Capítulo 12 - "Qualquer um é capaz de matar"
Ele quase caiu do cavalo. Várias vezes. Mas de alguma forma Nix sempre percebia que ele estava pendendo para um lado, diminuía a velocidade e o puxava de volta. Mesmo com a ameaça que o fez, todas as vezes ela o puxou de volta. Mas nunca parou a cavalgada e Thomas temia que o pobre cavalo chegasse à exaustão em breve. Apenas torcia para que o animal fosse mais resistente que ele, que estava além do esgotamento, físico e mental. Lembrou-se do momento em que despertou com ela o resgatando daquele lugar sombrio, e levou alguns segundos para perceber que era real, que a mulher estava ali de verdade e não apenas num sonho criado pela força de seus desejos. E depois da alegria exultante que a esperança trouxe, veio a dor.
Tom não sabia como foi capaz de percorrer todo aquele caminho, pois cada passo parecia seu último mas ele forçou-se mais a cada segundo. E sabia que jamais conseguiria sem ela. Mesmo com aquele jeito estranho e violento de motivá-lo, Nix conseguiu fazê-lo se esforçar além de um limite que nunca pensou que conseguiria ultrapassar. E mesmo com suas ameaças, uma parte dele sabia que ela não o deixaria para trás. Bem, pelo menos desconfiava, já que não queria pagar para ter certeza. Não quis abandoná-la numa luta contra um de seus antigos companheiros, mas naquela situação ele seria apenas um estorvo, então a deixou e temeu por ela a cada doloroso passo. Afinal Thomas tinha a plena consciência de que precisava dela para protegê-lo no caminho até a segurança de sua residência.
Agora já deveria ser meio dia, ou algo próximo disso. Haviam parado apenas uma vez quando avistaram um córrego quilômetros atrás, Nix levou o cavalo para beber água e encheu os cantis. Tom não ajudou pois achava que se desmontasse, não seria capaz de montar novamente. Sua cabeça girava, sua visão estava embaçada, e sua consciência parecia ir e voltar de maneira alarmante e isso, claro, sem contar a dor no corpo todo e principalmente nos pés e cabeça que latejavam. Comeu um pedaço grande de pão na esperança de se sentir um pouco melhor, mas pareceu piorar. Começou a ficar enjoado e sentia-se prestes a vomitar.
-- Será que podemos fazer uma pausa? -- perguntou, respirando fundo para acalmar a ânsia.
-- Não. -- ela respondeu simplesmente.
-- Eu não me s-sinto bem. -- insistiu.
-- Oh, não me diga. -- a mulher zombou e Tom podia jurar que ela revirou os olhos.
-- Digo sim. Estou enjoado. E adivinhe sobre q-quem vai cair meu vômito? Você.
Ela não respondeu, mas sentiu que seu corpo enrijeceu. Essa parte da jornada, essa proximidade, era algo que ele evitava pensar, perceber. Não por receio de ficar próximo de uma mulher, ele já ficou ainda mais próximo de outras mulheres várias vezes, mas com ela aquilo parecia ser... diferente. Quase perigoso. Considerando as habilidades dela seu receio era plenamente justificável, mas na verdade sua intuição apontava para um outro tipo de perigo.
Guardou o pensamento ao notar uma mudança brusca na direção. Estavam seguindo viagem pelo Bosque do Trevo desde que saíram das profundezas da mina, aproveitando-se da vegetação um tanto densa para não serem vistos de longe. O cavalo subiu por uma pequena colina e Tom viu uma rocha gigantesca que deveria ter ao menos cinco metros, coberta por folhas verdes que desciam sobre ela como se fossem cabelos entrelaçados. Era uma paisagem espetacular, sem dúvida. A mulher puxou as redeas com força e o cavalo parou soltando um relinchado de gratidão. Ela desmontou com a facilidade e graça de um felino e olhou para ele, erguendo um dos braços para proteger os olhos do sol.
-- Qual pé está pior? -- perguntou.
-- O direito.
Ela seguiu até o lado esquerdo do animal para ajudá-lo a desmontar e Thomas notou apenas agora que ela se feriu na luta durante a fuga. A manga direita da camisa verde escura estava rasgada e enegrecida de sangue seco, mas quase não era visível sendo ocultada pela capa negra que a mulher usava. Também percebeu uma faixa azul enrolada em sua mão esquerda, só que sem sangue. Aquele deveria ser um machucado mais antigo.
