Capítulo 10 - "Você voltou!"
Willk manteve sua promessa de deixá-lo em paz até o pôr do sol. Claro que no breu daquele lugar Thomas havia perdido completamente a noção de tempo, então ele apenas deduziu tal coisa. E ficou ali por horas a fio tendo como companhia somente uma ansiedade brutal ao imaginar se sairia dali vivo, se Nix encontraria provas do que ele lhe revelou, se ela conseguiria trair seu mestre. Relembrou o encontro clandestino da noite passada, o choque nas feições dela que aumentava a cada palavra que proferia, a recusa que demonstrou, o medo de encarar a verdade. O líder da Irmandade a enganou completamente e a transformou numa pessoa que, aparentemente, não é. E talvez ela nem mesmo saiba disso. Indignou-se com tamanha crueldade e desejou que, um dia, ele fosse o homem a matar aquele desgraçado.
Riu com escárnio e dispensou aquele pensamento. Claro que não seria ele, Thomas nunca foi bom em brigas, nem mesmo sabia manusear uma espada de maneira decente. Não por ser fraco ou covarde, mas quando apresentou dificuldades em seus treinamentos na infância, certa vez surpreendeu seu mestre de armas e seu pai numa conversa em que caçoavam dele. O garoto tem a coordenação de uma gazela recém nascida, disse seu instrutor entre gargalhadas. Ele esperou envergonhado, escondido nas sombras de uma macieira, que seu pai o defendesse. Um terrível engano. Como um homem como eu pode ter um filho tão mole? Deveria ter nascido uma menina, isso sim, daí não me causaria tanto desgosto, seu pai respondeu raivoso, e a partir do dia seguinte Thomas nunca mais pegou numa arma. E seu pai nunca mais falou com ele, o que não era uma grande mudança pois raramente conversavam, já que o antigo duque jamais suportou a gagueira do único filho.
As horas se arrastavam, a fome e sede doíam e lembrou da simples refeição que recebeu às escondidas, imaginando o quão pior estaria se Nix não tivesse se apiedado dele. Ela poderia muito bem ter ido lhe exigir respostas sem lhe oferecer comida, mas levou pão, queijo e leite ao inimigo de seu mestre, e isso significava muito. A escuridão ameaçava enlouquecê-lo, mas eventualmente uma luz bruxuleante surgia quando alguém ia vê-lo. Por fim, a luz veio acompanhada de Willk. Seu tempo havia acabado. A cela foi aberta com um barulho de mal agouro e o homem entrou, sorrindo.
-- Então, está pronto para falar? -- perguntou e esfregou as mãos, ansioso.
Ele pensou no que a mulher pediu. Dê um jeito de ficar vivo mais uma semana. Seria ele capaz? Thomas não foi criado para pensar em enganos e ardis para enganar seu inimigo, ele não sabia misturar mentiras e verdades a fim de confundi-los. E se acabasse por revelar algo vital? E se, experientes como eram, percebessem imediatamente que os estava tentando enganar? Willk interpretou sua hesitação como recusa e o levantou pelos cabelos.
-- Muito bem, que seja da maneira difícil. -- sussurrou entre dentes.
O arrastou até a mesma sala da tarde anterior, e um homem que os aguardava prendeu as correias de couro em volta de seus pulsos e tornozelos. Tom pensou em resistir mas isso apenas lhe renderia mais dor do que estava preparado para sentir.
-- Eu estava disposto a lhe oferecer um acordo único, mas pelo visto não está interessado. -- disse Willk, distraidamente, enquanto vestia um grosso anel em cada dedo da mão esquerda.
-- Que tipo de a-acordo? -- perguntou, tentando ganhar tempo.
-- Sabe, Thomas, eu não sou tão terrível quanto pensa. Eu nao tenho nada contra você, apenas... -- pensou nas palavras -- quero algo e você está no meu caminho. Claro que me ressinto pelo que fez, vou levar meses para conseguir novos espiões. Mas sabe o que mais tem nessas vilas, onde você fez essa sua alforria de benevolência?
O homem caminhou lentamente até ele, abaixou-se para encará-lo diretamente e aguardou uma resposta. Tom sacudiu a cabeça, lentamente.
-- Putas e mendigos. Você, um homem tão bem nascido, tem noção do que putas e mendigos são capazes de fazer por uma refeição? Por uma moeda? Para sobreviver? Ainda mais quando recebem minha... orientação -- sorriu ameaçador --para vigiar e não perder nada de remotamente suspeito que possa afetar a minha causa.
Levantou e caminhou ao seu redor, lentamente.
-- Percebe que tudo o que fez foi em vão? Claro que sim. É um homem letrado e inteligente que não quer morrer por nada. Eis a minha oferta, diga tudo o que quero saber e estará livre para ir.
Parou novamente à sua frente e aguardou uma resposta. A postura de Willk era reta e inflexível, um rei sem seu trono. O sorriso era caloroso e acolhedor, mas os olhos... frios e implacáveis.
-- E-e o que me g-garante que está falando a verdade? -- perguntou.
