2. Facas e estrelas
Tatiana
Ainda bem que eu investi no Sugar Love antes de vê-lo funcionando... Porque se eu tivesse lido o modo como alguns desses caras se descrevem antes de assinar o contrato, a ideia da Pamela nunca teria saído do papel e essa é a verdade.
Escuta isso:
Aaron Mckinney. 21 anos.
Sobre você: Sou jovem, mas tenho jeito e porte de homem.
O que está buscando: Roupas caras.
Aaron incluiu muitas fotos, e eu te prometo: ele não tem jeito nem porte de homem. Parece um jovem mal saído da adolescência.
Lucas Valby. 24 anos.
Sobre você: (Não preenchido. Sério, Lucas? Não conseguiu formular nem uma única frase completa?)
O que está buscando: Passar uma noite em Paris. Você vai adorar.
Já sentiu seus olhos revirarem com tanta força que eles se enfiam na nuca e seguem girando até voltar pra frente só pra ter o gosto de se enfiar na nuca de novo?
August Woods. 47 anos.
Sobre você: Modelo publicitário, atlético. Sei como guiar uma conversa e manter uma dama entretida.
O que está buscando: Um valor mensal para que eu possa investir como preferir. Mas uns presentinhos também são bons, não é? Haha. Procuro uma mulher que cuide de mim.
Eu não quero soar baixa, mas pelas fotos do August, eu duvido que ele seja modelo.
Taylor Becker. 25 anos.
Sobre você: Cantor.
O que está buscando: Alguém para cobrir os custos da gravação do meu primeiro álbum, dois assistentes, equipe de Relações Públicas e agência de marketing. Contrato assinado para que você tenha direito a um quinto dos meus lucros no primeiro ano.
É O QUÊ, Taylor?
Dennis Crest. 21 anos.
Sobre você: Gosto de mulheres mais velhas.
O que está buscando: Mulheres mais velhas.
Gosto do Dennis porque ele é um cara simples. Objetivo.
Brian Highton. 28 anos.
Sobre você: Vai precisar perguntar para descobrir.
O que está buscando: Uma mulher que não seja pão-duro.
Fecho o laptop.
Quando Pamela sussurrou que eu deveria fazer um perfil no site naquela noite no Bemelman's Bar, a ideia me pareceu péssima.
Mas eu encontrei o Marcus no dia seguinte e...
Eu não posso ser leiloada, você me entende, não é?
E, definitivamente, não posso ser leiloada para o Marcus.
E aí eu fiz o perfil no inferno do Sugar Love e agora estou aqui, sozinha em minha casa, refletindo sobre que tipo de insanidade me atacou para que eu tivesse realmente feito aquilo.
Foram três encontros que deveriam ter sido "nenhum".
O primeiro não estava exatamente interessado em me fazer companhia, queria apenas usar nosso jantar como tempo livre para vender suas ideias e tentar me convencer a investir em suas empresas. Suas ideias eras estúpidas, os investimentos eram péssimos. Não pretendo entrar em contato com ele de novo e, pelo modo como pareceu decepcionado com minha reação à suas apresentações, suspeito que, mesmo que eu mandasse a mensagem, ela não seria respondida.
O segundo fez um esforço homérico para deixar muito claro que estava perfeitamente acostumado a todos os luxos que eu poderia oferecer. Disse que já conhecia o restaurante e chamou o garçom para mudar meu pedido para algo que "eu gostaria mais" (não gostei mais), chamou atenção do maitre porque o vinho foi servido do jeito errado (não foi) e criticou a ópera que assistimos porque a história original não era daquele jeito (era sim). Quando ele tentou me explicar pela terceira vez porque eu estava investindo meu dinheiro do jeito errado, tive vontade de lembrá-lo que aqueles investimentos errados me renderam milhões. Como eu tento, ativamente, me manter longe de pessoas que trazem a tona o pior em mim, preferi esquecer esse também.
O terceiro era um garoto de programa que agia como se estivesse me fazendo um favor. Foi erótico a ponto de me constranger. Considerando como ele era lindo, é até surpreendente que ele tenha conseguido me causar tamanho desinteresse sexual apesar de suas melhores tentativas.
O site de Pamela se mantinha sobre o princípio da honestidade: "eu sei o que você quer, você sabe o que eu posso oferecer". Mas, na prática, era uma bagunça como qualquer outro site de relacionamentos ou bar de solteiros. Um monte de mentirosos empilhados, tentando disfarçar os próprios interesses vis em uma pífia tentativa de torná-los doces aos olhos do outro. Prometeram-me companhia em troca de um jantar caro, mas, na verdade, o que queriam era uma reunião de negócios, fingir que eram alguém que não são, e sexo. Igual a um encontro normal.
Isso me frustrava porque se eu quisesse alguém pra me levar pra cama, eu iria para um bar. Sei que não tenho mais 20 anos, mas acho que não seria horrível conseguir alguém e eu não precisaria pagar 49,90 pra Pamela.
Esfrego os olhos.
Era demais pedir um pouco de honestidade?
Um pouco de vulnerabilidade?
Alguém que parecesse minimamente humano, e não um bloco gigantesco de músculos e interesses?
Talvez não.
Bruce late exigindo atenção e eu coço suas orelhas brancas e felpudas.
- Você podia me levar pra jantar, Bruce. - beijo seu focinho e ele me encara com seus olhos pretos miúdos, perdidos na imensidão do seu pelo - Porque eu não aguento mais esses... - respiro fundo, sem encontrar a palavra.
Não aguento mais ficar sozinha.
Não aguento mais depender de Pamela pra tudo.
E, se a última semana serviu para algo, foi para evidenciar que preciso de afastar de Marcus ou vou magoá-lo.
Bruce late de um jeito sofrido como se espelhasse meu espírito.
- É, meu amor, eu sei. - faço carinho em seu pelo.
- Quando você começa a conversar com seu cachorro, eu fico preocupada. - Julia entra no meu escritório munida de contratos.
- Fique preocupada se eu achar que ele está respondendo. Esses são da TradeWorks? - aponto para as pastas em suas mãos.
- Com as modificações que você pediu.
- E você já...
- Verifiquei três vezes. - sorri, sem precisar ouvir o fim da minha pergunta.
Julia é minha assistente há cinco anos. Mas precisou de apenas dois meses no trabalho para aprender a ler minha mente.
É por isso que há dois anos eu a transformei em gerente executiva, com o maior aumento da História dos Aumentos.
Não vivo sem ela, e ela sabe disso.
- Sem sucesso nos encontros, ainda?
Abro os olhos, confusa.
- Ah, chefe, é claro que eu sei que você tá usando o site da Madame. - revira os olhos e abre a tela do meu laptop para ver as opções - Eu controlo sua agenda inteira, esqueceu? Achou mesmo que eu não ia notar?
Respiro fundo.
De que adianta reclamar?
- Esse aqui é bem bonitinho. Sai com esse. - escolhe e aí favorita o ser humano.
- JULIA! - eu tomo o laptop de volta - Ainda tem mais alguma coisa pra mim? - devolvo os contratos assinados.
- Você quer que eu vá embora pra você voltar a falar com seu cachorro?
Abro e fecho a boca, desprovida de palavras. Meus ombros caem primeiro e eu murcho na cadeira.
Ela ri e continua:
- Você está fazendo isso porque a Madame mandou? - sequer tenta disfarçar a careta de nojo - Ela é louca, você sabe disso, não é?
- Você precisa mesmo chamar a Pamela de "Madame"?
Julia dá de ombros e pisca seus imensos olhos castanhos.
- É como eram chamadas as donas do bordel, na Era de Ouro. É mais elegante que "cafetina".
- "Era de Ouro"? - ergo as sobrancelhas.
- Por que está seguindo o conselho dela?
Respiro muito fundo.
Daquele jeito que fazemos quando a pretensão é exorcizar um pensamento ruim.
- Porque dessa vez ela teve um bom argumento.
- Tem algo a ver com o Marcus?
Arregalo os olhos, assustada. Mas Julia apenas acena.
- Você está estranha. Desde a reunião com o escritório de marketing dele... Ele vai recusar a proposta de ir pra São Francisco por sua causa, não é? Ele quer ficar aqui por você.
É.
E eu não posso deixar que faca isso.
- E você não sabe se gosta dele o suficiente para que isso seja uma boa ideia?
Dou de ombros.
A habilidade que Julia tem para ler minha mente transforma nossos diálogos em interações que dificilmente precisam de palavras de minha parte.
- Você não é idiota. - murmura com um sorriso quieto - Você sempre soube que ele era a fim de você. Onze anos é tempo demais pro cara arrastar uma asa pela mesma mulher. Entre ele ser melhor amigo do seu falecido marido, a obsessão de anos - revira os olhos - e o fato de que vai estar literalmente abrindo mão da carreira por você...
