Capítulo 17 - "E você merecia ser castigado?"

     Três dias se passaram e Nix estava fazendo um excelente trabalho em ignorá-lo. E castigá-lo pelo deslize de ter pegado no sono aquela vez. Essa mulher cruel acabou por puni-lo da maneira mais dolorosa: o tratando como um inútil. Ela permaneceu acordada toda a noite seguinte ao incidente, mesmo com a insistência dele em pegar o primeiro turno. Mesmo com a garantia de estar mais descansado aquela noite e a promessa de que a acordaria assim que ficasse sonolento. Ela nem sequer lhe respondeu, apenas o encarou como se Thomas fosse uma presa e Nix um predador que se divertia em vê-lo se contorser na tosca tentativa de sobreviver. Ele irritou-se com aquilo mas manteve silêncio, apenas ficou acordado e calado a maior parte da noite junto dela. Tempos depois, poucas horas antes da alvorada ele cedeu, contente por ter demonstrado sua capacidade. Adormeceu com a certeza esperançosa e tola de que ela perceberia seu esforço e o perdoaria completamente.


     No dia seguinte àquilo, Tom percebeu o cinza dos olhos dela um pouco menos gélido e tentou puxar conversa. Perguntou a distância até a Estrada da Poeira. Três ou quatro dias. Depois comentou a beleza da região montanhosa em que estavam naquele momento. A resposta a isso foi um suspiro alto que poderia ser interpretado como tédio, enfado ou raiva. Ou até mesmo tudo aquilo junto. Achou melhor manter silêncio, então, já que claramente ela ainda estava irritada. Thomas a entendia de verdade, por culpa exclusivamente dele ambos poderiam ter sido pegos e mortos. Percebeu que a melhor maneira de ser útil e poder ajudá-la seria se recuperando, e a melhor maneira de acalmá-la seria lhe dando tempo.


    No momento, dois dias depois de sua decisão de deixar Nix em paz, Thomas sentia-se infinitamente melhor de saúde. Seu pé ainda doía muito, principalmente à noite, mas era algo absolutamente suportável. O ferimento em sua cabeça havia desinchado e seus hematomas começavam a clarear. De acordo com o que vira em seu reflexo na água de um córrego mais cedo, sob a barba que crescia havia um tom estranho de esverdeado espalhado por seu rosto, mas que provavelmente desapareceria em algum tempo.


      Após mais um dia de pesado silêncio eles finalmente pararam para o descanso. O terreno naquela parte, a fronteira entre a Mata Senegal e a Floresta do Espanto era plano, então puderam percorrer mais alguns quilômetros depois do anoitecer, iluminados pela luz prateada da lua cheia, uma luz tão pura que dava um ar de mistério e magia ao lugar. Sentiu um impulso de comentar sua percepção com Nix, mas conteve-se. A resposta dela certamente seria um revirar de olhos ou um rosnado de desdém.


     Sem dizer palavra Nix escolheu uma pequena área sem árvores para passarem a noite e desmontou. Depois, iniciaram a rotina que criaram nos últimos dias: Nix cuidava das montarias enquanto Thomas tratava de encher os cantis de água e, depois, ele rastelava um espaço do chão para eles dormirem. Ao finalizar as tarefas eles acomodaram-se, próximos o suficiente para partilharem a última porção das provisões que Nix dividia agora, e foi com pesar que Tom observou que sua parte era ligeiramente maior que a dela. Ele percebeu isso em todas as refeições e quando a questionou, na época em que ela ainda conversava com ele, com relutância a mulher respondeu que era pequena e não sentia tanta fome. Mas ele sabia o que havia escondido ali, naquele ato altruísta e seu olhar atento: a verdade era que Thomas precisava daquelas proteínas e vitaminas e calorias mais do que ela. E mesmo quando estava furiosa com ele, Nix continuou a lhe fornecer porções maiores. Isso ao mesmo tempo o eternecia e irritava. Subitamente sentiu-se no limite, oprimido por aquela crescente sensação de impotência. Lembrou-se da voz raivosa de seu pai, o acusando de ser um fardo, um peso, um estorvo. Começou a respirar mais rápido, e olhou amargurado para sua porção maior de carne salgada. Num impulso tomou a carne de Nix de sua mão e lhe entregou o pedaço maior. Ela ficou tensa com a surpresa do movimento dele, mas não reagiu e nem o impediu. Apenas o estudou, passeou aqueles olhos cinzas pelo seu rosto, e Thomas manteve-se firme, a desafiando. Por fim, ela apenas deu de ombros e comeu sua parca refeição calmamente, sendo seguida por Tom.


     Conforme comiam, aquela tensão contida pareceu se aliviar. O ar que antes crepitava entre eles nos últimos dias, estalando hostilidade da parte de Nix, se suavizou. Ela percebeu a mudança nele, percebeu sua recusa em continuar submisso, e o respeitou por isso. Tom teve a certeza de que estava finalmente perdoado.


-- O que faremos agora que nosso alimento acabou? -- perguntou ao terminar a sua parte daquela carne salgada que já tinha gosto de velha.


-- Caçar. -- foi a resposta dela, curta e direta, mas numa voz mais leve que nos últimos três dias.


-- Tem uma vila há alguns quilômetros, se não me falha a memória. Podemos comprar comida lá. -- sugeriu.


-- Não. -- disse, apenas, e bebeu um gole de sua água.


     Opressão borbulhou novamente dentro dele, ameaçando sobrepujá-lo. Respirou profundamente, tentando se acalmar.


-- Então suponho que você terá que me ensinar a caçar.


-- Não. -- agora ela sorria de lado, um sorriso enigmático e extremamemte irritante.


