Capítulo 16 - "Você não toma decisões aqui"
-- Desça daí, Marquesi! -- a menina gritou ao menino que subia, de maneira desengonçada, uma árvore no jardim da casa dela.
-- Venha me pegar, Mais Eu! -- o menino respondeu, ofegante pelo esforço.
Ela suspirou, irritada com o apelido absurdamente ridículo que aquele garoto dera a ela. Olhou para trás, certificando-se de que seus pais estavam distraídos o suficiente para não verem a travessura que faria a seguir. Sorriu ao ver os dois caminhando à alguns metros dali, olhando-se nos olhos de maneira tão apaixonada que parecia que estavam sozinhos no mundo. Ela gostava quando seu pai estava em casa, apenas a presença dele a deixava feliz, e sua mãe então... ficava nas nuvens. Também gostava quando seu pai trazia seu amigo Marquesi para brincar com ela, mesmo que a presença do garoto significasse que a visita seria breve. Pelo menos ela tinha companhia para suas estripulias, como agora.
Em apenas três passos ela chegou até a árvore. Com mais dois movimentos ela já se encontrava subindo, com muito mais habilidade do que Marquesi, desajeitado como era. O menino percebeu que estava prestes a perder a corrida até o topo da árvore e, ao contrário do que se podia esperar, apenas sorriu para a amiga. Parando onde estava, disse:
-- Ah, Mais Eu, você sabe que uma dama não deveria se comportar de maneira tão escandalosa, certo?
-- Mamãe tentou me dizer isso uma ou duas vezes, sim. -- a menina concordou, ainda concentrada em sua subida -- Mas papai disse que eu posso fazer o que quiser!
O garoto ficou em silêncio, apenas observando os movimentos firmes e precisos da menina. Com agilidade ela chegou até o galho em que ele estava, e apenas quando se sentou ali, ao lado dele, percebeu seu semblante emburrado.
-- O que houve, Marquesi? -- bateu seu ombro no dele, brincando -- Está zangado por eu ser melhor que você em... bem, em tudo?
-- Não, Mais Eu, sabe que isso não me incomoda. -- falou, desanimado -- Eu só... -- suspirou com o olhar distante, torcendo as mãos nervosamente -- acho que deveríamos ser irmãos de sangue, já imaginou como seria legal?
Ligeiramente a garota se aproximou dele, depois o abraçou pela cintura e deitou sua cabeça em seu ombro. Marquesi era apenas três anos mais velho que ela, mas para a menina que era alta e esperta como poucas, isso não fazia diferença. Ele era seu amigo. Ele er seu igual.
-- Já imaginei sim, mas não adianta querer algo impossível, é o que mamãe diz, Marquesi. -- ela disse, firme -- Além do mais, você sabe que papai diz que de uma maneira torta nós dois somos família, certo? -- o menino acenou a cabeça afirmativamente -- Eu não sei bem o que isso quer dizer, só sei que você é meu melhor amigo, e eu cuidarei de você.
O coração do menino ficou ligeiramente mais leve com aquela declaração. Aquele laço de promessa que os uniu. Ainda observando o sol da manhã, ele deitou sua cabeça sobre a dela, apoiada em seus ombros. E se sentiu... em paz. Ele ainda era um menino de apenas doze anos, mas que carregava uma carga tão pesada... e ela, uma garotinha de apenas nove anos a aliviava. Jurou que manteria para sempre sua amiga em sua vida.
As duas crianças fizeram se comprometeram com convicção, na intenção de permanecerem para sempre um na vida do outro. Mas a tragédia que veio logo a seguir tornou aquilo impossível, e acabou por separá-los para sempre.
Nix demorou a despertar completamente e, ao fazê-lo, sentiu-se pesada e triste com aquela antiga lembrança de seu único amigo, de sua infância tão distante e tão feliz. Concentrou-se no presente enquanto guardava aquilo, aqueles sentimentos de saudade e pesar e dor no fundo do peito, tão escondidos que ela apenas os encontrava em sua inconsciência. Obrigou-se a focar no ali e agora. Repirou profundamente, segurou alguns segundos, e depois soltou. Repetiu o ato até parar a ardência em seus olhos, e com sua audição apurada fez uma breve avaliação da situação. Talvez tenham sido as folhagens balançando ao vento, ou então os cavalos batendo seus cascos sobre o chão do bosque, impacientes. Poderia até mesmo ser a luz dourada matinal que começava a invadir a clareira. Ou então, mais provavelmente, tenha sido aquele ronco baixo e contínuo que invadiu seus sentidos. Abriu os olhos num milésimo de segundo e, tão rápido quanto, a raiva a invadiu.
