Ergueu sua espada e atacou Thomas.
Ele percebeu o que ela faria um milésimo de segundo antes de acontecer. Nix apertou com mais força o punho de sua espada e, num piscar de olhos, a lançou sobre Thomas. Seu instinto, que ele nem mesmo sabia possuír, o fez jogar-se ao chão imediatamente, como uma fruta podre caindo do pé. A lâmina passou zunindo à cerca de trinta centímetros de sua cabeça. Olhou para cima procurando pelos olhos de Nix que já estavam sobre ele, com aquele cinza irradiando agressividade. E a espada dela... pairava no alto, preparada para o próximo golpe.
-- Jamais esteja desarmado! E se estiver, trate de desarmar seu oponente o quanto antes! Agora, decida o que vai fazer. -- rosnou para ele, deu uma olhada rápida para a espada caída perto de sua perna e voltou a encará-lo.
A escolha de Thomas foi ligeira e, num segundo, descobriu não ser um covarde. Segurou firme no punhal da espada que repousava ao chão e a levantou para defender-se. Nix atacou novamente e o choque do encontro das lâminas reverberou em seu braço até o ombro. Mas não parou por aí. A mulher continuou golpeando, e ele se protegia precariamente, arrastando-se para trás enquanto tentava sair do alcance dela.
-- Você está muito indefeso nessa posição! -- ela gritou, sua voz abafada pelo som metálico que invadiu a Floresta do Espanto.
-- Então pare de me atacar! -- tornou, sentindo dor no braço e o suor lhe escorrer pelas costas.
-- Tire a bunda do chão, Thomas! -- aumentou a força dos golpes.
Percebeu que ela não iria parar e que de nada adiantaria pedir clemência ou paciência. Por que, afinal, imaginou que ela o treinaria aos poucos e de maneira gradual, com exercícios que evoluíriam conforme suas habilidades também evoluíssem? Grande tolo! Era claro que Nix o treinaria conforme fazia tudo na vida. Com ímpeto, voracidade, agressividade. As batidas frenéticas de seu coração e o medo invadindo suas veias rapidamente o fizeram perceber a razão disso. Thomas jamais se dedicaria num treino leve, mas aquilo... aquilo era sobrevivência. Num estalo sua visão pareceu desanuviar, os barulhos se tornaram mais altos, as cores mais fortes e brilhantes. Nix o estava ensinando que na vida real só haviam duas opções: matar ou morrer. Ele precisaria fazer uma escolha, e a fez em menos de um segundo. Usou toda a força que tinha e num impulso passou uma rasteira em Nix que arquejou, surpresa, antes de cair ao chão.
O tempo pareceu parar por um momento enquanto Thomas esperava pela reação dela, que não demorou. Ela o encarou, o cinza dos seus olhos parecendo prata derretida. Um frio lhe invadiu o estômago com o fogo gélido que viu ali e apenas aguardou a ira que a mulher certamente despejaria nele. Mas não foi o que aconteceu. Lentamente Nix abriu um sorriso, o maior que já vira naqueles lábios até então. E esse ato surtiu um efeito estranho nele: sentiu-se praticamente inchar de regozijo e orgulho, e não apenas por ter conseguido escapar do ataque implacável dela, mas por tê-la feito sorrir.
-- Eu disse que você não é um caso perdido. -- os olhos dela brilharam de algo que se parecia com... orgulho? -- Agora continue, e nunca mais perca a vantagem que conseguiu sobre seu inimigo.
Encorajado Thomas se levanta e parte para o ataque, ao passo que Nix começa sua defesa. Suas investidas são um tanto desajeitadas, tanto pela inexperiência quanto pela queimação em seu braço e, no fundo da mente, se pergunta como ela consegue manejar aquela espada sem nem derramar uma gota de suor.
-- Não se contenha, Thomas! -- ela diz, parecendo entediada -- Sua vantagem sobre mim é seu tamanho. O que te falta em prática, sobra em força. Use-a!
-- E se eu machucá-la? -- pergunta genuinamente preocupado com ela.
Nix abre outro sorriso, um de pura incredulidade.
-- Se não me arrancar nenhum membro eu prometo perdoar você. Agora, corrija a postura! De lado você é um alvo menor. -- ela orientou, parando o ataque para demonstrar a posição correta, e Tom aproveitou a pequena pausa para descansar o braço -- Vamos de novo, observe meus movimentos e tente encontrar alguma brecha e então, e só então, você ataca.
Ela mal havia terminado de falar quando tudo recomeçou. Os metais se chocando, o peso no braço, a falta de fôlego. Até seu pé, que estava quase completamente curado, começava a ficar dolorido novamente. Apesar de todos esses incômodos ele estava gostando demasiado daquela loucura que Nix havia o obrigado a fazer pois sentiu-se vivo, sentiu-se capaz. Pela primeira vez em seus vinte e oito anos de idade, Thomas percebeu com clareza que não era um inútil e jamais o fora. Inúteis foram seu pai e seu mestre de armas que, ao invés de incentivá-lo, apenas zombavam dele e de suas dificuldades. Era óbvio que Nix estava se segurando, atacando devagar, com pouca força e fazendo movimentos bem mais lentos do que os que presenciou quando ela lutava por sua vida. Ao contrário do que imaginou no início ela não pretendia humilhá-lo ou troçar dele, estava realmente interessada em ensiná-lo. Ele a admirou por isso e sentiu-se grato pois, apesar de jamais admitir, o frustrava muito ser tão dependente da proteção dela.
-- No meu caso, preciso acabar com uma luta o quanto antes, para não me cansar muito, pois isso pode me atrapalhar. -- disse ela, não parecendo nada cansada -- Mas você, devido à sua força, pode focar em mantê-la para cansar seu adversário, quando ele for menor que você. Só precisa trabalhar na sua resistência.
-- E se meu adversário for maior? -- perguntou meio sem fôlego, enquanto ainda tentava achar alguma brecha para atacá-la.
-- Então você o deixa em desvantagem. -- explicou, simplesmente.
-- Como?
-- Vou lhe dar um exemplo. -- ela piscou para ele.
Uma pancada forte acertou sua mão direita e a espada lhe escapou, caindo ao chão num estalo seco. Tom demorou alguns segundos para perceber que Nix bateu nele com a parte achatada de sua lâmina. Então sentiu o beijo frio do metal perto de seu pescoço e levou seu olhar para ela que trazia no rosto um meio sorriso de canto, o braço estendido apoiando sua espada sobre o ombro dele.
-- Jamais solte sua espada. Ela deve ser como uma continuação de seu braço. -- explicou, o encarando, os olhos brilhando pelo exercício -- Você não deixa cair sua mão, deixa?
-- Não. -- ele sorriu para ela, recuperando o fôlego, sentindo o coração acelerado e leve.
Nix se afastou com graciosidade. Ajeitou a postura, tirou o sorriso dos lábios e concentração lhe dominou as feições.
-- De novo! -- ordenou enquanto já partia para cima dele.
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