- É responsabilidade demais para colocar em cima de um relacionamento recém nascido. O que acontece se eu sair com ele e, no fim, não houver química? Se eu desistir e resolver que prefiro ficar sozinha?
Julia assente como se eu não precisasse ter concluído a frase para que ela compreendesse o que eu quero dizer.
- E... - continuo - E como eu sei se isso tudo não é só solidão, Ju? Será que eu gosto mesmo do Marcus ou será que eu só estou sentindo falta de ter alguém e ele, por acaso, estava por perto quando eu senti isso?
- Eu não acho que o Marcus é uma boa ideia pra você, Tati.
Estou rindo.
- Você e Pamela iriam discordar.
- E não só sobre isso! - rosna - Eu e aquela ali temos NADA em comum. Você precisa sair, Tati. A queda foi feia, mas você precisa subir de volta no cavalo. Se, pra mais nada, pelo menos pra ver como se sente.
- Mas eu tenho feito isso! - aponto para o site - É justamente isso que tenho feito!
- Tatiana, você pediu pra Lucille te ligar no meio de cada um desses encontros para você poder fingir que tinha uma desculpa, caso quisesse sair! Não passou mais de meia hora com nenhum desses caras!
- Eu...
- Olha, eu detesto o site da Madame mais que qualquer outra pessoa. Mas... se já começou, vai até o fim.
- Acha que eu devia dar mais uma chance pro Sugar Love?
- Acho que, do jeito que você é técnica e tímida, internet é o melhor jeito pra você conhecer um cara novo e eu tenho muita pena do que ia acontecer com você no Tinder. Então... é: usa o site da Madame mesmo. É o jeito.
- Não acha que eu conseguiria usar o Tinder?
- Acho que você é carne fresca e ia ser comida mal passada antes de perceber o que aconteceu. Você não tem maturidade pro Tinder, Tatiana. Confia em mim.
Ela abre os olhos e eu acredito.
Shakespeare diria "Uma vez mais para a brecha, queridos amigos", eu digo "foda-se". Duas expressões que, se não derem no mesmo, dão em algo muito parecido. E um valor aproximado, nesse equação específica, é tão bom quanto um absoluto.
Encaro meu cachorro.
Ela me encara de volta.
Respiro fundo e pego o laptop de volta.
Certo.
Última chance.
***************
Spencer
Tricia ri alto.
A mulher é levemente atraente, sim. Mas é tão estupidamente irritante que eu me pego girando a faca em meus dedos, considerando quão fundo eu preciso enfiá-la em meu olho para justificar uma ida ao hospital sem me matar.
- As únicas entradas são caviar e escargot. Oh, Spencer, você não tem o hábito de comer nenhum dos dois, não é? - ela sequer espera minha resposta - O chef pode alterar a entrada dele pela sopa? Depois, ele vai querer a salada. E o salmão. - eu abaixo o cardápio, enquanto ela segue dando ordens ao garçom - E vai parear com os vinhos sugeridos pela casa. E nenhum de nós dois vai comer a sobremesa. Você não pode prejudicar seu físico, não é, lindo? - ela pisca um olho, atrevida, e eu preciso meditar em busca da paz interior para conseguir sorrir. O garçom se vai e ela segue falando praticamente sozinha, já que não precisa de interlocutor - Esses restaurantes premiados com estrelas do Guia Michelin são caríssimos, Spencer, você tem muita sorte de poder ver um desses. - sussurra como se fosse um segredo.
É um jogo de poder para Tricia.
Ela gosta de ter muito dinheiro e de saber que eu... bem... não tenho.
Lala definiu bem: É como se, pra ela, isso significasse que eu sou sua posse.
Ela está pagando por mim, logo sou dela.
É nojento.
Faz eu me sentir sujo.
- Quando você tem muito dinheiro, é claro que não faz mais diferença. Michelin, McDonalds... o preço dá no mesmo. A qualidade é que é a diferença. Depois que você come em um três estrelas do Michelin, nada mais serve. A não ser, talvez, um quatro estrelas, lógico! - ri.
Eu sorrio e aceno.
Talvez eu devesse fazer o que Eric sugeriu e mentir: fingir que já fui em muitos restaurantes como aquele e melhores. Se, para mais nada, apenas para tentar fazê-la calar a boca.
Mas eu não minto bem quando estou em paz e menos ainda quando me sinto intimidado.
E este último é o exato caso: os talheres me intimidam, o salão imenso, os olhares dos garçons.
Não estou no meu ambiente, então é melhor deixar Tricia falar o que quiser. Dentro d'água, não se aposta corrida contra o tubarão.
Mas a cada novo prato, um novo golpe. Ou o ego dela é muito frágil ou muito grande. Seja como for, ela segue fazendo comentários cruéis para diminuir minha auto estima até estilhaça-la. Suspeito que, em parte, ela esteja fazendo isso para que eu escute seu convite para segui-la até sua casa - e sua cama, sem dúvida - como o maior dos elogios: Eu sou rica, bem sucedida e maravilhosa, e quem é você, Spencer? É uma honra ser convidado para os meus lençóis.
Foi uma tentativa válida mas, depois de uma semana, eu comeria até a Vanessa.
Se Tricia quiser me levar para casa, eu vou negar?
Mas o pensamento basta para revoltar meu estômago.
Acho que, no fim das contas, não estou tão desesperado por sexo quanto pensei.
No lugar da sobremesa, o que ela me dá é um convite para voltar com ela ao seu apartamento para uma bebida. Eu preferia a sobremesa.
- Não vai me fazer essa desfeita, de novo, vai? - murmura, arranhando minha mão com suas unhas longas.
Vai recusar sexo, Spencer?
Respiro fundo.
Ela me encara como se eu fosse um pedaço de carne que acabou de chegar a mesa no exato ponto que ela pediu.
E aí eu lembro da Alice.
O Conde olha pra ela desse jeito também.
A diferença é que ela gosta.
Interesse faz a atenção ser bem vinda.
Carinho transforma qualquer intensidade em desejo.
Mas eu não tenho interesse por Tricia. Não tenho carinho.
E, sinceramente, não sei se tenho paciência.
Eu sou apenas um produto pra essa mulher. Ela quer arrancar a embalagem, comer o que tem dentro e jogar o resto fora.
E eu...
Eu não ligo pra sexo casual, sabe?
Mas, ultimamente...
Eu queria uma Alice.
Tricia conseguiria me deixar duro, mas não conseguiria me deixar doido.
- Eu sinto muito - decido - mas preciso acordar cedo amanhã.
- Não vou te manter acordado até muito tarde. - ela pisca um olho enchendo a palavra de significado. Tem um sorriso confiante de quem que não está acostumada a receber um "não" duas vezes. E eu tenho um sorriso desconfortável de quem não sabe o que fazer com suas investidas.
- Tricia... - peço, com cuidado - Acho que temos intenções diferentes com esses encontros.
- Ah? - ela desliza a mão para longe da minha. Seu sorriso confiante desaparece para dar lugar a uma careta seca.
- Não quis te ofender. - acrescento depressa - Eu só quis dizer que não estou procurando por...
- Me ofender? - ela ri, depois de beber um gole do seu vinho, seus olhos carregados de um misto de desdém e pena - Garotinho, você não conseguiria me ofender nem que se esforçasse. Sua opinião não significa tanto assim pra mim. Mas eu estou curiosa para saber: o que você esperava? Ficar sentado aí comendo uma refeição cara sem precisar dar nada em troca? Eu deveria deixar você pagar sua própria conta para aprender como o mundo funciona.
- Tricia, a intenção do site não é ter um relacionamento físico e...
- Spencer, você é inocente ou idiota? - ela deixa o queixo cair como se não aceitasse que eu existisse.
Estou atordoado porque é difícil imaginar que alguém possa ser tão bruto na vida real.
Esse é o tipo de comportamento que eu esperaria de um vilão de filme infantil, não de uma mulher adulta.
Tricia, no entanto, se importa muito pouco com minhas expectativas. Tudo que ela sente é a mágoa ao próprio ego. Dois "nãos" é um a mais do que ela estava disposta a suportar e, agora, ela pretende deixar isso muito claro. Laurie estava certa. De novo.
- Sinto muito se não fui a companhia que você esperava, mas acho que fui claro desde o começo.
- Vai.
- Com licença?
- Vai embora. - ela repete, sem me olhar nos olhos - Eu não quero mais companhia alguma.
- Tricia...
- Spencer. Ou você sai agora, ou saio eu e aí você vai ter que pagar a conta. Escolha.
É difícil dizer se em algum outro momento eu me senti tão pequeno e humilhado como no instante que precisei levantar daquela mesa.