-- Não, p-por quê? -- pediu, tentando esconder  a raiva na voz e falhando miseravelmente -- Sou tão inútil a ponto de você se recusar a perder seu t-tempo para me ensinar alguma coisa? Acha-me um me-merda tão incapaz assim?


     Sua voz se alterou sem que sequer se desse conta e, ao final de sua pequena e infantil explosão, estava quase gritando. O silêncio brutal que veio depois foi constrangedor. Pensou em pedir desculpas mas aquilo faria Nix repudiá-lo, então ficou quieto, aguardando que ela, para variar, falasse com ele. Um minuto inteiro se passou, a mulher empertigou a coluna, aproximando-se mais dele. O movimento o teria intimidado, mas havia algo diferente em seus olhos, em seu semblante. Compaixão.


-- Prefiro não ensiná-lo a caçar pois eu mesma não sou lá muito boa nisso. -- disse em tom de confidência, fazendo uma leve carranca, como se lhe doesse admitir que não era boa em algo.


     Thomas teve vontade de sorrir.


-- Se você não sabe caçar, então...


-- Não disse que eu não sei, só que não sou boa em fazer armadilhas. Elas são tão... delicadas. Um movimento errado e tem que começar tudo de novo. -- levou as mãos ao alto, exasperada -- Coisinhas irritantes. A questão é que caço com arco e flecha, apesar de não gostar.


-- E porque não gosta? Também não é lá muito boa nisso? -- perguntou, sorrindo abertamente, incapaz de segurar a provocação.


-- Não seja tonto, claro que sou boa nisso. Eu só acho... injusto.


     Thomas ia pedir uma explicação, mas decidiu pensar a respeito antes. Rapidamente ele compreendeu o que ela quis dizer, e a admirou por demonstrar tanto sentimento pelos animais que eram abatidos, sem chance de fuga ou de lutar. Mesmo que fosse em nome da sobrevivência deles. O homem se perguntou se ela era mesmo tão malvada quanto o fazia acreditar. Nix se deitou fazendo um suave farfalhar e colocou o braço direito sob a cabeça, passando a observar o céu noturno. Incapaz de perder aquele momento em que Nix estava surpreendentemente receptiva, ele puxou nova conversa com a primeira coisa que lhe veio à mente. Aquele antigo assunto que o incomodava incessantemente.


-- Quando eu fiz dez anos meu pai contratou um mestre de armas. Em pouco tempo o homem decidiu que eu era um caso perdido, mas meu pai insistiu que as lições continuassem. -- ele se escorou no tronco da árvore, tirou as botas e massageou os pés doloridos.


-- Na esperança de que você se tornasse o melhor espadachim do reino? -- ela perguntou, e ironia pingava de suas palavras.


     Ele até tentou, mas não se sentiu ofendido, pois percebeu que aquela provocação afiada era dirigida ao pai dele.


-- Não, apenas para me castigar. -- deu de ombros, esticou as pernas e suspirou, cansado pelo longo dia.


-- E você merecia ser castigado?


-- Na cabeça perturbada dele, sim. Afinal seu único herdeiro era um merdinha gago que mal aguentava e-erguer a espada de treino. Um marica que preferia estudar, ler poesias e brincar com os filhos dos criados.


     A mulher virou a cabeça na direção dele.


-- Seu pai era um maldito desgraçado. Mas, além disso, qual a razão para você não ter aprendido a lutar ainda? Você agora certamente é capaz de erguer uma espada.


-- Bem... -- ele se sentiu ligeiramente incomodado com o rumo da conversa, mais especificamente com aquela pergunta -- Aos onze anos eu me cansei de ser constantemente humilhado pelo meu pai e o mestre de armas e me recusei a pegar numa espada de novo.


     Thomas deu de ombros. Nix estreitou os olhos.


-- Quer dizer, então, que decidiu se manter indefeso para se vingar de seu pai que o acusava de ser fraco? -- os olhos dela brilhavam numa acusação silenciosa.


-- Naquela estalagem, quando você me subjugou com tanta facilidade, eu percebi meu erro. Mas, você tem que entender, que ninguém tem os mesmos... talentos que você.


     Aquilo a fez se virar para ele, e Tom percebeu uma pontinha de raiva retornando às feições dela.


-- Acha mesmo que é um talento? Que eu nasci brandindo uma espada? Que depois do café da manhã eu recebia lições de onde golpear para matar alguém rapidamente? Que minha mãe...


     A voz dela foi diminuindo, se tornando mais sombria a cada palavra até que parou, num silêncio mortal. Thomas sentiu os pêlos de seu braço se eriçarem ao se aperceber da intensidade que havia no olhar dela. Tantos sentimentos ele viu ali, tão sofridos e atormentados, presos com força por aquele controle contínuo que Nix exercia sobre si. Viu luto, dor, ódio, rancor, e saudade. Tanta saudade que o coração dele pesou por ela.


-- A conversa acabou. -- ela piscou e sua máscara vazia de tédio voltou ao lugar, escondendo suas emoções bem fundo -- Você fica com o primeiro turno.


     Thomas queria recusar aquele comando. Queria insistir na continuação daquela conversa, exigir saber mais sobre ela. Entretanto aquela voz dura deixou bem claro que, se ele a perturbasse, provavelmente iria cortá-lo em pedacinhos. Ali sentado, ouvindo a vida noturna ao redor deles, observando o céu mágico daquela noite, Tom repassou todas as palavras que trocaram naqueles minutos. Então forçou à memória cada segundo que passou junto dela, desde a sua captura uma semana atrás. Atos e palavras divergiram, depois se encaixaram, e, por fim, fizeram sentido. Ele estava começando a entendê-la.

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