V | Por Ela e Por Ele

Primavera de 1913

As seis devotas de Chiara andavam juntinhas na calçada, tão próximas umas da outras que pareciam ser almas-irmãs - talvez, realmente fossem.

As conversas velozes e sussurradas cessaram quando a Casa de Poções Burcu aproximou-se. Uma casinha tão excêntrica e tão encantadora e tão doce, parecia ter saído de um livro de contos de fadas. As paredes da casa eram de pedras róseas, um tanto incomuns, o telhado de chalé era coberto por grama florida, a cerquinha de madeira era entrelaçada por hera, roseiras amarelas e flores-de-mel. O jardim da frente, exuberante, havia todas as flores que poderiam ser imaginadas, versões selvagens, folhagens exóticas, plantas carnívoras - belo e espantoso.

"É aqui? Que lugar lindo!", Delfim estava quase em êxtase.

"Sim, minha mãe só compra poções aqui. A feiticeira Alzira é muito gentil. Esse é um lugar seguro para conseguirmos o que precisamos para a noite de hoje", afirmou Malika.

"É realmente especial!", Salete concordou.

Ao entrarem, a surpresa voltou - o teto era repleto de galhos de árvore suspensos com flores e ervas amarradas de ponta-cabeça a secar, haviam armários com diversos potes de vidro, de ervas e frutas secas, especiarias, pimentas, nozes e sementes. No canto, havia uma biblioteca de Magia, altas estantes com livros abarrotados; Também, prateleiras com coloridas poções, sabonetes e velas artesanais, chás, licores, xaropes, óleos, cigarros de palha e cremes. Ademais, um perfume suave mas inscrito habitava a casa.

Ao fundo, janelas de vitral hiperbólicas preenchiam a parede; A forte radiação solar da tarde criava uma atmosfera etérea ao colorir-se nos vidros - elas perderam o fôlego por um instante.

"É, definitivamente, muito mais bonito que as do centro, nada parecido com uma farmácia", Anelise cochichou para Mali.

De costas, uma idosa em frente a uma extensa bancada misturava líquidos em um pequeno caldeirão. O cabelo era de um branco nevado, preso num coque alto com dois palitinhos e envolvido por um lenço violeta. Naquele segundo, virou-se - seu sorriso esbanja gentileza e jovialidade, excessivamente destoante no longevo rosto. Corpo envelhecido, alma moça.

"Boa tarde, meninas! Procurando o quê?", voz de senhora, eloquência de poeta.

"Muitas coisas, Dona Alzira... No geral, poções", Mali respondeu.

"Ah!, Malika, são amigas suas? Venha cá, vejamos que tenho!"

"São, sim! Olha, precisamos de nuvens de fumaça colorida."

"Isso é mais simples... Mas e as outras coisas, queridinha?"

"Poções que nos façam parecer mais velhas, tanto os rostos quanto as vozes", apressou-se Lise.

"Maravilha!, você é direta... Já sei, eu finjo que sou vocês, que tal?", uma risadinha arranhada escapou pelos lábios tingidos de batom laranja.

"Senhora,... com todo o respeito que tenho, eu digo que a senhora não é tão velha assim - seu coração é jovem", veemente, disse Odete.

muita gentileza, meu bem! Oxalá não perder este coração meu... Bem, vamos acelerar. Essa poção se chama Vetus Facies, tenho algumas já preparadas. Quantas são?"

"Seis frascos", Delf respondeu.

Alzira foi até a cristaleira cantarolando algo numa língua forasteira, pegou seis vidrinhos de poção azulada. Quando os colocou numa cestinha de palha Marj uniu-se no refrão:

"Fais dodo, Colas mon p'tit frère. Fais dodo, t'auras du lolo."

Suas irmãs juntaram-se.

"Jovenzinhas que conhecem essa cantiga!", exclamou a idosa.

"É francês, certo? Papai nos fazia dormir com essa música. Até hoje, uma das memórias mais latentes da infância", disse Marjorie.

"É, sim. O meu também!", disse a feiticeira.

"Dona Alzira, a senhora não quer saber para que precisamos dessas poções?", perguntou Salete.

"Sali!", bronqueou Marj.

"Mais ou menos... Até estou curiosa, mas evito ser intrometida, flor", Alzira lançou um breve olhar para Marjorie.

"Pretendemos deter um feiticeiro criminoso esta noite, sozinhas. Sei que a senhora não questionará isso", Mali disse, ansiosa.

Um lampejo de melancolia atravessou a face sorridente da velha. Um efêmero silêncio recaiu sobre aquela atmosfera.

"Sei que é o assassino da mãe das Saidi."

"A senhora nos conhece!?", o susto consumiu Delf.

"Claro, as senhoritas são filhas de Romeo Saidi."