As palavras que coçavam na minha língua eram "Tá, então sai você, sua egocêntrica mal educada. Não quero te comer nem que você me pagasse e eu tenho pena do pobre coitado que um dia pensar em te beijar, porque você é tão podre que a língua dele vai necrosar e cair. Vai embora você e eu pago essa porra".
Infelizmente, no entanto, a "porra" era cara o suficiente para, naquele instante, valer mais que meu ego.
Deixo o guardanapo sobre a mesa e levanto sem dizer outra palavra.
Ela não me olha nos olhos e por um milésimo de segundo quase tenho pena dela.
Sozinha e infeliz. Pagando alguém por uma intimidade que não conseguiria de outro modo e, mesmo assim, sendo recusada.
Mas então ela rosna alguma grosseria para o garçom e minha pena passa como se nunca tivesse existido.
Estou com dor de cabeça quando chego de volta na minha casa.
A sala está escura e quando meu celular toca alto, eu o atendo antes que acorde Eric.
- Alô?
- Spence?
Esfrego meus olhos ao respirar fundo. Eu realmente não preciso disso agora.
- Oi, Ann.
- Que bom que atendeu. Desculpe ligar tarde, mas eu imaginei que seu turno...
- Tudo bem, eu não trabalhei hoje. O que foi? Algum problema?
- Não. - pausa - Eu só queria... conversar com você.
- O que houve?
- Eu... - eu posso imaginá-la andando pela sala estreita da casa dos seus pais. Enrolando-se com seu casaco rosa favorito e apertando as têmporas, tentando tomar coragem para dizer coisas que não deveriam ser ditas - Spence, se você quiser voltar pra casa, eu...
- Não tem a ver com você, Ann. Eu já te disse isso: minha mudança pra Nova York não foi por sua causa.
- Eu sei, mas eu ainda me sinto tão mal pelo que aconteceu.
— Foi minha culpa, está bem?
- Não, não foi. Não pode se responsabilizar por isso.
- Ann, não importa mais. Não faz diferença. Eu prometo. Só... esquece isso.
- Tá. - ela ri, sem jeito - Se você diz... Mas e então? Como está Nova York?
- Ah, maravilha.
- Tão ruim assim?
- Acho que essa cidade me detesta e não tem sequer a educação de tentar esconder.
Ela ri um pouco.
Sua risada é confortável. Familiar.
- É... difícil. - eu continuo. Familiar. Anna é familiar e eu me aqueço por dentro - Parece que não importa o tanto que eu me esforce, é como se eu nunca fosse suficiente. Pra... nada.
Eu não deveria estar desabafando, não pra ela.
Mas as palavras já foram ditas e eu fecho os olhos, no escuro, esperando que ela me conforte.
- Talvez você devesse voltar pra casa. - Anna sugere, devagar, quase como se fingisse estar brincando. Mas nós dois sabemos que não está. - Você sempre foi suficiente para nós.
Mordo meu lábio e deixo escapar uma risada de escárnio.
Aí está.
- Seu pai ia adorar ter você de volta. - ela continua - A Sara também sente sua falta! A Liz... a Liz precisa de você, Spence. E a Abby e... e eu.
Engulo em seco.
- Ann, eu preciso ir.
- Spencer...
- Está tudo bem, de verdade. Eu te perdoo pelo que aconteceu. Na verdade, eu já esqueci e ia preferir que você esquecesse também.
- Vai ligar essa semana?
- Diga oi aos seus pais, por mim.
Desligo.
Jogo o celular para longe.
O novo.
Presente da Tricia.
Preciso pegar o velho de volta.
Deito no sofá, deixando o escuro aquietar minha dor de cabeça.
Ela precisa de mim.
O pai, a Abby, a Liz, a Sara...
Todo mundo precisa de mim.
E eu... estou cansado.
Estou cuidando dos outros desde os meus quinze anos.
Anna não sabe o que está falando.
Sara não sente minha falta, mas sente falta de ter alguém que vá buscar seu marido no bar pela terceira vez na semana, sem fazer muitas perguntas ou contar ao papai. Ela precisa que eu cuide dela, enquanto mamãe cuida dos seus filhos.
Os gêmeos são trabalho em tempo integral.
E é por isso que eu também preciso cuidar do papai, da mercado, da Liz.
Estou cansado.
Estou cansado de cuidar de todo mundo e ter ninguém cuidando de mim.
Cansado dessas agências que não me acham bom o bastante.
Cansado do Rodolfo que acha que eu não sei cortar um alho.
Cansado de não ter planos pra minha vida.
Cansado dessas mulheres desse site idiota que acabam jogando mais uma mão de terra no fundo do meu poço.
- Ei, cara, ce tá legal?
Eu me viro para encontrar Eric parado no corredor, a luz atrás dele sugere que as lâmpadas estão acesas no seu quarto.
- Achei que você estava dormindo.
- Não, ainda não. Como foi o encontro?
Um sorriso amarelo e um polegar pra cima antes de me enterrar de volta no sofá.
- Nossa, sinto muito. - ele compreende - Mas vai melhorar! Você teve dezenas de convites. - ele soa levemente incomodado sempre que relembra a quantidade de interesse que eu recebi em seu querido site - Talvez você devesse focar nas Ouro, como eu te disse. Essas Platinas são complicadas.
- Não sei, Eric. Acho que isso não é pra mim, sabe? - abro o aplicativo no celular.
- Sério? Você vai desistir?
- Talvez eu volte, depois. Mas não acho que foi uma boa...
Engasgo.
- Que foi?
- Estranho.
Muito estranho.
Tenho muitas notificações de mensagens recebidas (o que é comum) e apenas uma marcada como "resposta".
"Resposta" significa que alguma mensagem que eu enviei foi respondida.
Mas... eu não mandei mensagens.
Mandei?
- O que foi? - ele acende a luz, irritando meus olhos, e vem sentar ao meu lado.
- Recebi uma resposta... - murmuro. Levo alguns segundos para me acostumar a claridade antes de ler a troca de mensagens que começa com "Oi, linda".
Meu coração falha por um segundo.
- Caralho. - Eric reage por mim. E foi o "caralho" mais sem emoção que eu já ouvi. Não houve exclamação depois daquela palavra, não houve qualquer entonação. Houve apenas atordoada descrença. E eu simpatizava com ele porque me sentia igual - Uma Diamante te respondeu?
- Faz diferença? - murmuro mais uma vez - Eu to querendo sair disso porque não aguento as Platinas. Já imaginou como uma Diamante deve ser?
- RICA PRA CACETE!
- Insuportável, cheia de si, egocêntrica... Não preciso disso, agora, cara.
- Vai se foder, Spencer! - ele tenta tomar meu celular - Vai se foder pra caralho! Se você não quer, pelo menos diz pra ela que tem um amigo que vai mudar a vida dela!
- Você acabou de dizer que eu devia desacelerar e tentar uma Ouro.
- Isso é uma Unicórnio, seu imbecil! Não se recusa uma Unicórnio! - ele está em pânico. Pânico real. É quase engraçado de assistir.
- Cara, eu...
- Por mim! Vai por mim! Porque eu nunca vou conseguir uma mulher dessas e você precisa me representar! Por favor! - ele junta as mãos e eu concordo antes que ele se coloque de joelhos.
Encaro o teclado do celular, ainda lendo sua resposta.
Olá.
Só isso.
Só uma palavra.
Três letras.
E Eric está praticamente prostrado de joelhos orando para alguma divindade de sua escolha.
Tudo isso por causa de uma conta no banco.
Balanço a cabeça.
Que merda.
Eu nunca devia ter entrado nesse site.
Oi
Digito de volta.
O chat sinaliza que a mensagem foi lida e ela está respondendo.
- Puta merda, ela tá online AGORA! - Eric vai enfartar. É uma possibilidade real.
- Cara, se acalma. - estou rindo.
O celular vibra.
Você já disse isso =)
- Caralho, Spencer, me dá essa merda! Você vai dizer a coisa errada! Vai perder essa porra e eu vou te dar uma surra!
- Shh, quieto. - eu o empurro, dessa vez, mantendo-o longe do celular.
Verdade. Desculpe, acho que fiquei nervoso =)
- "Fiquei nervoso"? Mas que CACETE, SPENCER! Não diz pra mulher que você tá "nervoso"! Idiota! Diz que ela só demorou pra te responder porque não sabe o que está perdendo! Diz que você é foda e vai deixá-la sem conseguir levantar depois de uma lambida.
Eu encaro meu amigo empoleirado no sofá:
- Meu Deus, você realmente consegue pegar alguma mulher com essa merda?
- Mulheres gostam de confiança, Spence. De virilidade e potência, não de...
