Capítulo 23

INIMIGO DO MEU INIMIGO É MEU AMIGO


      Augusto acordou cedo, naquele sábado. Queria tomar um banho caprichado e se preparar para ir até a casa do Maurício, como havia combinado com Letícia, mãe do encaracolado. Não queria se atrasar nem um minuto e até ganharia uns pontinhos positivos com a coroa, se fosse pontual; coisa que nunca foi em toda sua vida.

Sendo assim, exatamente na hora marcada, estacionou sua moto em frente a bela casa dos pais de Maurício. Tirou o capacete, dando uma olhada ao redor e passando a mão nos cabelos coloridos. Desceu, colocando o capacete no banco da moto e ajeitando a camiseta com uma imagem do jogo Minecraft estampada na frente.

- Bora encher o saco da perua e ver meu docinho! – Falou, olhando em volta. – Eu me acostumaria a viver neste bairro, viu? – Riu, tocando a campainha e esperando, com as mãos no bolso das calças pretas.

Assim que a porta abriu, a empregada surgiu, confirmando que ele poderia entrar, deixando que ele passasse por ela, pois já estava autorizado, naquele horário. Guto entrou, olhando em volta, desconfiado.

- Onde está seu patrão?

- Ele saiu em uma viagem e só volta amanhã. – Disse, convidando-o a subir as escadas. – Dona Letícia pediu para levá-la até Maurício e ficar de olho em você.

- Que isso, dona! Sou um menino do bem! – Segurou o riso. – Ele ainda tá de prisioneiro dos pais? – Disse, parando diante da porta, esperando que ela destrancasse com a chave. – Isto é cárcere privado. Dá cadeia, sabia?

- Eu só sigo as ordens do meu patrão, moço. – Destrancando a porta. – Não acho certo, mas não sou paga pra achar qualquer coisa.

- A senhora faz muito bem! Emprego tá difícil hoje em dia. E onde foi a dona Letícia? Ter mais uma aula de alguma coisa com um professor saradão? – Riu, debochado.

A mulher arregalou os olhos visivelmente acuada e desesperada para sair de perto dele. Aquilo só o divertia ainda mais.

- Não sei onde a minha patroa foi, garoto. Eu só obedeço às ordens dos meus patrões. Já disse. Com licença! – Disse, se afastando assustada.

- Depois faz um lanchinho, pra gente! – Gritou, antes que ela descesse as escadas.

A mulher deu uma última olhada para ele, confirmando com a cabeça, descendo as escadas.

- Eu me acostumaria fácil, fácil em ter empregados a minha disposição! – Falou, cheio de sarcasmo.

Antes de bater na porta, esperou um pouco para que ela descesse, ouvindo o som do sapato dela, no mármore da escada. Quando ouviu o silêncio, bateu e entrou antes que Maurício falasse qualquer coisa. Sorriu, ao ver o encaracolado enrolado numa toalha.

- Que cena! – Disse, abrindo os braços. – Que recepção!

- Guto! Pelo amor! – Berrou, se agarrando na toalha. – Como você entrou? O que tá fazendo aqui?!

- Até parece que não conheço este corpinho lindo que Deus te deu! – Cruzou os braços e rindo, divertido com o olhar acuado do amigo.

- Conhece o escambau! Você me faz sentir um depravado, Guto! - Disse, indignado.

- Que exagero...

- O que você tá fazendo aqui e o que quer comigo? – O Olhou, encolhido, segurando a toalha.

- Quanto pudor... – Murmurou. - Esqueceu que é sábado? Combinei com sua mãe, lembra? – Falou, se sentando numa cadeira em frente ao garoto. – Agora... O que quero com você, acho que não ia gostar de ouvir! Você está tão... Nossa! Gostoso!

- Como você é ridículo! – Pegou suas roupas e foi em direção ao banheiro, se trancando lá.

Guto aproveitou e ficou olhando as coisas do outro, com uma certa curiosidade e interesse em saber como Maurício vivia e como ele era em seu mundinho particular. Passou as mãos pelos livros e troféus de melhor jogador de xadrez totalmente desinteressado por aquilo. Estalou a língua, ao ver que nada ali era algo peculiar.

