Eins

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— Vamos, você sabe que só vai melhorar depois que colocar seus pés dentro da água — Lara disse a Carol antes da sua amiga bufar, pois todos os dias era o mesmo drama.

Carol assentiu e prendeu sua respiração enquanto colocava seus pés inchados dentro de uma bacia de água com gelo para tentar minimizar a dor que sentia neles, pois por mais que usasse os saltos padrões todos os dias, eles ainda a machucavam — como se a odiassem sem nem ao menos terem motivos para fazê-lo.

As duas estavam reunidas no banheiro de seu pequeno e aconchegante apartamento, como elas sempre faziam quando Carol voltava do trabalho. O ritual era o mesmo. Todos os dias. Caroline Viana voltava do trabalho, irritada com a gorjeta, o trânsito e o vento, arrancando o elástico que prendia seus cabelos castanhos com raiva — as vezes estourando-o — para depois retirar os seus sapatos com lamúrias, de repente esquecendo-se da sua raiva para sentir apenas dor.

E era desta maneira que ela estava sentada no vaso sanitário fechado do banheiro e Lara, no chão.

A sensação da água gelada em contato com seus pés foi revigorante e dolorosa ao mesmo tempo, fazendo-a sofrer inicialmente para depois sentir um enorme alívio.

— Obrigada, Larinha — Carol a agradeceu, vendo que sua amiga não estava mais prestando atenção nela, e sim pintando suas unhas do pé de preto — preciso ligar para o Henrique e pedir desculpas por desmarcar nosso encontro — suspirou ela, frustrada.

Henrique era o melhor amigo de Carol até o dia, em uma festa em que os dois estavam definitivamente embriagados, que eles se beijaram. Depois daquele dia, eles tiveram a decência de ter uma conversa sincera e decidiram que ou eles jamais ficariam de novo para não destruir a amizade, ou eles fariam funcionar de qualquer maneira.

E estava funcionando.

— Carol — Lara resmungou enquanto limpava a borda de suas unhas — você tem que parar de marcar encontros depois do trabalho. Você está sempre com os pés quase em carne-viva e usa essa mesma desculpa.

— Não é minha culpa que os sapatos que me pedem para usar são máquinas de tortura medieval — ela retrucou, pegando seu celular enquanto sentia seus cabelos oleosos pelo calor do dia estavam grudados em sua testa.

Lara revirou seus olhos, rearrumando o seu coque no cabelo loiro para que ele não caísse e estragasse a pintura impecável que fazia em suas unhas.

— Você deveria chamá-lo para assistir um filme hoje — uma voz surgiu do corredor da casa das duas e Jaqueline apareceu com um prato de comida no batente da porta, garfando-o com vontade.

— Jesus! — Lara colocou sua mão em seu coração já acelerado.

— Olha, algumas pessoas continuam confundindo depois do meu último papel, mas eu ainda não transformo água em vinho. No entanto, sinto que estou perto — Jaque sorriu para as duas mesmo que estivesse ocupada demais mastigando.

— Você ainda não se limpou? — Lara questionou com um suspiro frustrado, pois ela sempre tinha que limpar a bagunça e sujeita de Jaque quando ela decidia visitá-las.

Jaqueline Frade deu de ombros, ainda com a maquiagem que havia usado para filmar uma cena da série que estava participando como figurante. Ela estava com a pele pintada de cinza, suas roupas rasgadas e alguns cortes falsos espalhados pelo seu corpo, combinando perfeitamente com seus cabelos castanhos completamente bagunçados e com lentes de contato brancas para esconder seus olhos negros.

— Ainda não tive tempo e estou morrendo de preguiça — ela argumentou, engolindo a comida que estava em sua boca — sabe quanto tempo demora para retirar essa tinta? Muito tempo.

— Pelo menos você está participando dos "Mortos não Falam" — Carol comentou, balançando seus pés que estavam dentro da bacia para fazê-los ter mais contato com a água e o gelo.

— Figurante — a moça maquiada apontou, pois ainda estava tentando crescer no mundo das produções nacionais, então aceitava todos os papéis que chegavam perto das suas mãos.

O mundo dos artistas era difícil, mas Jaque Frade não conseguia se imaginar em nenhum outro lugar.

— Aparece na minha televisão — Lara assoprou suas unhas e sorriu para suas amigas — o que temos para comer hoje?