Meu celular vibra.
Nervoso?
- Viu! - Eric bate palmas, irritado - Eu não disse? Me dá aqui esse caralho!
Sou novo por aqui. Não sei exatamente o que dizer.
Tento salvar.
Eric encara a tela do meu celular e desiste.
- Deus não presenteia os comuns com esse tipo de benção. - resmunga, para si mesmo - Não! Deus escolhe os idiotas para premiar. E aí os idiotas perdem a oportunidade.
- Você disse que era estranho dizer que eu estava nervoso! Isso explica! Melhor do que dizer que fiquei nervoso porque ela é rica!
- Aí você foi de "nervoso" pra "virgem". Ótimo.
- Eu não disse que era virgem. - reviro os olhos.
Mais um aviso do celular.
Bem, deixe eu tentar, então. Você está livre no próximo sábado a noite? Tem um restaurante que eu gostaria de conhecer.
- Filho de uma... - Eric choraminga - Tua mãe abriu as pernas pro céu, porque tu nasceu com a bunda virada pra Lua.
Mas eu ignoro seus comentários poéticos porque há algo mais importante que os lamentos de meu amigo e eu prefiro digitar depressa:
Marcado. Qual o endereço?
***************
Puxo a gola alta da camisa e ajeito o blazer.
Eric não me deixou sair de casa com minhas roupas, então tive que pegar emprestado algumas das dele. O problema é que meu colega de quarto, apesar de toda sua boa vontade, é alguns centímetros mais baixo e um pouco mais esguio que eu. Não é fácil ficar a vontade quando o tecido ao seu redor parece querer te enforcar.
A recepção do restaurante é estreita, mas é o que eu esperaria de um lugar de luxo. Luxuosos sofás vermelhos cravados em uma madeira lustrada de uma cor rosa-creme que não devia ser natural a madeiras.
O lustre cai a meia altura em uma mosaico de cristais indiretamente iluminados. Eu me distraio por um instante porque não tenho certeza se tem lâmpadas dentro daquilo ali ou se as luzes estão ao seu redor e os cristais apenas...
- Spencer?
A voz feminina às minhas costas é delicada, pronuncia meu nome hesitante quase como se pedisse desculpas, e eu me viro para encontrar Tatiana Corso e descobrir que suas fotos de perfil não lhe fazem justiça.
Isso não significa que é a mulher mais linda que já vi na vida... mas é mais atraente do que eu esperava.
Sobre seus saltos finos, ela é quase de minha altura. O cabelo castanho-escuro está amarrado em um rabo-de-cavalo metódico e apertado, com os poucos cachos largos descendo por suas costas. As curvas de seu corpo atraem o olhar, voluptuosas no quadril e no busto, evidentes na blusa de seda e na saia justa. Os dois primeiros botões estão desfeitos, exibindo a carne no topo dos seios e o colar discreto com uma única pérola como pingente.
A mulher é rica.
Isso é perceptível na suas roupas, no seu porte e até mesmo no perfume.
Uma elegância discreta de quem tem dinheiro suficiente para escolher e cuidado suficiente para não exagerar.
Não parece ser um dia mais velha que trinta anos, apesar de anunciar "36" em seu perfil.
- Tatiana? - eu a tomo em um abraço curto, envolvendo sua cintura, para um beijo rápido em sua bochecha.
Ela cora porque não esperava a intimidade.
- Oh, olá. - atrapalha-se em meus braços e logo se livra deles.
Meu sorriso é natural e satisfeito. Ainda consigo deixar algumas mulheres envergonhadas.
- Acho que nossa mesa já está pronta. - ela avisa e nos conduz, primeiro para a recepcionista, e então pelo salão de paredes lilás, forrado por um longo tapete escuro e felpudo. Nossa mesa, preta, brilhante e estreita, aceita apenas duas pessoas e é ladeada - em um dos lados - por um sofá roxo e comprido que serve também outras mesas e - do outro - por uma poltrona larga de moldura escura acolchoada com veludo branco. O candelabro de cristal flutua pesado sobre todo o conjunto, com uma iluminação delicada refletindo nas pequenas pedras decorativas.
A camisa de Eric me incomoda e eu preciso puxá-la para os lados mais uma vez antes de sentar.
Ela sorri.
Eu sorrio.
É estranho e levemente desconfortável.
Forçado.
Quando você está solteiro em um bar é delicioso encontrar uma mulher que te interessa e ir até lá descobrir se é recíproco. Eu sei bem como é: se ela te cativa - seja pela beleza, pelo olhar, ou até pelo tom de voz - você já chega nela com um sorriso gostoso rasgado na boca. É genuíno. Como salivar, com fome, diante de seu prato favorito. É um negócio que não dá pra impedir.
Tatiana... por mais bonita e elegante que seja, é como um sanduíche improvisado no fim da noite quando você já bebeu demais: não é que o pão com queijo seja ruim, mas você não tá com fome e a cada dentada, teu estômago insiste em te lembrar que, no fim, aquilo pode acabar sendo uma péssima ideia. Ainda assim você come, no entanto. Porque bebida de barriga vazia é pior ainda.
Você come não por gosto.
Mas por necessidade.
Não é natural como a mulher que você encontra em um bar. Não é uma conversa orgânica entre duas pessoas que demonstram um interesse imediato.
Eu e Tatiana Corso, sentados naquele restaurante, é um interesse calculado.
Algo que ela quer.
Algo que eu quero.
E uma tensão imensa para descobrir se vai funcionar.
O garçom entrega a folha branca de papel resistente, com suas bordas em arabescos dourados e as informações sobre quais pratos estão disponíveis.
A distração é bem vinda enquanto escolhemos o que comer mas, assim que o garçom se vai, somos obrigados a encarar nossa absoluta falta de química.
Não consigo pensar em qualquer assunto para quebrar o gelo.
Eu sorrio.
Ela sorri.
Merda.
- Então. - arrisco - Você já veio aqui antes?
- Não. - ela diz - Eu acho que te disse isso, quando trocamos mensagens? Que queria "conhecer" esse lugar.
- Ah! Verdade! - lembro. Bato os dedos na mesa e puxo a manga do blazer - Você gosta de restaurantes assim?
- Assim? - não entende minha pergunta.
- Premiados pelo Michelin e tudo o mais.
Tatiana estreita os olhos e parece incerta sobre como responder.
- Ah... Não acho que esse foi premiado.
- Não? - olho ao redor. O lugar é chique pra caralho, seguindo o ritmo dos meus últimos encontros e considerando a fortuna que ela tem, imaginei que... - Eu achei que fosse. - corrijo depressa.
- Não, sinto muito. - ela ainda parece levemente confusa - Eu deveria ter perguntando antes! Você preferia ter ido a um...
- Não, não! - interrompo suas desculpas porque a noite já está desajeitada o suficiente sem que ela precise lembrar do aspecto financeiro de nosso arranjo - Está ótimo. Eu não deveria ter suposto. Você gosta... - tento salvar a pergunta - de restaurantes?
Ela pisca os olhos escuros e não sabe o que fazer comigo.
Somos dois.
Que caralho de pergunta é "você gosta de restaurantes"?
O que eu vou perguntar a seguir? Se ela gosta de correios ou bancos de praça?
- Ah... gosto. - responde, sem apontar a estranheza de minha pergunta. A educação de Tatiana é realmente uma coisa exemplar. Obrigado, viu, meu bem - Sou muito reservada. Acho que gosto de restaurantes, cinema, teatro... ou ficar em casa. - brinca.
- Legal! Parece divertido!
- É. - assente, dando um fim a nossa troca curta.
O garçom serve alguns pães com manteiga verde.
Sirvo-me para manter a boca ocupada.
O gosto azedo me atinge imediatamente fazendo-me apertar os olhos.
Que inferno...?
Tem salsa naquela manteiga. E anchova. Mas o gosto desses dois é quase absolutamente anulado por algo azedo e poderoso. Não parece ser apenas limão ou algo mais tradicional. Parece rumex ou alguma acetosa. E o pão, feito na casa, também é horrível. A crosta está mole e o interior na melhor das hipóteses está cru, na pior, foi jogado de qualquer jeito em um prato ainda molhado.
A expressão no rosto de minha acompanhante é reflexo do meu.
Mas...
Ela sorri.
Eu sorrio.
Nosso código de honra da noite.
Não importa se o encontro for um pesadelo, o restaurante pegar fogo e eu precisar espremer a umidade do pão para nos salvar das chamas: continue sorrindo.
- Então. - volto a tentar - O que gosta de fazer para se divertir?
Tatiana me encara como se não acreditasse na pergunta que, para mim, era completamente inocente até ela dizer:
- Restaurantes, cinema, teatro ou...
