Capítulo 24
CARLOS TERÁ UMA GRANDE SURPESA
O advogado Eraldo Doryan sentou-se com Carlos, numa sala privada, cada um em frente para o outro, em poltronas de um veludo verde musgo, muito confortáveis. O ambiente era amplo e muito elegante, com uma lareira, quadros e um barzinho de mogno. À frente dos dois, uma bandeja com café, chá e uma travessa com macarrons. A vista da cidade era magnífica, através da parede de vidro panorâmica, que fazia o ambiente ainda mais amplo e iluminado.
- Bem, senhor Uchida. – Falou, com sua voz mansa. - Temos muito que conversar.
- Me chame de Carlos, senhor Doryan. – Interrompeu Carlos, gentilmente.
- Pois bem, Carlos. Eu trabalho há muitos anos para a família Ponsonby. Os Fox chegaram bem depois, com a união da jovem Adelaide Fox com o filho dos Ponsonby, Jonas. Desta união nasceu o único filho do casal, um menino.
- Por favor, continue. – Carlos, se recostou na poltrona, para prestar mais atenção.
- Esta criança tinha uma pequena marca de nascença. Um sinal no ombro esquerdo, que lembra uma meia lua, exatamente como seu avô paterno. Infelizmente, alguém roubou o bebê da maternidade, que fez o casal quase perder a sanidade, tentando encontrar o filho.
O homem deu uma pausa, bebericando o café, largando a xícara na bandeja de prata.
– Mas o destino não facilitou a vida do casal. – Continuou. - A jovem Adelaide veio a falecer devido uma doença congênita e depois de muitos anos de procura e muito dinheiro gasto em buscas, sem sucesso, Jonas desistiu, já adoentado e sem esperanças.
Carlos, encarou o velho, já adivinhando onde aquilo tudo iria parar. Mas, por via das dúvidas, achou melhor não interromper, deixando que o fluxo das lembranças viesse naturalmente.
- Antes de morrer, o senhor Jonas Ponsonby me chamou na fazenda onde resolveu se instalar em seus últimos dias, me dando o colar que pertencia a sua avó, alguns documentos importantes e espólios, além de uma quantia em dinheiro. Tudo foi entregue em uma pasta especial. Me pediu que eu continuasse procurando o seu filho e, foi o que eu fiz, incansavelmente.
- Perdão, mas este menino seria Otávio? – Perguntou Carlos, franzindo a testa. – Pelo que eu me lembro, tanto eu como ele, vivíamos em um orfanato.
- Sim. Exatamente, Carlos. – Sorriu, limpando os óculos de aros de metal fino e dourado. – Quando, depois de muito investigar, descobri que a mulher roubou Otávio, porque desejava ter um filho do amante. Porém, não estava preparada para ser mãe de um recém-nascido, largando a criança num orfanato qualquer.
O oriental franziu a testa, olhando para o nada, tentando compreender tudo que acabara de ouvir. Por mais que não quisesse, para ele, mais parecia um roteiro de filme, de tão incomum. O sansei demorou um pouco para compreender a dimensão daquela história toda.
- Então, o meu amigo Otávio é filho deste Jonas e de Adelaide?
- Exatamente, meu caro.
- Certo... - Falou, refletindo sobre tudo que ouviu até ali. - Ainda não me explicou como achou ele e como esta pasta parou nas mãos de Otávio. – Disse, finalmente.
- Pois bem! Eu, quando fui até este local, Otávio deveria estar com uns dez anos, mais ou menos. Como advogado, eu tinha que ter certeza, sem tomar qualquer atitude, que se tratava da criança certa. E se estivesse errado? Se não fosse realmente o filho de Jonas Ponsonby e Adelaide Fox? Eu teria de verificar a marquinha de nascença no ombro do garoto e aí sim, iniciar com a papelada e os trâmites legais.
- Otávio realmente tem um sinal que se parece um "C" no ombro. Uma meia lua, como comentasse... – Refletiu, Carlos.
O homem à sua frente, tirou os óculos, limpando-os, de maneira serena e impassível. Nada em seus gestos demonstra qualquer emoção. Carlos suspirou impaciente, o encarando.
- Perdão, senhor Uchida. – Tossiu, para limpar a garganta. - Como estava dizendo, assim que confirmei que realmente era o filho perdido da família, em que fui contratado, pedi que ele não fosse adotado de maneira alguma e que em breve, entraria em contato com a diretora do local e faria a papelada da adoção. – Recolocou os óculos e seu semblante, ficou entristecido de repente. – Deixei um envelope, contendo meu cartão e uma chave de uma caixa postal. Entreguei para a responsável e pedi que guardasse até que eu retornasse.
