Capítulo 11 - "Não pense na dor"



     Entrar no calabouço foi fácil. O problema maior foi abrir a cela, já que as chaves certamente estariam em posse de Willk, Hamós ou Bruni na segurança da fortaleza da Irmandade. A solução foi retirar a porta de grades das dobradiças e usar toda sua força para arrastá-la até os fundos do corredor. Thomas nem se mexeu mesmo com todo o barulho, o chamou algumas vezes mas em nenhuma obteve resposta. Ao enfim chegar até o duque, percebeu que estava descalço e saiu em busca de suas botas que ela já sabia estarem na sala de interrogatório, onde provavelmente feriram seus pés. Apressou-se até ele e o sacudiu na tentativa de acordá-lo. Nada. Decidiu então calçá-lo ela mesma para adiantar o processo e, finalmente, ele pareceu despertar.


-- Ande logo, não temos tempo!


-- Você voltou! -- ele disse, baixinho e lhe sorriu.


     Olhou diretamente para seu rosto e sentiu pesar ao ver, mesmo na quase completa escuridão, o quanto o machucaram. Os olhos dele mal abriam e, no lado esquerdo de seu rosto, uma elevação anormal indicava um ferimento interno. E ainda assim sorriu para ela. E desmaiou depois. Revirou os olhos e terminou de enfiar as botas em seus pés, o que causou alguns gemidos da parte do homem.


-- Acorde! -- sacudiu a perna dele, que resmungou um palavrão -- Se nos pegarem, a surra que levou hoje vai ser pequena comparado ao que farão conosco.


     Ele arregalou os olhos e piscou algumas vezes fazendo uma careta, como se esforçando-se para firmar a visão.


-- Venha, levante-se.  -- deu nós em suas botas e seguiu para ajudá-lo a se levantar -- Vamos, alteza, não pretendo morrer nesse lugar.


     Estendeu os braços para ele, que lhe tomou as mãos. Nix puxou e Thomas fez força, mas foi inútil.  Ele caiu de volta ao chão em uma nuvem de poeira e gemidos de dor.


-- Eu n-não consigo! -- sussurrou, desistindo.


     Tudo o que ela queria, naquele momento, era dar uma porrada no lado bom da cabeça dele, mas se conteve e apenas puxou o colarinho de sua camisa violentamente. 


-- Escute aqui! -- falou ameaçadora -- Se quiser morrer, ótimo! Eu o deixo para trás.  Agora se está disposto a se esforçar para escapar dessa merda toda eu estou disposta a ajudá-lo. Apenas não ache que minha boa vontade durará muito tempo! Você tem cinco segundos. -- o encarou esperando uma resposta e a única reação dele foi arregalar ainda mais aqueles olhos castanhos -- Quatro... três...


-- Tudo bem! -- exclamou.


     O homem dobrou as pernas, cerrando os dentes para conter um grito. Nix se posicionou novamente e lhe esticou as mãos que, dessa vez, ele segurou num aperto um pouco mais firme.


-- No três! -- orientou.


     Contaram juntos e fizeram força no momento combinado. Ele conseguiu se levantar e quase caiu por sobre ela, que o segurou com força pelo tronco e o firmou. Com o contato percebeu o corpo dele tenso e trêmulo mas não podia fazer nada, eles precisavam sair dali imediatamente. Passou a mão de Thomas pelo seu ombro para ampará-lo, e manteve-se abraçada à sua cintura.


-- Não pense na dor. -- sugeriu enquanto davam os primeiros passos.


-- D-devo pensar em quê? -- perguntou entre dentes, os pés se arrastando pelo corredor do calabouço.


-- No sol. -- disse já ofegante -- Você sente falta dele, não sente? Da luz, do calor?


     Levou alguns segundos para que ele respondesse.


-- Por alguns momentos, eu t-tive a certeza de que jamais veria a luz do dia novamente. -- confidenciou.


-- E não veremos, se você não andar mais rápido.


     Devagar demais. Eles estavam demorando-se muito ali, ainda estavam na metade do corredor e alguém poderia visitar o calabouço a qualquer momento, já que as rondas aconteciam em livre demanda, justamente para desnortear os prisioneiros.


-- V-você tem um jeito estranho de motivar as p-pessoas, sabia? -- acusou, sério.


-- Está funcionando? -- ele acenou afirmativamente e acelerou o passo um pouquinho  -- Pense só o que acontecerá se nos encontrarem. Acha que perderão mais tempo com interrogatórios? A resposta é não! Vão nos matar imediatamente. Pense nisso, Thomas, nas suas tripas espalhadas pelo chão. O seu...


-- P-pare! -- pediu em voz trêmula.


-- Só se você andar mais rápido! -- dessa vez ela quem gemeu, já suando sob o peso que ele apoiava nela.


    O duque atendeu seu pedido e começou a andar mais rápido, deixando escapar sons agonizantes de dor por entre as respirações sofridas. Iria pedir que fizesse menos barulho, mas se conteve. Logo vislumbrou a porta da passagem que deixou aberta e a tocha que jazia ali, os esperando. Cinco metros. Quatro. Três. Estavam quase lá... Até que ouviu passos rápidos vindo até eles e frio invadiu seu estômago. Foram pegos. Estancou e olhou para Thomas.


-- I-isso é...?


-- Sim. -- confirmou e o soltou -- Pegue a tocha e vá sem mim, o encontrarei depois. Suba o declive e vá reto, na bifurcação pegue a direita, direita, esquerda e direita de novo.


-- Mas... -- ele ainda estava instável, mal aguentando-se de pé e parecia... preocupado com ela? -- Como p-pretende lutar no escuro?