- Ficar em casa. - percebo que ela acabou de dizer aquilo. - Sim. Divertido. - repito.
Não estou conseguindo respirar direito. Culpo a camisa de Eric, mesmo sabendo que o culpado sou eu.
Quero que essa noite acabe.
E acho que ela também.
Ela abre a boca como se fosse tentar guiar a conversa, mas eu já estava expulsando a próxima pergunta da língua.
- Já esteve em algum restaurante premiado pelo Michelin?
- Já. - ela inclina o rosto, provavelmente confusa em relação a minha obsessão pelo Michelin. Não posso culpá-la, estou confuso também.
- Em algum que recebeu duas estrelas?
- Já. - mais uma vez, um modelo de educação, Deus a abençoe.
- Três estrelas? - continuo levando nossa conversa deprimente para lugar nenhum.
- Já. - ela sorri, cansada.
Eu engulo em seco porque se já vim até aqui...
- Quatro estrelas?
Ela pausa.
- Ahm... Não acho que existe um quatro estrelas.
Abro os olhos.
- Sério? Em nenhum lugar do mundo?
- Não. Não acho que existe.
- Hm. Estranho. Uma amiga mencionou, uma vez, eu imaginei que existisse.
- Acho que ela está enganada.
- Talvez seja um novo?
Tatiana está tentando se manter gentil, mas minha insistência não lhe dá muitas opções.
- Não. Não acho que é possível.
- Bem, vai ser interessante quando alguém conseguir a quarta! Vai ser impossível conseguir uma reserva.
- Spencer. - ela respira fundo - Eu realmente não acho que é possível.
Eu ia tentar dizer algo, mas sou interrompido pelo garçom e a primeira rodada de pratos.
Acho que foi melhor assim.
Eu acabaria dizendo algo estúpido de novo.
Eu só preciso manter minha boca ocupada durante a noite. Ou com comida ou com assuntos genéricos.
Eu só preciso manter a conversa por algumas horas e não vai ser tão mal assim. Nem que, pra isso, eu precise citar minhas receitas ou itens de cozinha: Qualquer coisa é melhor que silêncio constrangedor.
E quem sabe?
Pode até ser que, no fim da noite, o encontro tenha sido um sucesso.
***************
Tatiana
O encontro é um desastre.
Estou contando os segundos para a ligação de Lucille me salvar dessa catástrofe.
Você já assistiu Forrest Gump? Sabe aquela cena em que Bubba cita TODOS os tipos de pratos que sua mãe sabe fazer usando camarões? Bubba passa horas, dias, meses, narrando a longa lista de habilidades culinárias de sua matriarca.
Spencer Reese tem a mesma habilidade de Bubba para puxar um assunto.
"Conversa" para ele se resume a citar receitas, ingredientes e, mais que tudo, suas adoradas estrelas do Michelin.
Quando começou a me explicar como eram os diferentes tipos de faca que um restaurante utiliza, eu tive vontade de pegar a que estava ao lado do meu prato e enfiá-la em meus olhos. Quão fundo eu precisaria enfiar para justificar uma ida ao hospital sem perder a visão?
Eu e o homem a minha frente temos nada em comum: nenhum assunto, nenhum interesse, nenhuma opinião.
É apenas uma consequência lógica que tenhamos nenhuma química.
E a cereja no topo da chacina é a diferença de idade. Spencer é treze anos mais novo do que eu e, apesar de ter todo o conjunto físico digno de um homem, eu não consigo afastar a sensação de que é um moleque. Um jovem adulto mal saído da adolescência que vai começar a falar sobre seus truques para pegar mulheres em um bar assim que exaurir sua lista de nomenclaturas para itens de cozinha.
Mas... Pelo menos ele é gostoso de olhar.
E gostoso é a palavra ideal para definir.
Homens como ele deviam vir com um aviso de cuidado. Uma placa vermelha com letras garrafais que se chocasse contra sua cabeça antes dele entrar em seu campo de visão. Porque aqueles olhos castanhos, o sorriso indecente e o par de covinhas quase era mais do que eu conseguia suportar sem perder o decoro.
Respiro fundo.
- ... mas é diferente da Santoku. A faca Santoku... - continua.
E continua.
E continua.
A única diferença entre Spencer e Bubba é que Bubba, eventualmente, calava a boca.
Gostaria de dizer que ao menos a refeição me distraiu. Mas a comida daquela porcaria conseguia ser pior que a palestra de Spencer.
A noite é um desastre absoluto e quando termina, estamos, eu e ele, aliviados.
Saímos do restaurante mantendo uma distância segura entre nós, os dois temendo que qualquer contato adicional torne a noite ainda mais desagradável.
- Precisa de uma carona? - ofereço, assim que vejo minha motorista parar o carro na entrada do restaurante.
- Não, eu estou de carro. - aponta para o manobrista.
- Oh, eu não...
Não paguei o manobrista dele.
Devo pagar o manobrista dele?
Meu Deus, esses encontros deveriam ser mais simples.
- Não se preocupa. - ele se adianta, lendo meu constrangimento - Seu carro já chegou. A gente se fala! Você tem meu número.
Ele me dá outro meio abraço desajeitado e quase implora pra que eu o deixe sozinho.
Acho que estava mais desesperado que eu para ver a noite acabar.
Tudo bem.
Aceno e me enfio no banco de trás do carro.
Respiro tão fundo que minha motorista, Lucille, sente minha dor.
- Muito horrível ou pouco horrível? - ela pergunta, vejo seu sorriso no espelho retrovisor.
- Acho que batemos um novo recorde hoje, Lu.
Ela ri alto.
Tem acompanhado a série de infortúnios de minha vida pessoal da primeira fila e tem intimidade suficiente para dizer:
- O próximo vai ser pior, você sabe, não é?
- Também te amo, Lu. - esfrego os olhos - E você não ligou!
- A Julia disse que, dessa vez, não era pra...
Eu aceno e peco que ela nem termine a frase.
Maldita Julia.
- Você não está pronta pra encontros. - cantarola - Você não sabe relaxar! Se fica tensa, nunca consegue se divertir.
- E como uma pessoa aprende a relaxar? - resmungo.
Ela considera por um instante e dá de ombros.
- Talvez você devesse pagar alguém pra isso. Ao invés de pagar por... sexo. - ri.
- LUCILLE! Não estou pagando por sexo.
- Certo, chefe. - ri baixinho - Se você diz. Direto pra casa?
- Não. - choramingo - Estou morrendo de fome.
- Fome? - faz uma careta - Mas...
- A comida era horrível! E pouca!
- Nossa. Esse bateu o recorde mesmo.
- Eu te disse!
- Tudo bem. Pra onde então?
- O lugar mais perto que tenha a comida mais rápida.
- Acabamos de passar por um McDonald's.
- Perfeito.
Lucille precisa fazer uma volta que acaba sendo mais longa do que meu estômago gostaria. Ela oferece o drive-in, mas eu preciso comer agora.
- Você quer alguma coisa?
- Não, vou esperar no carro. - ela avisa, mostrando o celular - Estou quase passando de fase. - a tela já está iluminada no jogo das bolinhas.
Toco no ombro dela e a encaro com intensidade.
- Você está viciada. Isso é doença e você precisa de ajuda profissional.
- Chefe, a senhora bem que podia fazer uns joguinhos de celular também, não era? E me dar os códigos pra passar rápido das fases chatas.
Balanço a cabeça para sua resposta e desço do carro.
O caminho para o balcão está vazio. Não há qualquer fila, e eu agradeço aos deuses antigos e novos porque minha fome não aguenta muito mais. Meus pés doem e eu arranco os saltos no meio do pedido, em algum lugar entre o menu do big mac e a porção extra de nuggets. Deslizo para o lado, assim que terminei de pagar e algo em minha visão periférica atrai minha atenção.
O homem sentado na mesa mais próxima está me encarando como se questionasse a sanidade dos próprios olhos. Ainda tem a boca entreaberta e a única batata frita suspensa no ar. Spencer Reese. Congelado.
Ai, não.
Sorrio e aceno.
Ele engole em seco e devolve minha cortesia antes de levar a batata esquecida ao destino final. Prende a respiração e aponta para a cadeira a sua frente, convidando-me para sentar.
De jeito nenhum.
- Eu pedi para levar. - explico, apontando com o polegar para o lugar onde, por infernal coincidência, a atendente terminou de colocar todo o meu pedido em uma bandeja.
Dessa vez, o sorriso de Spencer é envergonhado. Como se entendesse a rejeição apesar de meus eufemismos.
Derrubo meus ombros.
Não quis ofendê-lo. O encontro foi horroroso, mas ele não é uma pessoa ruim.
Pego minha bandeja e sento na cadeira que ofereceu.