Já era manhã e Thomas dormia a sono solto. O maldito não a acordou como pedira a ele. Nix não se moveu nem um centímetro esforçando-se para ouvir os sons ao seu redor e, por um milagre, não percebeu nada fora do esperado. Levantou-se sem fazer ruído e olhou para o homem adormecido ao seu lado. Estava espalhado ao chão, com a barriga para cima e o braço esquerdo cobrindo os olhos. Tão ridiculamente vulnerável que ela se compadeceu dele. Ou melhor, ela quase se compadeceu dele. Não poderia se permitir enfraquecer por um homem tão tolo que colocava a vida de ambos em risco com tanta frequência. Raiva começou a borbulhar em seu interior e, com cuidado calculado, aproximou-se dele silenciosamente. Passou uma perna por sobre o tronco dele, que subia e descia no ritmo constante de sua respiração tranquila. Aquilo a enfureceu ainda mais. Então pegou sua adaga e abaixou-se devagar. Quando estava prestes a sentar-se sobre o peito de Thomas, soltou todo seu peso de uma vez e apertou a lâmina no pescoço dele, exatamente onde a artéria pulsava.
O homem acordou completamente desnorteado, seus olhos castanhos arregalaram-se em puro pavor para procurar o inimigo. Ao se encontrarem com os dela, aquele olhar horrorizado pareceu aumentar ainda mais ao perceber o erro descomunal que havia cometido. Sentiu o corpo dele se enrijecer sob ela, sentiu a pulsação se acelerar, sentiu o calor masculino atravessar as camadas de tecido que os separavam. Mas isso foi percebido por uma parte mais instintiva, mais profunda, pois seu foco eram apenas aqueles olhos castanhos, quase dourados, que continuavam presos aos dela.
-- M-me... -- ele começou mas Nix pressionou a adaga com ainda mais força o impedindo de continuar.
O silêncio reinou. Até mesmo os sons das montarias e da Mata Senegal pareciam ter se aquietado para assistirem o desenrolar daquele confronto.
-- Mais um erro, -- ela rosnou entre dentes -- apenas mais um e eu o deixarei. E eu juro por tudo que há de mais sagrado que quando Willk encontrá-lo, irá preferir que eu mesma o tivesse matado.
Thomas acenou quase imperceptivelmente e um fio carmesim escorreu de seu pescoço, fino e ágil. Nix cedeu a pressão que exercia na lâmina, porém não a retirou dali.
-- Eu ac-achei que precisava descansar. -- explicou-se -- P-percebi o quanto estava cansada e tentei fazer vigília a n-noite toda.
-- E foi estúpido o suficiente para achar que conseguiria? Você nos colocou em risco, seu imbecil! Você está ferido, ainda mais cansado que eu e sequer tem treinamento! -- ela baixou a lâmina e apoiou as mãos nas coxas, ainda sentada sobre ele -- Você não toma decisões aqui, senhor. Apenas obedece as minhas ordens.
Thomas suspirou aliviado ao sentir a perca de contato com a adaga e levou a mão ao pescoço, limpando o sangue que já parecia estar coagulando. Ao ver o movimento Nix sentiu que, talvez, tivesse sido severa demais. Ignorou esse pensamento, o mandando para longe. Ele mereceu, esse erro poderia ter custado nossas vidas. Mesmo contra a própria vontade sentiu que sua raiva começava a diminuir, e também passava da hora de seguir viagem. Os sons ao redor adentraram em seus instintos novamente e aquela percepção do corpo dele saiu de segundo plano e a invadiu com força total. Agora foi a vez dela enrijecer a postura e Tom sentiu a mudança. O homem olhou, pela primeira vez, para as pernas dela enroscadas nele com força. Depois retornou o olhar castanho claro ao rosto dela e havia algo ali que ela não pôde reconhecer. Era algo como medo, mas diferente do pavor que demonstraram momentos antes. E também havia... fome?
De repente Nix se tornou completamente consciente da situação. E do contato entre eles. Do calor. Levantou-se de súbito e apenas não perdeu o equilíbrio devido aos anos de treinamento. Abriu um compartimento em seu íntimo e guardou aquele sentimento inapropriado bem fundo, afinal ela era especialista nisso. Guardou tão profundamente as lembranças de sua vida antes da morte da mãe, quão difícil seria guardar esse desejo ridículo? Mortificou-se ao perceber aquilo. E depois rejeitou a idéia. Ela não desejava Thomas, especificamente. Apenas desejava o contato com algum homem, afinal fazia bastante tempo que estivera com um.
-- Partiremos imediatamente! -- ordenou, soando raivosa.
Marchou até sua montaria e dali pegou dois saquinhos de castanhas. Ouviu o farfalhar que Tom fez ao se levantar, acompanhado de alguns resmungos. Estava irritada demais para perguntar se ele estava bem, ou mesmo para se importar realmente. Apenas queria entrar em movimento e colocar alguma distância entre eles. Virou-se rapidamente, jogou-lhe o punhado das castanhas e montou, partindo imediatamente, lutando contra um outro desejo: abandoná-lo de vez.
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