-- Está ferida. -- ele apontou.
-- Nem de longe tanto quanto você. -- ignorou a solidariedade dele -- Venha, se apoie em meus ombros e solte o peso em mim, não no seu pé.
Tom tentou visualizar seus próximos movimentos a fim de saber exatamente como proceder sem sentir muita dor. Viu a mulher franzir as sobrancelhas para ele, já impaciente. Respirou fundo e desmontou. E seu pé doeu como o inferno. E sua vertigem piorou, quase o derrubando quando o mundo girou sob ele.
-- Peguei você. -- ela o tranquilizou, quando um gemido de dor lhe escapou -- Venha, estamos quase lá.
Abraçados eles seguiram em direção à rocha. Sentiu uma escuridão à espreita, estava prestes a desmaiar. Concentrou-se na sensação daquele outro corpo junto ao seu, sua firmeza e sua força, a segurança que o passava nesse momento vulnerável. Chegaram à rocha e Nix puxou os longos ramos de folhagens para o lado e, com grande surpresa e alegria, ele descobriu que a pedra era oca, criando assim um pequeno e perfeito abrigo. Precisaram se abaixar um pouco para entrar, já que o espaço era mais cumprido do que alto. Lá dentro ela o soltou e Thomas jogou-se ao chão com um suspiro de contentamento. Seu corpo todo parecia vibrar de cansaço. Olhou para a entrada da caverna oculta e a mulher já tinha saído. Levou três minutos longos e sofridos para tirar as botas. E apenas um para mergulhar num sono profundo.
Quando acordou o crepúsculo já havia começado. Sentiu-se desorientado por alguns segundos, mas a confusão logo se dissipou quando as memórias sobre os últimos acontecimentos retornaram. Antes de abrir os olhos fez uma avaliação geral de seu estado. A cabeça doía muito, mas não tanto quanto antes. Ainda sentia tontura e seu pé parecia bem melhor. O mexeu para um lado e outro, testando o movimento, que lhe causou um desconforto grande, porém tolerável.
-- Você tem dois dedos quebrados. Provavelmente algum osso do peito do pé, também. -- uma voz feminina disse -- Quantas vezes usaram a barra de ferro neles?
Abriu os olhos e olhou para o lugar de onde veio a voz. Nix estava sentada, as costas encostadas na parede da caverna, as longas pernas esticadas e cruzadas confortavelmente. Olhando diretamente para ele. Seus olhos pareciam brilhar na meia luz do anoitecer, totalmente focados nele. Arrepiou-se ao pensar no que alguém como ela poderia fazer com ele enquanto dormia.
-- Comigo acordado foram quatro. -- respondeu e fez força para se levantar.
Demorou mais do que seu orgulho estava confortável em admitir, mas conseguiu. Em momento algum ela fez menção de querer ajudá-lo e Tom agradeceu por isso. Já era ruim o suficiente precisar dela para manter-se vivo, poderia muito bem ser capaz de ao menos se sentar sozinho. Se acomodou e percebeu a razão de sua dor ter cedido: um tecido estava enrolado em seu pé com força, dando-lhe mais firmeza e, de alguma forma, afugentando a dor. Passou a mão por seu rosto, que estava limpo sem todo o sangue seco, e encontrou outro curativo agora circundando sua cabeça. Olhou para a mulher que permanecia silenciosa em seu lugar, ainda com seu olhar sobre ele.
-- Obrigado. -- disse, baixinho, pois parecia uma palavra tão... insuficiente para tudo o que ela fez.
Nix não respondeu, apenas esticou o braço para pegar algo ao seu lado e, depois, levantou-se e levou até ele. Thomas percebeu ser uma panela pequena e notou também um suave aroma de ervas invadindo o ambiente.
-- Beba. É chá de carqueja, vai ajudá-lo a se sentir melhor.
Obedientemente Tom aceitou a panela oferecida e cheirou a bebida, que realmente parecia carqueja. Ao perceber sua desconfiança a mulher revirou os olhos e se afastou, apanhou algo de sua grande bolsa e enfiou nas mãos dele, retornando ao seu lugar em seguida.
-- Se algum dia eu quiser matá-lo, senhor Longford, saiba que veneno não faz o meu estilo. -- ela disse com um dar de ombros e mordeu algo que tinha em mãos.