— Augusta me deu as sobras da noite, não é muita coisa, mas está delicioso — Carol se animou, lembrando-se de como estava com fome, porém olhou para o prato de Jaque e a fitou — isso é, se nosso zumbi de estimação ainda não comeu tudo.

A atriz revirou os olhos, mas nada do que elas dissessem a faria parar de comer, pois ela havia passado o dia inteiro comendo maçãs e estava desesperada por carboidratos de verdade — ainda mais que Carol trabalhava em um restaurante refinado e sempre trazia comidas saborosas para casa.

A morena se levantou, retirando seus pés do balde e os enxugando no tapete do banheiro. Ela se olhou no espelho, vendo seus olhos castanhos cansados e derrotados, enquanto seus cabelos estavam grudados em sua pele como se tivesse passado cola nele — ela tinha que lavá-los imediatamente, senão provavelmente ela jamais conseguiria retirar aquele óleo.

— Vou esquentar as sobras — ela anunciou, indo até a cozinha do apartamento e colocado a lasanha de salmão de um dos embrulhos em um prato para colocar dentro do micro-ondas.

O interfone tocou e ela o atendeu, sabendo quem estaria do outro lado.

— Alô? — ela indagou, olhando para o horário e percebendo que meia-noite estava se tornando um horário aceitável para as pessoas chegarem ao seu apartamento. Pelo menos elas ainda estavam acordadas.

— Julia! — a outra pessoa berrou e Carol apertou o botão para abrir a porta, liberando sua entrada.

Julia Mayer era amiga de Jaque da época em que ela havia feito intercâmbio por um ano na Alemanha e as duas nunca perderam contato desde aquela época. Então, para a surpresa de ninguém, quando Julia conseguiu uma bolsa de estudos para um mestrado sanduíche no Brasil, fez questão de que sua bolsa fosse na universidade mais próxima de Jaque que conseguisse — sorte a dela que o campus de medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, que ela iria estudar, ficava na ilha de Florianópolis, então o apartamento de Carol e Lara em São José não estavam tão distantes quanto parecia. Muito menos o de Jaque e Julia, que ficava ao lado da universidade.

E o nome dela se pronunciava "Yulia", por ser alemão, mas ela era simpática demais para corrigir as pessoas que o pronunciavam errado.

Pouco depois, a porta do apartamento se abriu e a alemã entrou, colocando sua mochila no chão com um baque intenso pelo peso — elas tinham uma teoria que Julia carregava o corpo do seu último orientador ali dentro, pois ele desapareceu um dia e nunca mais voltou depois de discutir com ela, porém se nem Jaque teve coragem de perguntar, era porque aquilo estava muito próximo de ser verdade.

— Perdão pelo horário, mas o ônibus estava completamente atrasado — e ela falou algo estranho em alemão, entrando na cozinha e inalando com profundidade — eu amo a casa de vocês. Gut riechen. Cheira bem — ela abanou o aroma para mais perto do seu nariz.

— Você não precisa dizer isso sempre que vem aqui, não é pedágio — Carol se brincou, pois isso era um fato recorrente.

As quatro eram criaturas do hábito, suas rotinas entrelaçando-se uma com a outra em um nó sem fim para que elas adoravam tecer.

Lara e Carol dividiam aquele apartamento há quase três anos desde que o conseguiram por meio de uma amiga da mãe de Lara que tinha um tio-avô que não usava o imóvel há anos. Mesmo sendo em São José e não em Floripa, as suas amigas se apaixonaram por ali tanto que era o local oficial de elas se reunirem, principalmente por ser na Beira Mar, com uma vista incrível pra ilha e a Ponte Hercílio Luz. Já Julia e Jaque moravam em um apartamento que era praticamente dentro da UFSC de tão perto que era — o melhor era que nenhuma delas era manezinha. Ou se quer sulista.

Carol, Lara e Jaque eram de São Paulo, Capital, porém prestaram o vestibular no mesmo ano para UFSC — atualmente só Caroline estudava na universidade naquele momento, mas isso não impediu ninguém de continuar pertinho da Ilha da Magia.

Lara era fotógrafa profissional e Jaque estava seguindo seu sonho de atriz. No entanto, as três continuavam tentando e fazendo de tudo para estarem juntas. Principalmente depois que Rachel se mudou para o Rio.

— Pode pegar um prato e se servir — Carol ofereceu, pegando seu prato do microondas e o levando até a sala, onde encontrou Lara sozinha — Jaque foi tomar banho?