"Zero surpresas, Guto" – Pensou, indo até a sacada, olhando lá para baixo.

Se virou, sentando na cadeira em frente ao notebook de Maurício, tentando logar-se, mas sem sucesso. Tinha senha.

- Droga! Mas a tentativa é válida! -Falou em tom baixo, para o outro não ouvir.

Ficou se girando na cadeira em 360°, entediado, com a demora. Meia hora depois, já vestido, voltou para o quarto, cruzando os braços diante do garoto de cabelo azul:

- E aí? Vais me ajudar? Tens novidades sobre Otávio ou só veio pra me azucrinar mesmo?

- Meu Deus! Eu venho até aqui, fazendo um sacrifício enorme e o que ganho em troca? Ingratidão! – Enquanto falava, revirava os olhos, afetado.

- Pode parar, Guto! Eu realmente não tô com saco pra te suportar! – Maurício bufou, sem paciência.

- Ok! Eu não tenho muito pra dizer, mas convenci sua mãe em vir te ver neste sábado. Se eu não viesse, ela provavelmente não me deixaria vir numa outra oportunidade.

Assim que terminou de falar, foi até a cama de Maurício, se jogando nela, sem cerimônia. Pegou um dos travesseiros, cheirando-o. Ajeitou o corpo de lado, apoiado por sobre um dos cotovelos, admirando o encaracolado.

- Por que não aproveitamos e ficamos aqui? – Falou, batendo com a palma aberta o travesseiro ao lado dele.

- Não tens nada, então? – Maurício se sentia tão culpado do que acontecera com Otávio, que não segurou as lágrimas.

Guto percebeu o quanto o outro amava o loiro. Nunca tinha visto Maurício tão frágil e quebrado, como naquele momento. Queria se aproximar dele, mas sabia bem que levaria um tapa. Engoliu seco, incomodado. Maurício jamais se sentiu assim por ele. Tão apaixonado.

- Eu recebi uma mensagem, apenas daquele seu amigo misterioso, que tenho certeza ser o tal de Carlos. – Disse, finalmente sentando na beira da cama.

- Sério??! Me conta, por favor, Guto! Ele tem notícias do Otávio? – Enxugou as lágrimas, se sentando ao lado do garoto.

- Olha só. Ele não me contou muita coisa e eu dei aquele recado enigmático seu e, pelo jeito ele entendeu bem. – Falou, passando o dedão no rosto do outro, secando uma lágrima teimosa. – Ele disse que Otávio estava vivo, mas não livre.

- E o que mais, Guto? – A pergunta saiu quase sem som, carregada de emoção.

- Apenas isto. Eu só não pude te contar antes, porque sua mãe me deixou vir apenas hoje. Você mesmo a ouviu berrar, aquele dia. – Sussurrou, para que ninguém os ouvisse.

Ficaram um tempo em silêncio. Guto jogado na cama de Maurício e este, sentado no chão, com o cubo nas mãos.

- Você precisa me tirar daqui. – Disse este, por último.

- Como assim, meus cachinhos negros? – Sentou, pra ouvir melhor.

- Você precisa me tirar daqui! Me sequestrar de novo! Sei lá! Eu não vou ficar aqui, parado. Só esperando receber notícia de que Otávio está preso! Ou pior ainda. Morto! Não quero nem pensar nisso... – Se abraçou, ao pensar naquilo.

- Não seria uma má ideia... – Refletiu. – Brincadeira! - Falou, antes que Maurício dissesse qualquer coisa.

- Então? O que estamos esperando? Vamos aproveitar que meus pais não estão e...

- Ei! Calma! Não é assim, Maurício! – Cortou. – Precisamos pensar bem.

Se ergueu da cama, indo até a janela, olhando para a rua do condomínio.

- Me tira daqui, caramba! – Gritou, sem se importar com mais nada.

Guto foi até ele, segurando os ombros do amigo, fazendo-o cair em si.