"Como a senhora sabe que ele a matou?!", questionou Sali.

"Muitos anos atrás, fundei a associação da qual a mãe de vocês fez parte. Quando cresceu, apenas assisti aos jovens que a mantiveram... Às vezes, culpo-me, lamento tanto, tanto, tanto... "

As mãos calejadas e magras da senhora, apesar dos anos, tinham a delicadeza das fadas - pelo menos, foi a impressão tida por Malika ao tocá-las.

Repentinamente, Alzira exclamou:

"Rah!, amanhã é o aniversário de morte de Chiara!... Vocês planejam uma vingança!"

Pesarosas de culpa, elas encararam a feiticeira.

"É um tanto difícil explicar isso... contudo, temos uma justificativa... ", Lise começou.

"Não, não... Não preciso de motivos. Nada vocês me devem. Eu as devo. Não precisam pagar pelos produtos, além disso posso vos aconselhar. Venham, por favor."

Sentadas ao lado de uma ampla horta, as mulheres bebericavam chá nas poltronas.

"Garotas, creio que tenham pesquisado sobre aquele homem e, se tiveram tido contato com ele, entenderão quando digo que é um grande tolo."

As meninas gargalharam.

"É, e como sabemos!", disse Sali.

"Vejo que conhecem o senhor... Senhoritas, vocês vão usar a fumaça para se esconder; Marjorie e Anelise pretendem adormecê-lo com um encanto; E poções para o disfarce. Como irão fazê-lo entregar o cajado?"

"Primeiro, usaremos a fumaça. Sem que o homem nos veja, faremos o feitiço, pegaremos o cajado e esconderemos. Na verdade, a troca é um subterfúgio para garantir que bruxo leve-o. Acreditamos, a partir das pesquisas, que ele o utilizou para assassinar todos da associação e - além disso, ele o furtou do mago que comprou- o num leilão. Jamais usaremos nele", esmiuçou Lise.

"Tem uma falsa varinha para transmitir confiança?"

"Delfim esculpiu uma muito boa! Trouxe-a para que desse opinião. Veja!", disse Malika.

"Mármore!?, igual a original! Ótimo usar o mesmo material, está linda, a pintura está magnífica também. Azul, preto, dourado. Você é talentosa, menina!"

"Muito obrigada, Dona Alzira!, é uma das coisas de que mais gosto", corada, Delfim respondeu.

"Sinto dizer, mas é muito arriscado. Não posso impedi-las, já se decidiram...Só que, queridinhas, vocês estão lidando com um hábil feiticeiro. É sempre com a magia que contamos - porém, também é com a qual nunca nos preocupamos e, devemos. Vocês não podem ser vistas, nem deixar passar o efeito da Vetus Facies...só dura uma hora. Ouvidos e olhos atentos!; O trabalho de vocês é clandestino! Outra coisinha: quando forem fazer justiça, não esqueçam da compaixão."

Na calmaria, retornaram à casa - com tristeza, viram o pai.

Um mar de lágrimas em seu escritório, o homem desabava, desfazia-se em choro e soluço. Viúvo que não se aceitava, luto que não abandonava. Deixar o amor ficar e expulsar o apego? Amar sem carência? Ele nunca aprendeu; Será que, um dia, conseguiria?

No peito, latejava a dor eterna. Graças a Deus, haviam quatro meigas meninas, com feições de sua amada - que ao abraçarem-no fizeram com que notasse: logo seriam mulheres; Num momento, as gotículas secaram - ele cuidara bem delas.

Ao cair a madrugada, as garotas ficaram de prontidão. Mali e Odete passariam a noite em Flavo Rosis, Juan estaria adormecido em sua cama. Em realidade, estavam todos desacordados, pelas ruas de Soraia; como refúgio: mantos negros e o crepúsculo.

No Beaufay Parque, sucedeu-se tudo. Ele estava lá; O encontro face a face foi um assombro, afinal nunca o tinham visto - muito alto, muito magro, silencioso, como um pinheiro. Um pesado casaco branco o encobria, seu cabelo era uma desordem sob a cartola - na mão, o Cajado Aramis.

Que estranhas eram aquelas jovens! Crescendo ainda, quase-mulheres com seus falsos rostos adultos. Somente o garoto não seria notado; escondeu-se entre as árvores, esperando o instante de escalar.

"Olá, olá, senhoras! Que expressões ingênuas e amedrontadas para um coven tão experiente!", disse o Feiticeiro, chiando.

Nada se ouviu - viu-se apenas a primeira nuvem de fumaça, um azul profundo, um odor terrível. Era a consumação.

Foi possível observar um garoto pulando de uma árvore; um homem esmagado; um cajado sobre a grama; uma mão salteadora - mas, em seguida, um jovem ferido.

