Capítulo 4 - Entrando numa fria
(2339 palavras)
Rei Tritão/Ash ON
No momento em que ela entrou no salão, desconfiei que se tratava de alguém diferente. Quando pronunciou suas primeiras palavras, tive a certeza. Não, ela não era diferente por ser extremamente inteligente com uma língua afiada ou por ter uma beleza que eu nunca havia visto no reino durante todos esses anos. Na verdade, eu nem sabia ao certo o que a tornava tão diferente e tão... misteriosa. Era como um enigma, mas nem mesmo eu conseguia encontrar a solução.
Assim que a segurei quando ela começou a pedir que não a matasse, fiquei assustado. Mas quando a vi desmaiar em meus braços e eu carregá-la, fiquei completamente em choque. Há muito tempo não ficava tão próximo assim de alguém. Desde a morte de Ariela, proibi todos no reino de me tocarem e, por algum motivo, ali estava eu, depois de cinco anos sem tocar ninguém, vi-me segurando aquela sereia estranha pela segunda vez em menos de 15 minutos.
Eu queria soltá-la imediatamente. Sentia-me sujo por tocar outra que não fosse Ariela, mas não podia deixar a moça desacordada no chão, era uma questão de cavalheirismo e sempre me considerei um cavalheiro. Perdoe-me, Ariela. Prometo que esta será a última vez que tocarei uma sereia que não seja você.
Com esta promessa em mente, finalmente cheguei a um dos aposentos de hóspedes do castelo e deitei a enviada de Karpata na cama. Talvez a culpa seja minha por ela estar assim, devo tê-la assustado com tamanha arrogância e superficialidade.
- Sinto muito por assustá-la mas é assim que sou. -sussurro observando-a desacordada- Os rumores tinham sua parcela de verdade. Não é por que não matei milhares de seres que não sou um monstro, você estava errada, eu sou sim um monstro...
Felicity ON
Eu estava sem saída, definitivamente. No momento em que o rei me deitou em uma cama, não sabia se fingia que estava acordando ou se continuava desmaiada para sempre evitando todas as perguntas e questionamentos que poderiam surgir. No momento, a segunda opção era a melhor. Então ouvi a voz do rei sussurrar:
- Sinto muito por assustá-la mas é assim que sou. Os rumores tinham sua parcela de verdade. Não é por que não matei milhares de seres que não sou um monstro, você estava errada, eu sou sim um monstro. -sussurro.
Ai senhor, como que finge demência diante desse ser tão amargurado? Finjo uma crise de tosse e abro os olhos lentamente.
- O que... O que aconteceu? -pergunto com voz fraca.
- Você desmaiou, como está se sentindo? -ele pergunta se aproximando.
- Um pouco tonta... Como cheguei até aqui?
Na boa? Eu sou uma ótima atriz! Merecia um oscar por essa atuação impecável. Estou enganando o rei dos mares, isso não é pra leigos não!
- Eu te trouxe. -ele fala com a voz ainda mais amargurada.
- Sinto muito. -falo sinceramente.
- Sente muito pelo quê?
Isso é sério? É óbvio que ele não queria ter me ajudado, deve ter sido uma vergonha um rei segurar em seus braços uma simples sereia sem eira nem beira.
- Por ter sido preciso que me ajudasse. Da próxima vez, se houver, peço que deixe-me no chão.
- Por que está dizendo isso? -ele pergunta, desta vez demonstrando confusão.
- É óbvio que está arrependido do que fez, posso ouvir isso na sua voz, deve ter se sentido envergonhado.
- Não é bem assim...
- Não precisa tentar negar, está tudo bem. Você é o rei e eu sou apenas sua súdita, é totalmente compreensível.
- Isso não tem nada a v...
- Um rei não da explicações e eu sei bem qual é o meu lugar.
- Por que você nunca deixa que eu termine minhas frases? -ele me fuzila com os olhos.
- Eu...
- Precisa aprender a se controlar, nem todos da realeza são tolerantes como eu. -ele fala firmemente.
Mas que droga! Mais uma vez minha boca grande e eu o irritamos. Sinceramente, isso deveria me deixar em pânico, mas estou aliviada. Quer dizer, se ele quisesse me matar, já teria matado e, a cada segundo que passa, tenho mais certeza de que por trás desse coração de pedra existe uma manteiga derretendo. E como é mesmo aquele ditado? "Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura"! É isso aí! Se eu quiser mesmo fazer com que ele me ajude, preciso dar uma forcinha pra quebrar esse coração de pedra e libertar o de manteiga.
- O senhor tem toda a razão, é mesmo um rei muito sábio. -falo.
- Você pode acabar se dando mal se agir desta forma com qualquer outro membro da corte e... Espera, eu sou o quê?
- Um rei muito sábio -repito.