- Para com esta frescura, cara! Se ficar berrando feito mocinha, vão entrar aqui e chutar minha bunda até a fronteira! – Falou baixo, tentando controlar o tom da voz. – Eu sei que tá foda, pra você ficar aqui, preso! Mas, se eu fizer isso, quem vai se fuder sou eu!

Maurício segurou o riso ao perceber de quem ele pedia para sequestrá-lo. Era o ápice do seu desespero, naquela situação toda.

- Tudo bem... Você tem razão, mesmo que eu odeie concordar. Mas, não tô mais aguentando ficar em casa! – Baixou os ombros, indo sentar na cadeira, totalmente derrotado.

- Olha só! – Se aproximou dele. – Eu tenho uma ideia, mas preciso que faça sua parte direitinho, como um verdadeiro ator!

Maurício ficou encarando-o, confuso.

- Certo! Vou explicar. Vejo pela sua cara que não captou a essência da coisa!

- E como vou captar qualquer que seja esta essência, se nem ao menos me deu uma dica! – Disse, apoiando as mãos no queixo.

- Você fica tão fofo assim...

- Fala logo, Guto! – Falou, tirando a mão dele de seus cabelos.

- Eu vou ter que ir embora daqui a pouco, então vou ser bem claro! – Se levantou, indo até a sacada, novamente. – É o seguinte. – Virou-se, de braços cruzados. – Amanhã, você vai tentar se matar!

- Eu vou o quê?!!!! – Berrou.

- Ei! Psiu! Quer chamar atenção da bruaca que tá nos espionando? – Sussurrou.

- Como que vou fazer algo assim, Augusto??

Guto, puxou o braço do encaracolado, para que este se aproximasse dele, cochichando:

- Você vai fingir, meu gatinho! Fingir! – Sorriu. – Vou falar com sua mãe, daqui a pouco, contando que você está extremamente depressivo. Como sei que ela vai querer falar comigo? Porque é óbvio que vai me fazer um interrogatório. – Riu, divertido.

- Continua. – Falou, já mais interessado.

- Se sua mãe ver você só no bagaço, com certeza vai ter um chilique e fazer com que o cancelado do seu velho tire você do quarto!

- Fingir que tentei suicídio? – Olhou-o incrédulo.

- É isso, aí! Você não está tomando uns "bagulhos" pra ficar calminho? Então!

- Não sei, Guto... – Falou, enquanto torcia os dedos.

Augusto se aproximou dele, enlaçando o braço por sobre o ombro do cacheado. Puxou-o para mais perto, depositando a mão na coxa do rapaz. Sabia que poderia até levar um soco, mas até lá, ia aproveitar o momento. Aproximou o rosto nos cabelos de Maurício, exalando o perfume suave do xampu que ele usava.

- Quer parar de fungar em mim, Guto? – Disse, se afastando.

- Caramba, Maurício! Eu só tava te dando um apoio moral! – Disse, afetado. – A pessoa nem pode ser simpática, que já é tratada como escória!

- Agora me diz quem tá fazendo drama?... Você está me enchendo, Guto! – Maurício gemeu, exasperado com tudo aquilo. – Estou concordando, só porque não vejo outra saída. Só não sei como vou fazer isto...

- Você vai pegar aquele frasco de calmante e jogar tudo no vaso sanitário, em seguida, coloca na boca um punhado de bicarbonato na boca e espera espumar, se joga no chão e finge demência! – Riu alto das próprias palavras. – Sou um gênio. Pode falar, eu sei!

- Que coisa mais ridícula! – Debochou o cacheado. – Nunca ouvi maior besteira em uma única frase! – Gargalhava.

- Nos filmes dá certo! – Caiu na risada, quando percebeu a bobagem que disse.

- Nos filmes, cabeção! Não acredito que isto saiu desta sua cabeça sequelada! – Ria, com a mão na boca.

Guto, com as mãos no queixo, deitado de bruços na cama, ia recrutar, quando a porta se abriu. De repente, a mãe do Maurício surgiu com as mãos na cintura e o semblante pesado.

- Seu tempo acabou, projeto de bandido. Vá embora!