Mais fumaça, essa era branca - como aquela que esfriara uma família, umas famílias, tempos atrás.

Logo após, uma canção em grego, entoada por duas gargantas, uma aguda, outra grave. Narravam o conto do repouso. Entre sete despertos, um em sonolência.

Entretanto, as confidentes estavam um tanto entorpecidas pela inquietação e ansiedade, não viram o irmão caído. Juan estava encolhido grama, as mãos no rosto - a face dourada fora maculada de vermelho.

"Juan, Juan! Que houve?!", amargurou-se Lise.

"Ele me estapeou!", havia raiva em sua voz.

"Perdão, Juan! Juro que não eu pensei que ele fosse conseguir revidar", Mali desculpou-se.

"Não, tudo bem... Sei que não era essa sua intenção, foi um boa ideia."

Todas olhavam tristemente para a expressão do amigo.

Anelise ajoelhou-se ao lado dele, abaixou o capuz - então, suas duas mãos seguraram o rosto dolorido de Juan e seus lábios beijaram sua bochecha, com leveza. O rosto do menino contorceu-se - porém, não de dor - o toque dela o sensibilizara. Ele apenas olhou com gratidão os dois sóis que o encaravam com tanta compaixão. E cochichou: "Obrigado."

Ela levantou-se e lhe entendeu a mão.

"Vamos! Temos que ir logo, se não, seus rostos serão reconhecíveis", disse Juan.

"É melhor, sim... Mas... alguém pensou em como carregaremos um corpo desse tamanho até a delegacia, com rapidez?", respondeu Delf.

A decepção tomou conta dos jovens.

"Nossa!, somos mesmo apenas sete crianças bancando as justiceiras, não é?", o sorriso zombeteiro de Odete disse.

Malika e Marjorie começaram a rir - as árvores também, as reverberando.

"Creio que sejamos... ", assumiu a primogênita.

"Mas crianças tem mais energia!", apontou Salete.

"E mais otimismo!", completou Delfim.

"Com isso, sem dúvidas, chegaremos a uma solução!", disse o garoto, por fim.

As dríades do parque ecoaram - sete risos diferentes.

Após um pausa, Lise manifestou-se:

"Podemos levitar o corpo. Dará certo, três de nós sabem fazer isso, é pesado, mas se nos concentrarmos... "

"Tentemos", disse Odete.

Juan segurou uma mão de Lise, que segurou uma de Odete. De braços erguidos e olhos cerrados, proferiram:

"Levante, levante!, o que tenho adiante! Carregue no ar, sempre a planar!"

Uns arfaram, outros seguraram o fôlego - o corpo do Feiticeiro flutuou a meio metro do chão.

Com olhos arregalados, os três sorriram. Juntos, recitaram o contra-feitiço:

"Solte o que carrego, doravante sossego!"

"Então, posso? Quero tanto fazer isso... ", receosa, perguntou Delf; ela tinha o cajado em mãos. "Esconda-se."

A cena foi deslumbrante - o cajado metamorfoseara-se, de um longo bastão de madeira retorcido para uma névoa branca e fria que envolvia Delfim numa aura nebulosa.

Os confidentes seguiram o caminho até a delegacia. Os três repetiram o feitiço.

Ao chegarem, o deixaram encoberto nas sombras; agarrado ao cajado e a uma rosa amarela do jardim da Feiticeira - a favorita de Chiara, a planta que dera nome à casa. Em suas mãos, um bilhete - sem assinatura, mas com a caligrafia de Salete; nele, o antigo nome e o atual do Feiticeiro, junto com todos os crimes que havia cometido e as respectivas datas. A acusação fora feita.

Na casa dos Saidi, Juan fora o primeiro a despedir-se. Lise ele abraçou por último. Afastou-se lentamente de Flavo Rosis, a observá-la, rindo com as outras, mais reluzente que a Lua Cheia que iluminava aquela noite. Teve de confessar: Anelise era a menina de seus olhos - literalmente - ele não perdia-se em ninguém mais. Em breve, o momento de fazer algo sobre isso viria.

Ao adentrarem a casa, passaram pelo quarto do pai. O senhor dormia sereno, solitário em uma cama de casal. Algo em sua alma o acalentou na madrugada; era a sensação de que sua amada estava feliz, exultante. No dia seguinte, leu a carta de Chiara - a ferida no peito cicatrizou antes do esperado.

Ela estava feliz! Não, puramente, pela certeza de não ter seu assassino nas ruas - e, sim!, pela certeza de que suas filhas, que assistia com toda a ternura, haviam crescido. Isso era tudo que o casal, desde jovem, desejara - a morte efetivara a paternidade.

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2.021 palavras.

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