-- E qual seria seu estilo, senhorita? -- perguntou e tomou um gole da bebida amarga que ainda estava morna.
A mulher pensou naquilo enquanto mastigava e respondeu após engolir.
-- Algo que envolva luta e sangue, eu acho. -- deu de ombros -- E o seu?
Ele mordeu o alimento, um pedaço de torta de rim muito boa, e tentou não rir da pergunta dela.
-- Realmente acha que sou capaz de matar alguém? -- perguntou e bebeu mais chá.
Uma escuridão lampejou no cinza dos olhos dela.
-- Qualquer um é capaz de matar, senhor. -- disse sombria.
Mais do que perceber, ele sentiu a verdade naquelas palavras. Afinal, se uma mulher como ela poderia se transformar em alguém tão letal, realmente qualquer um poderia. Se permitiu observá-la por apenas alguns segundos. Seu corpo alto era torneado por músculos, as feições - mesmo duras e severas - eram delicadas. Quis perguntar o que aconteceu com ela, como ela acabou nessa vida tão perigosa, mas se deteve.
-- Thomas. -- ele disse, mordendo outro pedaço da torta, e acrescentou de boca cheia -- Me chame de Thomas. Ou Tom.
Agora foi a vez dela observá-lo e ele quase sentiu-se tímido sob o peso daquela avaliação.
-- Me chame de Nix. Nada de "senhorita". Eu não sou como essas ladys que você conhece.
-- Fico feliz por isso. -- disse apenas.
A conversação silenciou enquanto terminavam rapidamente a refeição. Antes que o chá acabasse ele já sentia o sono retornando, e quando terminou, precisou se esforçar para manter-se desperto. Já era começo de noite e o abrigo estava quase que em completo negrume. Aquilo o lembrou da escuridão infinita dos calabouços, da dor que foi obrigado a suportar ali, da solidão. Não estou sozinho agora, repetia para tentar se acalmar. Não vou ser torturado, eu escapei. Escapei.
-- Você está hiperventilando. -- ouviu Nix dizer.
-- Não d-deveríamos ascender uma fogueira? -- perguntou soando ansioso aos próprios ouvidos.
-- Não.
Estava se cansando dos nãos dela mas evitou insistir. Sabia que seria estupidez uma fogueira, seria o mesmo que fazer uma sinalização para chamar seus perseguidores. Tentou controlar a respiração.
-- A escuridão não é má, sabe? -- a mulher disse usando um tom suave que parecia tão diferente dos anteriores, parecia tão... verdadeiro.
-- N-não?
-- Não. É só... -- deu de ombros -- escuro. Coisas ruins acontecem durante o dia, também.
Ele pensou naquelas palavaras, na verdade delas. E também pensou no tamanho da gentileza da mulher em dizê-las.
-- Meu p-pai morreu próximo do meio-dia. Estava c-caçando um porco selvagem e teve um ataque do coração.
-- E o meu me abandonou enquanto o sol brilhava forte no céu. Eu ainda não tinha noção de horas na época.
Disse tão baixinho que Thomas quase não ouviu. Olhou para ela e mal era capaz de discernir o contorno de seu corpo naquele breu, mas viu dois pontos brilhantes olhando na direção da entrada da caverna, pontos que pareciam na verdade estar mais longe ainda, olhando para o passado. Ela era tão jovem agora. E ainda mais jovem quando foi abandonada. Sentiu vontade de confortá-la mas não sabia como, já que Nix era tão distante, tão evasiva.
-- Eu sinto muito. -- disse, sincero.
Dois pontinhos luminosos se voltaram até ele.
-- Durma. Temos que seguir viagem amanhã e precisa recuperar um pouco da sua força.
Deitar se mostrou mais fácil que sentar. Se acomodou da melhor maneira que pôde, colocou um braço sob a cabeça e relaxou o corpo. Quis perguntar se a mulher ia dormir sentada daquele jeito, ou se sequer pretendia dormir, mas o peso da sonolência já o sobrepujava. Estava mergulhando no mar da inconsciência quando ouviu um murmúrio, numa voz doce e melodiosa, cantando uma canção de ninar. Aquela que Thomas sempre cantou para si, pois nunca teve ninguém para fazê-lo por ele. Até agora.
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