- Acho que ela não me entendeu quando pedi pra levar. Eu te faço companhia.
- Não precisa fazer isso, de verdade.
- Tudo bem. - ergo um ombro - Acho que não fui a única a achar a comida horrível. - brinco.
- Não, não foi.
- Sinto muito.
- Não é culpa sua que o chef não sabe cozinhar.
Sorrimos, sem jeito.
E de volta ao silêncio constrangedor.
Bem... o lado bom é que pelo menos um sanduíche é mais rápido que uma refeição de seis pratos.
Spencer me observa ao tirar o canudo da boca:
- Você não vai me ligar de novo, vai?
Sua pergunta não soa agressiva ou desagradável.
Ele é... genuíno.
Doce.
Não consigo lhe dizer "não".
- Bem... - murmuro.
Ele abre um sorriso divertido como se estivesse curioso para ouvir que desculpa esfarrapada eu daria agora.
Eu escolho a verdade:
- Ora, vamos. - desisto - Você não pode ter achado que esse encontro foi bom.
- Eu estava falando sobre facas? - espreme os olhos, ainda rindo - Acho que passei boa parte da noite falando sobre facas.
Eu aceno, em pânico, e ele desata em risadas de quem não liga mais para bons modos.
- Droga, parte de mim estava esperando que tivesse sido uma alucinação.
- Você é muito dedicado a facas. Seria assustador se não fosse tão...
- Adorável?
- Eu ia dizer "entediante". Mas, claro, "adorável". - brinco e ele ri um pouco mais.
- Acho que eu fiquei nervoso. - dá de ombros - Sinto muito.
Dou uma mordida no meu sanduíche e o observo com cuidado.
Ele não está rindo, mas as covinhas ainda estão marcadas em seu sorriso apertado.
Adorável.
- A culpa não é só sua. - confesso - Pelo menos você estava se esforçando para manter uma conversa. Eu podia ter ajudado.
- É verdade. - ele mastiga, fingindo indiferença e fazendo-me rir - A culpa é sua. A noite toda, você só disse que "realmente não dava pra um restaurante ter uma quarta estrela do Michelin".
- E que obsessão é essa com as estrelas? Homem, você precisa deixar isso pra lá.
- Melhor ser obcecado do que ser descrente. Te falta confiança nas habilidades culinárias das pessoas do mundo. Pode ser que alguém, por aí, algum dia seja bom suficiente para ganhar uma quarta estrela.
Ele está errado e eu termino de engolir a batata antes de lhe explicar por quê.
- Você sabe o que é o Michelin? - ergo as sobrancelhas.
- Eu fiz um curso de culinária e trabalho em um restaurante, Riquinha Rico, o que você acha?
Eu estou rindo alto.
- Você me chamou de "Riquinha Rico"?
- É. - revira os olhos - É de um filme bem velho que...
- Eu sei que filme é. E nem ouse dizer que é tão velho assim, moleque. - ergo o indicador e ele distrai o sorriso no canudo - E, respondendo sua pergunta, não acho que você sabe o que é.
- É uma guia de turismo. - explica - Marca locais interessantes de visitar e restaurantes bons de conhecer. Os críticos são excepcionais e as estrelas só são oferecidas a cozinhas de luxo que são realmente muito boas.
- É um guia rodoviário. - corrijo - "Michelin" é uma marca de pneu. Mas sim, quando não existia internet, GPS e Yelp, o guia do Michelin era o de maior credibilidade na hora de organizar uma viagem.
- Dá no mesmo.
- Não dá.
- Posso saber por quê?
Respiro fundo.
- As estrelas são marcações para cozinhas de luxo: o quanto elas valem a pena para quem está "na estrada". "Uma estrela" significa que o restaurante é bom e, se você estiver passando por ele, vale a pena parar e conhecê-lo. "Duas estrelas" significa que o restaurante é muito bom e, se você estiver passando perto dele, vale a pena fazer um desvio para ir conhecê-lo. "Três estrelas" significa que o restaurante é tão maravilhosamente bom que vale a pena fazer uma viagem SÓ para conhecê-lo. Então, eu acho muito difícil eles colocarem uma quarta estrela porque... qual seria essa categoria? Um restaurante tão perfeito que vale a pena você sair da Terra e voltar de novo SÓ para visitá-lo?
Spencer fica em silêncio considerando minha explicação.
E quando finalmente fala, é com uma voz jocosa que me faz rir antes mesmo de concluir a frase:
- Sabe, eu estive pensando, não acho que dá pra um restaurante ganhar uma quarta estrela.
- Não, não acho que dá. - concordo - E já que você está tão complacente, por que não me diz sobre o que teria conversado essa noite, se não estivesse tão interessado em listar facas?
- Garfos e colheres. - assente, sério, e a risada escapa mais alta do que eu esperava, preciso cobrir a boca com a mão - Mas não acho que temos intimidade suficiente para esses dois, ainda.
- Oh, não. Você está certo. Para um primeiro encontro é realmente melhor ficar só com as facas.
Seu sorriso diminui, mas ainda está lá.
- Por que a gente não faz o contrário? - convida - Já que provavelmente nunca mais vamos nos ver de novo - considera - por que não me diz algo que nunca diria?
- Em um primeiro encontro?
- Ou na vida. - dá de ombros - Somos dois estranhos que nunca mais vão se cruzar. Nossos segredos estão a salvo.
Deixo a boca entreaberta porque não sei o que fazer com minha hesitação. Spencer dá de ombros e sorri.
- Foi um convite estranho. - desculpa-se - Esquece. Na verdade, se você pudesse esquecer essa noite inteira seria bem legal!
Dou risada.
Ele puxa a gola da camisa de um jeito nervoso.
Lindo.
O homem é lindo.
Do tipo que te deixa desconcertada. É um benefício imenso que ele seja tão jovem. Se fosse mais velho - com um olhar de experiência, um sorriso de quem sabe exatamente como cuidar de uma mulher e alguns cabelos grisalhos - eu estaria bem fodida.
- Foi um convite estranho, mas... - dou de ombros também - Pode ser divertido. Quero dizer... dificilmente vai ser pior que o resto da noite.
- Dificilmente! - concorda, enfático, e gesticula para que eu responda.
- Não, não, não. - balanço o canudo ainda preso em meus dedos - Você primeiro.
Ele abre um sorriso imenso.
Desconcertado, ele também.
Passa a mão larga nos cabelos escuros de um jeito jovial que parece ser de propósito.
Balança a cabeça devagar enquanto considera suas possibilidades e, por um instante, seu sorriso desaparece... assim que ele decide o que dizer.
Oferece o copo de papel em um brinde vazio.
- Eu sou medíocre. - anuncia.
Enrugo a testa.
- Medíocre?
Respira fundo, precisa de fôlego para o que vai dizer: não tanto pela quantidade de palavras, mas pela sua intensidade.
- Nunca fui bom em esportes, nunca tirei boas notas, nunca tive um talento especial. - admite, sem me olhar nos olhos - Nunca fui especialmente inteligente. A única coisa que eu tenho a meu favor é que eu sou bonito. E isso não é mérito meu. É aleatoriedade genética. - sorri, sem jeito - Acho que é por isso que eu sempre quis ser modelo ou ator. Me pareceu fácil, simples. Só que eu estava enganado. Bem enganado. Não é fácil. Não é simples. Foi idiota achar o contrário. E agora estou aqui, sem qualquer expectativa profissional, preso em um emprego que me dá pouco prazer ou orgulho e... é isso. Não sou um bom partido. Pensando assim, você faz muito bem em não me ligar de novo. - pisca um olho, mas sua expressão é cabisbaixa.
Não sei o que responder.
Não sei se há o que responder.
- Sua vez. - avisa, antes que o silêncio se prolongue.
- Ah... - estreito os olhos, buscando em minha memória algo que sirva como revelação - Estou um pouco envergonhada de estar usando esse site. É estranho levar uma porção de garotos de vinte anos para jantar. Acabo me sentindo como...
- Não. - ele recusa, interrompendo-me.
- O quê?
- Eu disse "não". Não vale. Eu admiti algo íntimo, que me envergonha e que nunca disse em voz alta antes. E você está me contando a mesma coisa que vai contar pra um bando de amigas assim que chegar em casa.
- Não vou con...
- Não vale. - repete.
- Não vale?
- Não, senhora. Você consegue fazer melhor do que isso.
Encaro Spencer.
Seus olhos castanhos de vinte e três anos que eu, provavelmente, nunca mais verei de novo.
- Se eu te perguntar qual é a coisa que mais te incomoda e que você nunca admitiu em voz alta. - pede - Qual a primeira coisa que você pensa?
Engulo em seco.
Ao contrário da maioria das pessoas, eu acho que sinto minhas emoções na garganta primeiro, não no coração.