— Sim, finalmente — ela franziu o cenho, ligando a televisão para assistir o mais novo episódio de Suits — ela bem que poderia trabalhar em uma Suits brasileira. Roupas lindas e uma série inteligente, mas não. Ela quer zumbis, vampiros e lobisomens.

— Gosto não se discute e ela gosta disso desde o colégio — Carol defendeu sua amiga.

Jaque desistiu de fazer uma faculdade de administração para correr atrás dos seus sonhos e ela a respeitava por isso, pois se era aquilo o que ela sonhava fazer, então, como sua amiga, ela deveria entregar total apoio e ajudá-la a chegar lá.

Julia se sentou no canto do sofá que havia sobrado, assistindo a série com elas, mantendo-se em silêncio — algo que Lara e Carol já haviam aprendido a interpretar que ela não queria falar do seu dia, então elas não a forçaram a falar sobre suas pesquisas. A alemã estava fazendo seu mestrado na UFSC com enfoque em biomateriais que poderiam substituir órgãos na hora de transplantes, porém ultimamente seus experimentos mostravam que o compósito de matriz polimérica com fibras de cerâmica era caro e incompatível.

Ou pelo menos era isso o que Carol se lembrava que ela a havia explicado no mês anterior, quando começou pela terceira vez sua tese.

Depois de um tempo e alguns palavrões aos quatro ventos, Jaque saiu do banheiro com a pele avermelhada e um olhar raivoso, reclamando da qualidade da tinta que tinha que ser mais fácil de ser retirada, pois era quase como se sua pele tivesse sido coberta por uma caneta permanente.

Ela se sentou em uma das poltronas do lado do sofá, seu lugar de sempre, fazendo com que Carol olhasse para a poltrona que estava sobrando.

— Alguém falou com Rach essa semana? — ela indagou, olhando para suas amigas e vendo a foto que estava em cima da televisão.

— Ela anda ocupada esses últimos dias, pois precisa criar um novo personagem para Liga-Mega-Importante e ela ainda não tem uma ideia muito boa — Lara respondeu sem retirar seus olhos do Harvey Spector.

— Ela conseguiu o sonho, não é? — Jaque pensou em voz alta e todas concordaram silenciosamente.

Rachel Pereira Mello, desde o colégio, tinha talento para desenho e uma imaginação invejável, então assim que pôde ela mandou seus desenhos para a QuadRio, uma das maiores revistas em quadrinhos de heróis do Brasil, e esperou o dia em que eles a chamaram para se juntar ao time deles, fazendo com que ela se mudasse da Terra da Garoa para Rio 40 Graus, mais conhecida como Praia Botafogo 1568.

Ela ainda era amiga das garotas, porém com a distância e o os horários loucos, as conversas estavam ficando mais distantes, mais superficiais, mais raras.

Carol continuou olhando para o a foto, vendo cinco sorrisos deslumbrantes no baile de formatura delas, três anos antes — Julia havia comprado uma passagem antes mesmo de se mudar para o Brasil apenas para ir naquela comemoração, pois Jaque disse que não conseguia se imaginar formando sem sua amiga alemã.

Caroline Viana, Lara Novartis, Jaqueline Frade, Julia Mayer e Rachel Pereira Mello.

Esse quinteto era para durar para sempre, mas a morena só conseguia se sentir mais distante, como se elas estivessem prestes a se afastar.

O seu celular tocou e ela viu uma mensagem de Henrique, perguntando quando eles poderiam se encontrar.

Ela olhou para a poltrona vazia e suspirou, digitando sua resposta.




A/N:

Me senti a mama noel agora com este presentão de natal, mas o que posso dizer? Eu acho que o espírito de fim de ano se apossou de mim (e de todas as 100 páginas já escritas no word), então decidi compartilhar com vocês o que lhes espera!

Espero que gostem deste primeiro capítulo e que deem uma chance as minhas meninas de cativarem seus corações!

Este capítulo, como todo bom primeiro capítulo de minhas histórias, é bem introdutório, então ele não possui um norte ainda do que vocês devem esperar da trama, porém ele apresenta as 5 e mostra como é a dinâmica delas (algo que eu A-M-O!)

Enfim, feliz natal e um ótimo ano novo (BOAS FESTAS!!!!!!!!!!!!!!)

Beijinhos, nos falamos em 2017 <33

ps: Sim, sou ruim e ainda não estou entregando posts frequentes, então, por favor, entendam que isso aqui é um PRESENTE DE NATAL hehehe :DD


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