Carlos aguardou toda aquela novela. Precisava esperar o advogado terminar, para poder explicar o que o trouxe até aquele escritório. Mas antes, precisava ouvir até o fim.
- Neste ínterim, sofri um grave acidente de carro, onde fiquei um certo período acamado, me impossibilitando de ir até o local. Quando minha saúde estava um pouco mais estável, ordenei que meu assistente fosse em meu lugar, mas o patife não foi e não me retornou as ligações. – Sacudiu a cabeça, alisando sua calvície.
– O tempo em que fiquei de cama, foi o suficiente para perder o contato com a responsável e acabei sabendo que o antigo prédio do orfanato estava sendo demolido e que foi transferido para um novo espaço mais amplo. – Prosseguiu, depois de um gole no café.
- Como Otávio recebeu aquela caixa?
- Provavelmente a responsável. A gentil senhora Olga. – Disse por fim, se ajeitando na poltrona. –Ela estava para se aposentar e temia que o rapaz acabasse perdendo a chance de ter uma família. Com certeza entregou a ele o envelope, assim que este fez dezessete anos, já que aos dezoito, ele poderia sair daquele lugar.
- Faz sentido. – Disse apenas.
Carlos sorriu ao ouvir aquele nome, que pertencia a um passado longínquo. Seus olhos se perderam num leve devaneio, onde sua infância se mesclava com a de Otávio, no orfanato que foram criados.
- Dona Olga... – Falou, com um leve sorriso
- Quando eu me recuperei e estive em condições de viajar, fui direto para o orfanato. – Prosseguiu. – Infelizmente, no lugar já não havia nenhum orfanato e soube em seguida que ele tinha fugido, acompanhado de outro rapaz e uma menina. Eles já estavam liberados mesmo, pela idade máxima, mas a garota, só tinha dezesseis.
- O rapaz que se refere, era eu, senhor Doryan. – Disse, com leve sorriso discreto. – E a garota se chamava Jenifer.
- Foi o que imaginei, quando você veio até mim, meu caro. – Sorriu. – Como estava dizendo. Eles fizeram algumas buscas, contratei alguns detetives particulares para encontrar Otávio, mas ele, ou melhor, vocês, simplesmente sumiram! – Ergueu os braços em rendição.
Soltou um suspiro, inclinando o corpo em direção a bandeja sobre a mesinha, se servindo de mais café.
- Quer uma xícara de café, senhor Uchida? – Oferecendo, sem erguer os olhos.
- Chá, por gentileza. Sem açúcar. – Sorriu. – Obrigado.
- Como ele não entrou em contato com meu escritório e tampouco apareceu, acreditei que ele poderia ter morrido ou nunca deu atenção no que havia dentro do cofre. – Bebericou um pouco, dando uma longa pausa. – Até que soube, um dia, que ele esteve lá, pegou a caixa e voltou a sumir. Eu já não poderia ir atrás de um adulto que nunca desejou reclamar sua herança.
- Compreendo. Só que agora, ele precisa e muito da sua ajuda, senhor Doryan. Creio que seu escritório poderá nos ajudar. – Largou a xícara com o líquido intacto nela.
- Poderia ser mais específico? – Eraldo ajeitou os óculos, para prestar mais atenção no homem.
- Ele está preso, mas antes foi espancado e largado para morrer, pelos desgraçados capangas do pai do garoto que ele se apaixonou! - Carlos se exaltou, tentando recuperar a calma, antes de continuar. - Agora está trancafiado na cadeia, sem advogado e tenho certeza que vão arranjar o pior advogado "porta de cadeia", só pra ferrar com meu amigo.
O velho arregalou os olhos, soltando o ar de uma só vez. Totalmente atônito e sem pronunciar reação alguma. Estava em choque por tudo que acabara de ouvir.
- Fui bem específico? – Perguntou, pousando as duas mãos espalmadas nos braços da poltrona e cruzando a perna.
- Bastante específico, Carlos...
Ele sabia que o advogado precisava de um tempo para absorver aquela informação e pensar no que fazer. Se ele interrompesse o fluxo dos pensamentos daquele homem, poderia atrapalhar a linha de raciocínio lógico. Porém, tinha conhecimento de que, quanto mais demorar, mais riscos Otávio estava correndo. Ele não tinha escolha, além de esperar.
- Mas como tudo isto veio a acontecer com este jovem? Eu não entendo como a sorte lhe abandonou logo no nascimento! – Passou a mão pelos cabelos ralos e grisalhos. - Ao menos encontrou o amor e isto é bom. O amor é poderoso.
- E então? O senhor vai poder ajudar ou serei obrigado a procurar ajuda de outra maneira?