-- Dou-lhe a minha palavra. -- garantiu, com a mao direita no coração.
Mentira. Aquilo era uma mentira, obviamente, Thomas não era tão inocente a ponto de não perceber.
-- É uma oferta t-tentadora, eu assumo. Que tal mais um dia para que e-eu possa pensar a respeito, q-que tal? -- arriscou.
O sorriso desapareceu dos lábios dele lentamente.
-- Infelizmente para você, não é assim que funciona. Uma pena realmente. -- deu de ombros -- Hamós.
O outro homem presente, mais baixo que seu mestre mas muito mais parrudo, se aproximou e lhe desferiu um glorioso soco na barriga. Tom perdeu o fôlego imediatamente e acabou por vomitar o pouco líquido precioso que tinha no estômago. Fechou os olhos com força e concentrou-se em levar ar de volta aos pulmões, tossindo.
-- Desculpe, disse alguma coisa? -- ironizou Willk -- Hamós, temos que persuadir nosso convidado, mas sem feri-lo gravemente. Que tal começarmos pelos dedos dos pés? Você realmente não precisa de todos eles, não é?
O outro, então, abaixou-se e retirou suas botas rapidamente. Foi até a mesa e retornou trazendo uma grande barra de ferro. Aguentar alguns socos era uma coisa, mas aquilo... talvez fosse hora de começar a falar.
-- E-eu não tenho as respostas que v-você quer! -- vociferou.
-- Você faz parte do exército de sua majestade, não faz? Você é sobrinho da rainha! É claro que você sabe tudo o que eu preciso! Onde estão os exércitos?
Foram divididos em três grupos. Um permanece na capital, enquanto os outros marcham para o sul fora das estradas, um pelo leste e outro pelo oeste para encurralar a Irmandade agora que, depois de tantos anos, sabemos estar nessa região.
-- E-eu não sei! -- gritou.
Imediatamente, Hamós desceu a barra de ferro com toda a força sobre seu pé direito e Tom gritou. Tentou se mexer, mas estava preso e a dor irradiava por sua perna e latejava e, vergonhosamente, quis chorar.
-- Escute, garoto. Se você não me dá respostas então é inútil para mim. Sabe o que faço com inúteis?
O ferro agora acertou sua cabeça e sua visão escureceu. Gratidão o dominou quando perdeu a consciência, mas o alívio durou apenas segundos. Logo sua mente voltou, um zunido agudo o invadia e a dor o sobrepujava. Sentiu sangue escorrer, de sua têmpora ou do ouvido, não sabia ao certo. Levou minutos até conseguir falar.
-- O r-rei... está muito d-desconfiado... -- usou toda sua força -- Dizem os conselheiros que está p-prestes a enlouquecer. Ele não... diz seus planos a n-ninguém, apenas ao príncipe.
Dúvida lampejou nos olhos azuis de Willk, pelo menos achava que era isso, já que sua visão ainda estava embaçada.
-- Acredito em você. Eu mesmo me sinto meio louco depois de tantos anos rodando em círculos nessa guerra estúpida! Para onde irão enviar a próxima safra de alimentos?
Para o porto da Cidade Real e depois para o leste, oculto num navio mercante. Metade de tudo seria levado até a fronteira com o sul e entregue aos moradores.
-- Ainda n-não estão prontos para a colheita. A chuva foi escassa nesse ano, isso at-atrasou o crescimento das plantações. Isso se não p-perdermos tudo.
-- Você não espera que eu acredite nisso, não é?
O soco veio tão rápido que nem percebeu. A hora seguinte - talvez duas? Ou mesmo três? - foram preenchidas por nada além de dor e gritos e fúria, da parte de Willk e de Thomas. Suas respostas eram sempre as mesmas, vagas e desconexas, e conforme o tempo passava, precisou de toda sua força de vontade para não entregar tudo logo e pedir por uma morte rápida. Deve ter desmaiado em algum momento pois quando deu por si, percebeu-se sendo carregado pelos ombros e jogado até sua cela. Vamos pegar mais leve amanhã ou o rapaz morrerá antes de abrir o bico, ouviu um deles dizer tão distante que mal compreendeu as palavras.
O chão frio de sua cela pareceu acariciar sua pele dolorida e pegajosa de sangue, sentia o mundo girar e clamou pela escuridão que não tardou a reivindicá-lo, levando-o dali até um lugar onde não existia dor ou medo. Mas não teve paz por muito tempo, pois foi acordado por alguém mexendo em seu pé dolorido. Gemeu de dor e o puxou para afastá-lo dos seus agressores que retornaram e uma voz conhecida soou na escuridão.
-- Ande logo, não temos tempo! -- Nix lhe disse, irritada e apressada.
Thomas forçou-se a abrir os olhos e percebeu uma claridade escassa vir do corredor, e encontrou a mulher ajoelhada aos seus pés tentando calçar seus sapatos nele. Algo quente se espalhou em todo seu corpo, partindo de seu peito e ele sorriu, aliviado.
-- Você voltou! -- exclamou e a inconsciência o dominou novamente.
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