Ele franze os olhos para mim desconfiado e a porta do quarto é aberta bem na hora. Observo enquanto um Tritão roliço, digo, com excesso de gordura no corpo e cabelo grisalho entra no quarto e faz uma reverência para o rei.
- Vossa Majestade! Como está?
- Eu estou bem, Marcus. O problema é com a enviada de Karpata... Aliás, qual é mesmo o seu nome? -Ele pergunta para mim.
E agora? Será que eu falo a verdade ou acrescento uma mentirinha a mais na minha lista? Acho que não tem problema algum dizer o meu nome de verdade, então opto por essa alternativa.
- Felicity. Me chamo Felicity Burnett.
- Felicity teve um desmaio repentino -o rei fala.
- Um desmaio repentino?
O médico se aproxima e começa a me examinar e fazer perguntas.
- A senhorita por acaso tem passado por períodos de estresse, ansiedade ou medo?
- O senhor não faz ideia! Pode anotar os três, tudo junto e misturado! -respondo automaticamente.
O médico ri e me dá tapinhas nas costas.
- Então está explicado, aparentemente não tem nada de errado com você e sua saúde, mas precisa urgentemente acabar com o que têm te causado estresse pois pode agravar seus sintomas.
- Sim senhor. -respondo.
Se ele soubesse o quanto é impossível neste momento acabar com meu estresse, ele me prescreveria um rivotril!
- Muito bem! Qualquer coisa que sentir de anormal, pode me contatar que estou à disposição!
Será que isso serve para a sensação de coceira nos pés mesmo quando eu não tenho mais pés? O médico se vira, faz outra reverência e vai embora, deixando-me novamente a sós com o rei.
- Bem, como você viu, não há nada com o que se preocupar. Estou perfeitamente bem! -falo.
- Quero que descanse por hoje, deve ter feito uma longa viagem até aqui. Este quarto será seu pelo tempo que ficar aqui. Mais tarde mandarei alguém para trazer seu jantar e te mostrar os principais cômodos do castelo, especialmente a biblioteca e a sala de poções. Se precisar de algo basta gritar que alguém aparecerá.
O rei pronunciou essas palavras de forma cordial e sucinta, sem rodeios nem sorrisos. E, com isso, saiu rapidamente do quarto. Levantei-me da cama e comecei a "andar" pelo quarto buscando uma solução para minhas mentiras e meus problemas. Eu estou, com toda certeza e assombração, numa fria.
Após algum tempo, ouvi uma batida na porta.
- Pode entrar -falo.
Uma sereia de provavelmente 16 anos entrou no quarto trazendo consigo um prato com algo dentro e uma bolsa com roupas. Ela era morena e tinha grandes olhos de cor chocolate. Seu rosto tinha traços delicados e suaves, parecia muito doce de forma que logo me identifiquei. Ela sorriu para mim e falou:
- Eu sou Melody, senhorita. O rei me encarregou de ser a sua criada durante o tempo que permanecer aqui. Eu trouxe o seu jantar e algumas roupas pra você se vestir.
Com roupas ela quis dizer somente a parte de cima, ou seja, alguns tops coloridos.
- A senhorita gostaria de mais alguma coisa? -ela pergunta.
- Obrigada Melody, pode chamar-me Felicity. Você poderia me mostrar a biblioteca depois que eu terminar minha refeição?
- É claro senhorita! -ela sorri.
- Sem senhorita, só Felicity -sorrio.
- Está bem senhori... Quero dizer, Felicity.
- Ótimo! O que tem nesse prato?
- É uma sopa de algas.
Sopa de algas? Faço uma careta de desagrado e Melody ri.
- Como você desmaiou, o médico sugeriu que comesse algo mais leve.
- Bem leve pelo visto -reviro os olhos.
Pego o prato da mão dela e começo a comer à contragosto. Bom, é melhor comer essa gororoba do que ficar com fome. Assim que termino, levanto-me e digo:
- Partiu biblioteca?
- Partiu... O que? - Melody pergunta confusa.
Esse povo do mar parou no tempo? Não entendem gírias?
- Quis dizer se podemos ir para a biblioteca?!
- Oh sim, é claro!
Ela abre a porta para mim e me guia por alguns corredores até chegarmos à biblioteca. Assim que adentro fico boquiaberta. Essa com certeza é a maior biblioteca que já tive a oportunidade de conhecer! É como um sonho realizado para uma leitora assídua! Sinto que sou capaz de chorar nesse momento.
- Melody é lindo! -falo embasbacada.
- É mesmo. Ninguém vem aqui há anos...
- Porque não? Como podem desprezar este lugar assim? -questiono chocada.
- Bom, o Palácio não tem mais vida desde que a princesa Ariela morreu. Ninguém mais se interessa pelas histórias dentro desses livros pois não passam de contos de fadas e todos sabem que nem sempre o bem vence o mal e o príncipe não vive feliz para sempre com sua princesa -vejo tristeza em seu tom de voz.