- Mas, já?! - Falou, com as mãos no peito. – Eu nem vi o tempo passar!

- É! Mas já passou e o senhor já está de saída!

- Mas eu nem lanchei ainda, dona Letícia! – Disse, choroso.

- Guto? Por favor, não piore as coisas? – Maurício disse, chamando sua atenção.

Eles se entreolharam, cúmplices. Guto esperava que Maurício levasse a sério a sua ideia. Mesmo que tenha sido uma péssima, era a única que surgiu às pressas.

Tudo bem! – Fez um gesto de derrota, indo em direção a porta aberta.

- Obrigado pela visita, Augusto. Diga para a turma que também sinto muito a falta deles. – Fungou, choroso.

- Pode deixar, cara. Não fica assim, não. Logo você vai voltar pra faculdade, ok? – Segurou o riso. – Mesmo que seja com uma longa barba grisalha e roupas em frangalhos. – Falou, olhando diretamente para a mulher.

- Sem drama, garoto. Pode ir embora. – Disse, sacudindo uma das mãos.

Foi até o Maurício abraçando-o.

- Obrigado por vim me ver. – Falou o cacheado.

Virou-se para a mulher que, parada perto da porta, olhava para os dois estarrecida. Ele sabia que ela fora pega totalmente desprevenida e iria ficar com aquela pulga gorda atrás da orelha.

"E o Oscar vai para..." – Pensou, saindo do quarto, segurando a vontade de gargalhar.

Desceu as escadas, rindo. Lá embaixo, havia um dos seguranças parado, esperando para levá-lo até os portões da residência.

- Tá bom, tá bom! Não encosta! – Disse, desviando do segurança. – Já tô saindo, cara! Relaxa! Eu sei bem o caminho da rua!

Lá em cima, na sacada, Maurício viu quando o outro subiu na moto e desapareceu no fim do quarteirão. Augusto, o cara que tornou sua vida num inferno, agora era a única esperança de voltar a ter uma vida normal.

- Quanta ironia... – Sussurrou

- O que disse, meu filho?

Letícia, que ainda estava parada, olhava para a figura do filho, com o coração apertado. Já não suportava vê-lo assim. Sem viço, sem brilho no olhar, sem ouvir a risada dele pela casa.

Maurício virou o pescoço na direção da mãe, indo na direção dela, se deixando envolver pelos braços ternos da mãe.

- Nada, mãe. Nada... - Soltou um suspiro longo. - Eu só quero minha vida de volta, mãe. Já não me importa mais com Otávio. Ele sumiu e nunca mais ligou pra mim. – Baixou os olhos, se odiando por mentir.

- Eu vou conversar com seu pai amanhã e mostrar que já não tem motivos para mantê-lo assim. – Alisando as costas do filho, com carinho. – Preso, aqui! Quero te ver sorrindo e tendo uma vida normal, que todo jovem tem que ter! Roberto está passando todos os limites! – Falou, com a voz embargada.

Beijou sua testa, limpando em seguida, a marca de batom, com o polegar. Sorriu ao ver como seu filho era lindo.

- Eu amo você, meu anjo. Vou te ajudar, está bem? – Abraçou-o, novamente.

- Mãezinha... – Segurou as lágrimas. – Eu te amo.

Não queria seguir com o plano do Guto. Ele sabia bem que poderia deixar sua mãe em choque e até adoecer seu pai, com sentimento de culpa. E tinha a chance de levarem ele para um hospital e acabar descobrindo que tudo era uma farsa. A última coisa que desejava era criar mais mentiras e dor. Já estava cansado com tantas mentiras o cercando.

Faria do seu jeito. Daria um tempo, esqueceria Otávio, se fosse para o bem do loiro, como era desejo de seu pai, voltaria a estudar e se esforçar para ter sua independência.

De uma coisa ele tinha absoluta certeza. Faria de tudo para estar livre, ter um emprego, e assim, dar um jeito de reencontrar seu verdadeiro e único amor.

Levasse o tempo que fosse, jamais desistiria de Otávio.

(2485 palavras)

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