Ela fica ressecada, rouca, dolorida ou fechada quando um pensamento me atinge muito rápido. Muito forte.
Eu sei exatamente o que dizer para Spencer.
É o mesmo que minha terapeuta quis me ouvir dizer por dois anos inteiros.
É o mesmo que Pamela imagina.
É o mesmo que me assusta sempre que olho pra Marcus com carinho.
Eu sei o que dizer.
Mas saber é mais fácil do que conseguir.
Há anos eu tento tomar coragem.
Mas as palavras sempre me abandonam e me deixam no silêncio.
Abro a boca e sinto-as na língua.
Mas, ao invés de dizê-las... eu escolho outras.
- Acho que estou gostando do melhor amigo do meu marido.
Ele engasga com o refrigerante.
- Você é casada?
- Viúva. Spencer, você não leu o meu perfil, não é?
- Não, só mandei a mensagem porque você era a mulher mais rica que tinha no site.
Estou rindo de sua sinceridade inabalável. Quero dizer... ele sequer hesitou.
- Então, você está a fim do cara que era melhor amigo do seu marido? E por que isso é um problema? E mais importante: se você está a fim dele, por que está saindo com uma porção de garotos de vinte anos?
Respiro fundo.
- Você é muito novo. - suspiro - Você não conseguiria entender.
- Tente, ainda assim.
Assinto, com um sorriso divertido.
- Você já assistiu "Friends"?
- O que isso tem a ver?
- Responde a pergunta, garoto. - reviro os olhos - Já assistiu "Friends" ou "How I met your mother"... qualquer um desses seriados de comédia?
- Já assisti "How I met your mother". Friends é meio chato.
Engasgo.
- Tá, a gente vai voltar pra esse assunto depois. - ergo as sobrancelhas - Mas você já assistiu os episódios mais de uma vez?
- Já.
Assinto.
- Já percebeu como, nos primeiros episódios, os atores ainda não estão a vontade com os próprios personagens? Ou "não tão a vontade" quanto eles ficam depois que já estão interpretando os papeis por um ano ou dois? Quero dizer... se você assiste, na sequência, o último episódio de uma dessas séries, e depois assiste o primeiro, é perceptível como os atores ainda estão encontrando sua profundidade.
- Tudo bem. Mas o que isso tem a ver?
- Relacionamentos são isso. O relacionamento que um ator tem com o papel que ele interpreta, é o mesmo que nós temos uns com os outros, enquanto pessoas. Enquanto amigos, amantes... o que seja. Leva tempo até você descobrir quem você é dentro daquela dinâmica. Acabar um relacionamento é como perder um papel. É ter que começar a dinâmica toda de novo.
- Você quer dizer que você muda quem é em um relacionamento?
- Não... eu... - mordo o lábio, tentando decidir como explicar - Na última temporada, existe história entre o ator e o personagem que ele interpreta. Existe anos de desenvolvimento, leitura de roteiro, pequenas percepções do dia-a-dia e maneirismos adquiridos... coisas que você não vê na tela. Mas que aconteceram para o ator.
- Certo.
- A mesma coisa acontece em um relacionamento. Eu estive com Daniel por mais de dez anos. É quase metade da minha vida. E, durante todo esse tempo, eu e Marcus fomos amigos. Sair em um encontro com ele agora é como se... como se alguém me pedisse pra mudar de personagem no meio do seriado. Nós temos história demais. Tem uma estranheza entre nós... uma responsabilidade muito grande de fazer dar certo porque, se der errado, ambos perdemos um amigo. Isso tudo misturado a culpa que eu sinto... como se estivesse traindo Daniel com seu melhor amigo. - engulo em seco.
Sem querer, estou contando a Spencer muito mais do que pretendia. Espero que ele acene em respeito, mesmo que ainda não tenha idade para compreender.
No entanto, o que ele faz é revirar os olhos: gloriosamente.
- Meu Deus, como você é complicada.
- Perdão?
- É isso que acontece quando a gente fica velho? A gente fica complicado por nenhuma razão?
- E eu sou velha agora? - estou rindo de sua explosão de sinceridade.
- Você pegou a referência a "Riquinho Rico" bem depressa. E gosta mais de Friends... Acho que você seria velha mesmo que não fosse velha.
Escondo os olhos atrás da mão e ainda estou rindo.
- Você é péssimo em encontros, Spencer.
- Isso não é mais um encontro. Estou só dizendo um fato.
- Um fato?
- A tua analogia é um lixo.
- Um lixo?
- Um lixo imenso e estúpido. Quero dizer... tá, os atores de seriados demoram alguns anos pra aprofundar personagens porque essa é a mídia. Mas e atores de filmes? Eles precisam entregar um personagem completo em meses. Pior ainda se for um filme biográfico e eles tiverem que interpretar alguém real! E eles fazem isso algumas vezes no ano e ainda recebem prêmios. Eles são especialistas em relacionamentos por causa disso?
- Não... foi só uma analogia.
- Uma analogia bem lixo. Você tá com medo de sair com o cara que gosta e tá inventando um monte de razões pra se convencer que está certa. Mas você está tão certa sobre relacionamentos quanto eu sobre o Michelin.
- E voltamos ao assunto do Michelin. Você precisa de um pouco de variedade.
- E você precisa assistir Orphan Black. Olha... Se quer sair com o cara, sai com o cara. Transa com ele logo no primeiro encontro.
- E isso vai resolver o quê?
- Nada cria intimidade como sexo, meu amor.
- E você acha que pode ficar aí, do alto dos seus vinte e poucos anos de idade, me dando conselhos sobre relacionamento?
- Não sobre relacionamento, sobre sexo. Sobre relacionamento, eu não tenho conselho pra dar. E, sendo sincero, mesmo que eu desse, você não deveria seguir. A última vez que levei uma garota pra cama, passei metade do tempo na dúvida se ela sabia meu nome e na certeza que eu não sabia o dela.
- Pois eu preciso de amigos que entendam de relacionamento. Do tipo que só entende de sexo, eu já tenho uma.
- E ela está fazendo um péssimo trabalho ou você já tinha superado isso.
- Garoto...
- Já que você gosta de histórias nada a ver, deixa eu te contar uma, então.
Gesticulo para que ele fique a vontade.
- Quando eu era novo...
- Quando você era novo? E agora você é velho?
- Quieta. - resmunga - Quando eu era mais novo, tinha uns 10 anos... tinha uma mulher estranha que morava na casa na frente da minha. Devia ter uns 70 anos de idade. A gente conseguia vê-la pela janela, nos observando, às vezes. Mas ela nunca saía de casa.
- Deixa eu adivinhar: era a "bruxa" da sua rua?
- "Vampiro", na verdade.
- Vampiro?
- Era a teoria. Porque ela nunca saía durante o dia. Mas durante a noite eu a via... ela abria a porta de casa e ficava sacudindo as chaves no meio do quintal, encarando a rua. Às vezes ela caminhava pelo quintal ou molhava as plantas. Mas sempre de noite.
Faço uma careta porque o comportamento certamente era estranho.
- Todo mundo na rua morria de medo dela e fazia o possível pra evitar até passar na frente da casa. Até que um dia, alguém chutou a bola e quebrou a sua janela.
- Meu Deus, isso parece cena de filme ruim.
- Obrigado. Posso continuar?
- De nada e por favor.
- Os meus amigos me desafiaram a ir até lá buscar a bola. E agora que você já ofendeu minha história, eu vou pular os detalhes... mas ela acabou me oferecendo um copo de suco e foi... gentil. Gente boa, sabe? De um jeito que eu não esperava de uma senhora-vampiro de 70 anos que sacudia as chaves a meia noite. Comecei a ir pra casa dela, às vezes. Não só eu... mas todos nós, da rua. A gente se alternava cortando a grama dela ou ajudando a limpar algo e ela sempre nos pagava bem e oferecia suco. Depois de algumas semanas, eu tomei coragem para perguntar.
- Sobre as chaves?
- Sobre tudo. E aí ela me contou... bem... não com detalhes, mas de um modo que uma criança de 10 anos pudesse entender: ela tinha sofrido muitos abusos a vida inteira. Do pai, do irmão, do marido. Isso acabou deixando-a doente. Ele tinha fobia de sair de casa. Só a ideia de colocar o pé na rua a deixava em pânico.
- Agorafobia.
- Exato. Ela disse que tinha piorado ao longo dos anos, mas que sempre era mais fácil pra ela sair a noite. Talvez o silêncio ou o fato de que tem menos gente na rua... É por isso que ela caminhava pelo quintal quando escurecia.
- E as chaves?
- A irmã dela estava doente. Câncer. Os médicos disseram que ela não ia viver mais que um ano. Mas ela morava em outra cidade e minha vizinha...