Será que todos aqui foram contagiados pela amargura do rei?
- Isso não é verdade Melody.
Pego nas duas mãos dela e a faço olhar para mim assustada pelo meu gesto.
- Coisas lindas acontecem quando nos permitimos seguir em frente diante de situações dolorosas. A história só não tem final feliz quando paramos o livro na página que nos feriu. Mas se você permitir que existam novas páginas, um novo futuro também haverá. Os contos de fadas não são feitos somente de momentos bons, são repletos de lutas e tristezas e só no fim é que a felicidade reina. Se ainda existe tristeza, é porque ainda não chegou ao fim.
Uma lágrima escorre dos olhos de Melody e ela seca com o dorso da mão rapidamente.
- Me desculpe -ela pede.
- Você não tem motivos para se desculpar -eu a abraço e ela parece ter se petrificado.
Quando me afasto, ela me olha com extrema admiração.
- Você é diferente... -ela fala- De um jeito bom! -acrescenta rapidamente sorrindo.
- Então acho que isso é bom -sorrio.
- Ninguém nunca falou comigo assim antes, de um jeito tão sincero. E você não deveria abraçar uma criada! -ela fala me repreendendo.
- Ora e porque não? -pergunto com a mão na cintura.
- Porque eu sou apenas uma criada e você é a enviada de Karpata! Você está em um status social que jamais vou conseguir chegar!
Se ela ao menos imaginasse que Karpata não faz ideia de quem sou e que eu não passo de uma farsa, ficaria admirada por outro motivo!
- E quem é que liga pra status? Somos todos seres human... Quer dizer, somos todos seres iguais, esse negócio de status é uma bobagem. Comigo, você pode ser quem você quiser ser!
- Felicity... Você é tão boa...
Antes que Melody terminasse sua frase, uma mulher entrou chamando-a.
- Melody, está na hora do toque de recolher.
A mulher era uma sereia gordinha e bem mais velha, era possível ver algumas nuances de fios grisalhos em sua cabeça. No entanto, pude observar que não fosse o fato da idade, parecia-se muito com Melody.
- Essa é a minha mãe, tenho que ir agora. Na verdade, o toque de recolher é para todos, gostaria que te levasse de volta para seus aposentos? -ela pergunta solícita.
- Obrigada Melody, mas já aprendi o caminho. Você pode ir, pegarei um livro e logo voltarei.
- Está bem, por favor não demore, o rei odeia quando as regras são desobedecidas -ela diz com preocupação.
Eu concordo e ela caminha em direção à mãe que me olha desconfiada e acena com a cabeça.
- Tenha uma boa noite, senhorita.
Ela diz cordialmente e as duas vão embora deixando-me sozinha na biblioteca. Toque de recolher... Que merda é essa? Nós vivemos em um país livre, não podem obrigar as pessoas a ficarem trancadas em suas casas, o livre arbítrio vale para todos!
Começo a caminhar pela biblioteca em busca de livros de magia e feitiços. Já que estou sendo obrigada a ficar aqui até encontrar a fórmula da ressurreição, é bom começar a pesquisar. Qual é o problema com esse rei? Eu não sou Jesus Cristo para ressuscitar os mortos!
Caminho pelas diversas prateleiras e corredores até encontrar os livros sobre feitiços. Pego alguns sobre feitiços de amor e caminho em direção à porta para voltar ao meu quarto. Quando chego até ela, percebo que está fechada. Por favor não esteja trancada, por favor não esteja trancada... Faço uma oração mental e puxo a maçaneta só para me deparar com a mesma trancada. Droga! Por que tudo acontece comigo? Bato na porta com o punho fechado e grito.
- Olá, será que alguém pode abrir a porta? Ainda tem alguém aqui dentro!
Sem resposta. Bato novamente.
- Alguém por favor! Estou presa aqui dentro!
Não ouço som algum, nem uma mosca! Até porque seria improvável uma mosca embaixo d'água mas vocês entenderam. Bom, se ninguém vai abrir a porta para mim, então vou arrombá-la! Isso aí! Pego uma cadeira de madeira e a inclino na direção da porta. Afasto-me um pouco para pegar velocidade e conseguir mais força. Assim que alcanço distância o suficiente, começo a correr com a cadeira à minha frente. Faltando menos de meio metro para acertar a porta, alguém a abre e eu acerto a pessoa em cheio derrubando-a no chão junto comigo e a cadeira.
- Ai minha coluna! -grito caída em cima do ser gigante que derrubei.
Quando olho para cima para ver quem foi a minha vítima, sinto o sangue se esvair do meu corpo. Essa não! Por que tudo acontece comigo?
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