Carlos estava impaciente. Precisava apressar as coisas agora que o advogado já sabia de tudo e reagido melhor do que esperava. Sentia que estava sob forte pressão, pois seu olho esquerdo não parava de tremer, inconscientemente. Teve o ímpeto de desabafar com ele, sobre tudo que aconteceu, desde que resolveram ir embora. Ou melhor, fugir do orfanato.
Recordou-se da lista de sonhos e aventuras que os três iriam realizar. Das risadas escondidas, lendo uma história em quadrinhos, sem capa e sem a última página, que de alguma maneira conseguiram achar na lixeira do orfanato. Até hoje, não sabia como aquilo foi parar na lixeira. Mas, por muito tempo foi o que liam e reliam aos sábados à noite. Das orações forçadas que tinham todos os domingos de manhã e do aroma do leite morno com biscoito de polvilho que serviam após. Sorriu ao lembrar do som da risada da Beatriz.
- Carlos? Senhor Uchida?
Ele ouviu a voz do velho, caindo em si.
- Perdão. Acabei por me distrair em devaneios. E então? – Empertigou-se na poltrona. - O senhor vai poder ajudar? O tempo urge, senhor Doryan. Não podemos mais perder tempo.
O homem tirou os óculos, limpando-o em um lenço tão alvo e imaculado que chamou a atenção de Carlos. Seu semblante era sereno e, ficou naquele movimento ritmado nas lentes, em silêncio.
"Será que terei de sacudi-lo, para avisar que estou com pressa? Qual a parte do é urgente, ele não entendeu?" – Pensou, esfregando as têmporas, nervoso.
- Onde está sua paciência oriental, meu jovem? – Falou, recolocando os óculos e se levantando. – Venha comigo. Vamos dar um jeito nessa bagunça.
Carlos abriu um largo sorriso, levantando-se de onde estava sentado e seguiu o homem baixinho.
- Tenho uma equipe séria e muito bem remunerada, senhor Uchida. Carlos. - Corrigiu-se. -Vou verificar a ficha de antecedentes criminais, tanto de Otávio quanto a sua, meu amigo. – Olhou de maneira sagaz.
-Não tenho palavras para agradecê-lo, senhor Doryan.
– Não pense que, com meus anos de experiência, não iria me antecipar com informações, não é mesmo?
- Agora, o senhor me pegou de jeito, realmente...- Sorriu, de maneira franca.
- Não se sinta constrangido. É o meu trabalho e farei com que, tanto ele quanto o senhor não tenham mais ficha alguma. Será tão imaculada quanto meu lenço, que o senhor não tirou os olhos.
Carlos riu alto. Aquele homenzinho era muito mais esperto que ele e Otávio juntos.
- E como o senhor pretende fazer tal façanha, senhor Doryan? - Carlos perguntou, curioso.
- Também tenho algumas habilidades e conheço pessoas que me devem grandes favores. – Piscou. – Agora, vamos à parte chata?
Carlos assentiu com um olhar.
- Onde ele está e desde quando ele está lá?
- Tenho tudo aqui, anotado. – Alcançou o celular. – Tem também o nome de algumas pessoas envolvidas.
Carlos ficou observando o homem anotar em um bloco, tudo que lhe parecia relevante para o caso. Voltou a se sentar na cadeira em frente à mesa dele. A mesma que havia sentado, quando chegou. Viu o homem fazer algumas ligações, digitar em seu computador alguns artigos. Esperou, pacientemente, desta vez.
A paciência oriental, como o senhor Doryan havia dito.
Uma hora depois, Carlos saiu do escritório, mais aliviado e confiante. Entrou no elevador, respirando fundo, como se um peso enorme tivesse sido tirado de seus ombros. Um peso que já estava carregando desde seus vinte anos e, só queria recomeçar de verdade. Sem as sombras do passado, lhe apontando o dedo.
Mesmo que agora, Otávio tenha um futuro promissor e totalmente oposta ao dele, desejava que a amizade entre os dois jamais acabasse. Apesar de que, tinha plena convicção que seria difícil.
Assim que ganhou a calçada, uma lufada de ar morno alisou seu rosto.
- Vou até tomar uma gelada, pra comemorar! – Murmurou, sorrindo.
Foi até seu carro estacionado, saindo de lá em direção à praia. Tinha um quiosque de um velho conhecido, que servia um prato de camarões fritos e a cerveja mais gelada da cidade. Conectou sua playlist no carro e foi dirigindo. Se sentia confiante em relação à liberdade do amigo. No momento era o que mais importava.
Acompanhava a voz da cantora, que soltava no ar, o desejo de reencontrar um amor antigo.
Acelerou, com um sorriso largo e libertador nos lábios finos. Enfim, as coisas começaram dar certo para seu grande amigo.
(2182 palavras)
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