     Nix não pôde responder aquela pergunta. Não quando Bruni irrompeu vindo do corredor das celas, partindo para cima deles com ódio no olhar, espada já em mãos. Ela apenas empurrou Thomas com o ombro para tirá-lo do caminho e correu para enfrentar seu oponente. Desviou de seu primeiro golpe e só depois sacou sua adaga.


-- Vá! -- ordenou ao homem que permanecia parado, apoiando-se na parede.


-- Sua traidora desgraçada! -- urrou Bruni entre suas investidas -- Vou degolar seu amigo e depois será você na sala de tortura no lugar dele!


     Atacou novamente e ela afastou a lâmina da espada com sua adaga. Só estava tendo sucesso pois era rápida e ágil em se desviar, mas não poderia prolongar aquilo por muito tempo. Ainda mais quando Thomas se fosse e levasse a única fonte de luz com ele, aliás por que estava demorando tanto? Deveria desarmar seu oponente o quanto antes. Bruni golpeava usando as duas mãos, aumentando a potência dos ataques, o som de lâminas se chocando preenchia o ambiente e faíscas surgiram algumas vezes. Ela não atacou nenhuma vez, apenas se defendeu.


-- Traidora? -- exclamou indignada -- Vocês me enganaram a vida toda! Bando de vermes malditos!


     Ela pulou para trás, escapando por pouco da espada que quase a estripou. Desviou-se para a direita e usou sua adaga para afastar a lâmina inimiga.


-- Nós a acolhemos! Nós! O que esse reino, esse rei  fez por você? -- investiu e ela abaixou-se, rolando para longe -- Não fizeram nada!


-- E isso é desculpa para fazer centenas de pobres coitados sofrerem? Abusá-los e mal tratá-los?


     Percebeu que Thomas chegou até a tocha pois o ambiente começou a escurecer muito lentamente.


-- Oh, que bondosa você! E assim nasce a defensora dos indefesos. -- zombou e golpeou, Nix demorou um segundo para se defender e teve o braço cortado, cerrou os dentes para segurar a dor -- Sempre se achou melhor que todos não é, sua vadiazinha.


     A lâmina de Bruni desceu zunindo por sua orelha esquerda, próximo demais, e percebeu que ele já preparava outro golpe semelhante. A brecha que ela esperava.


-- Não preciso ser melhor que todos, seu imbecil. -- ele ergueu os braços ao brandir a espada no alto e ela avançou -- Só preciso ser melhor que você. 


     O apunhalou bem abaixo do esterno e, no mesmo instante, o homem largou a própria arma. Olhou para baixo, espantado, observando a adaga de Nix cravada em seu peito. Tentou dizer algo e sangue escorreu de sua boca.


-- Não deveriam ter mentido para mim. -- sussurrou para ele e puxou a adaga com força, fazendo uma corrente vermelha jorrar, a limpou na camisa dele e a embainhou novamente -- Não deveriam.


     O homem caiu de joelhos já muito pálido e agonizando, Nix fez força para arrastá-lo até dentro da passagem secreta, o deixando para morrer ali na intenção de ocultar o cadáver e, talvez, fazer com que os irmãos demorem a perceber que Thomas fugiu por ali. Apenas esperava que demorassem a dar por falta de Bruni.  Depois pegou a espada dele e algumas moedas que tinha no bolso, fechou a porta escondida e seguiu até Thomas que, segundo a luz minguante da tocha, não estava longe. Apressou-se a seguir a claridade e não demorou mais que um minuto para alcançá-lo, logo após a subida do declive. O homem mancava, apoiando-se na parede com uma mão e segurando a tocha na outra. Percebeu que ele se sobressaltou ao ouvir os passos dela, mas não reduziu seu ritmo.


-- Me dê a tocha. -- ela pediu estendendo a mão e a tomando dele -- Precisamos correr.


-- Seria m-mais fácil sair voando. -- disse com escárnio.


     Passou suas mãos pela cintura dele novamente e o duque se apoiou nela. No começo os resmungos dele eram altos e frequentes. Depois gemidos de esforço, dor e palavrões de ambos encheram o ambiente. Tom parecia estar chegando ao seu limite pois depositou ainda mais seu peso nela.


-- Aguente firme. -- encorajou -- Estamos quase lá.


     Tentou lhe passar um pouco de sua força, um pouco da resistência que os anos a ensinaram. Lembrou-se de como ficou em sua primeira surra - desacordada por dias a fio - e se compadeceu dele. E também sentiu algo como alívio e... orgulho, talvez? Pois mesmo sendo um duquezinho mimado com vida fácil, estava aguentando bem toda aquela situação. Não teve um chilique emocional nenhuma vez e, mesmo claramente prestes a desmaiar de dor, seguia em frente. O trajeto até a montaria levou quase uma hora inteira e quando ouviram o relinchar do cavalo, ambos quase choraram de felicidade.


-- Um cavalo? -- disse extasiado -- T-trouxe um cavalo?


-- Não achou que fugiríamos caminhando, achou? Precisamos estar o mais longe possível quando perceberem o que aconteceu.


     Tom apenas sorriu e fez seu esforço final ao percorrer os últimos metros. Finalmente - finalmente! - chegaram até o animal, e Nix o ajudou a montar primeiro, com extrema dificuldade e muito ranger de dentes, depois desamarrou as rédeas e montou na frente dele em seguida.


-- Se cair do cavalo eu o deixarei para trás. -- com essa ameaça deixaram a fortaleza à galope.


     Ela não olhou para trás.

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