- Não conseguia sair de casa.
- Nem mesmo para ficar com a irmã doente. É por isso que ela ficava ali, de noite, encarando o carro com as chaves na mão. Ela estava pensando em tudo que queria fazer, mas tinha medo. E eu... bem... eu tinha 10 anos e nunca fui muito bom em dar conselhos.
- A parte dos conselhos, eu já notei.
- Pois é. - ri - E aí eu só disse pra ela que "ainda bem" que era só isso, porque nós todos achávamos que ela era um vampiro.
- E ela?
- Ela riu. Mas eu fiquei pensando e acabei dizendo pra ela que talvez fosse mais fácil se ela fosse, de fato, um vampiro. Porque aí ela não precisaria ter medo de nada. Ela pareceu ficar muito triste na hora e foi isso. Algumas noites eu ainda a via no quintal. Mas eu não tinha mais medo... eu só torcia para que ela conseguisse. Mas... não. - ele ergue os ombros - Até que um dia, eu fui até o quintal dela para pegar o cortador de grama e notei que o carro tinha desaparecido. Fui bater na porta para ver se ela estava bem e encontrei um pedaço de papel preso ali, com uma nota escrita a mão. Dizia "Adeus, Spencer. Eu decidi virar um vampiro". Ela juntou as coisas e foi embora de madrugada. Foi ficar com a irmã dela.
Aperto os lábios porque sua história foi preciosa.
- E esse é o seu problema, Tatiana...
Espera.
- E a bateria?
- Você tem que... Han? - interrompe-se.
- A bateria do carro. Você disse que ela não usava há meses, no mínimo. A bateria estava funcionando?
Ele me encara entre o sorriso e a cólera.
- A história não é minha.
Pisco os olhos.
- Não... não sei se aconteceu de verdade. - admite e eu começo a rir - É uma dessas histórias que viram lenda urbana, sabe? Escutei quando era criança. Deve ter acontecido com alguém!
- Ah-ham! Tenho certeza que sim!
- Ah, vai pro inferno. - ri - Dá pra pelo menos aceitar a lição da história? Esse é o seu problema: você tem que virar um vampiro.
- Sabe? A culpa é minha por querer buscar sabedoria em uma criança. - aponto.
- Minha vizinha entendeu algo que você se recusa a aceitar!
- Sua vizinha é uma obra de ficção!
- Que enfrentar nossos medos é uma decisão. Você pode ficar com esse papo de relacionamentos de seriado e sites de sugar baby o tanto que você quiser. Mas, se você quiser perder o medo de ficar com alguém, você tem que ficar com alguém e pronto. Você tem que decidir parar de ter medo. Vire um vampiro.
Ele sorri, resoluto, como se tivesse acabado de encerrar sua defesa de sucesso em um tribunal. Encaro seus olhos por um instante.
- Amanhã, quando minha amiga me perguntar sobre esse encontro, eu vou precisar contar pra ela que você me chamou de velha e me contou uma história sobre vampiros. Vai ser divertido ouvir o que ela vai dizer.
- Não esquece de dizer que eu sou gostoso.
- Pode deixar. - estou rindo.
Spencer observa algo atrás de mim com um interesse cuidadoso. Eu me viro e encontro Lucille, parada com as portas de vidro ainda entreabertas. Hesita porque não queria interromper.
- Só verificando se você está bem. - ergue um polegar, antes de voltar para o carro.
- Ah! Tudo bem! – respondo – Esse é o Spencer, Lu. Acabamos nos encontrando aqui de n... - Verifico as horas porque se Lucille parou o jogo das bolinhas eu devo ter demorado demais. -- Meu Deus. - encaro o relógio - Eu preciso... preciso ir!
Spencer levanta, levando as bandejas até o lixo.
Saímos juntos. O estacionamento está quase vazio.
- Qual o seu? - aponto para os carros e Spencer aperta os olhos.
- Ah, eu... eu estacionei na esquina.
- Vem comigo, então, te dou carona até seu carro.
- Não... não precisa. - engole em seco e eu pauso.
- Spencer.
- Hm?
- Você não tem um carro, não é?
- Eu não sei por que eu disse que tinha. - dá um tapa na própria testa como se não conseguisse entender como o próprio cérebro funciona.
- Diz seu endereço pra Lucille. A gente te deixa em casa.
- Não precisa.
- Está com medo de me dar seu endereço? Acha que vou voltar lá pra te roubar?
Os ombros dele caem quando revira os olhos.
- Não quero te incomodar.
- Não vou te deixar no meio da rua a essa hora.
- Eu sei me virar.
- Garoto. - rosno - Entra no carro.
Ele obedece e eu sei que Lucille está nos vigiando pelo retrovisor com seu meio-sorriso intrometido.
- Pra casa, chefe? - ela pergunta com um sorriso que vai de orelha a orelha.
Acho que o meio sorriso não foi suficiente.
- Não. Vamos deixar Spencer em casa, primeiro.
Ele diz o endereço e agradece mais uma porção de vezes.
Por alguns minutos, o ronco baixo do motor é tudo que preenche o silêncio. Verifico as mensagens no celular para me manter distraída enquanto Spencer bate os dedos contra o joelho.
- Espero que dê tudo certo entre você e o cara. - deseja, finalmente.
- Que cara? - Lucille se intromete.
- Obrigada. - falo alto, cortando-a - Mas não sei o que quero fazer, ainda.
- Se gosta dele, sabe o que quer fazer. Só está com medo.
- Marcus. - Lucille murmura para si mesma, porque já entendeu tudo - Marcus é "o cara".
Spencer olha de mim para Lu, com um sorriso confuso, tentando decifrar a natureza de nosso relacionamento.
- Todo mundo que trabalha pra mim é horrivelmente inapropriado. - explico, arregalando os olhos - Se você conhecer alguém discreto que não dê atenção pra vida alheia, pode dar meu telefone e dizer que eu estou contratando. - encaro Lucille pelo retrovisor quando digo isso, mas ela apenas ri mais um pouco.
O homem ao meu lado é largo. E quente. Sinto o calor dele no espaço onde nossos braços se tocam.
Respiro fundo.
Irrelevante.
- Bem... eu espero que você tome coragem. - dá de ombros - Essa coisa de encontros é como um músculo. Você precisa exercitar.
- É o que eu vivo dizendo. - Lu avisa.
- E eu tentei. - resmungo - Mas o site não deu muito certo.
- Você não achou esse daí no site? - aponta para Spencer - Com ele já foi um pouco melhor que os outros, não foi?
- Lucille...
- Você foi o melhor até agora. - ela me entrega - Ela perdeu a hora conversando com você e ela nunca perde a hora.
- Sério? - ele dobra o lábio e me encara com um olhar muito divertido.
- Não fique arrogante. - aviso - Além do mais...
- Por que vocês dois não fazem isso? - Lu sugere.
- Fazer o quê? - pergunto.
- Saem em encontros?
- Tentamos. - ele argumenta - Apesar dela ter perdido a hora, te garanto que foi um fracasso.
- Hm. E por que não fingem? Por que não saem em encontros falsos?
- E um encontro falso vai ser melhor que um de verdade? - Spencer pergunta.
- Ei, ei, ei. - paro a loucura - Ninguém vai a encontros com ninguém. Nem falsos, nem verdadeiros.
- Chefe, a ideia é boa: ele deve precisar de dinheiro. Ei, garoto, você precisa de dinheiro?
- Eu... ahm...
- Ele precisa de dinheiro. - Lucille decide - E você tem dinheiro. Ela tem dinheiro. - avisa para o garoto.
- Lucille... - repito.
- Vocês continuam saindo, a chefe te paga e vai ser como uma consultoria.
- Consultoria? - pergunto.
- De encontros! Olha, alguma coisa no encontro de vocês deu certo. Talvez continuar saindo com esse daí seja um bom modo de relaxar, chefe. Se acostumar com ter um cara por perto e um pouco de romance. Mesmo que falso! Só pra... exercitar o músculo. Até você se sentir mais a vontade para sair com o Marcus.
- Lucille. Não posso obrigar o Spencer a...
- Quem falou em "obrigar"? Espera. - ela já estava discando um número e nos colocou no viva-voz.
- Alô? Lu? - o timbre no viva-voz é um que eu reconheço imediatamente.
- Julia! - Lucille cumprimenta minha assistente - Estou aqui com um cara que vai ensinar a chefe a sair em encontros.
- Ah... certo...
Minha boca está aberta porque eu não acredito no que está acontecendo. Lucille continua:
- E eu quero saber quanto a gente pode pagar pra ele.
- "A gente"? - eu finalmente encontro as palavras.
Mas a confusão de Julia é maior que a minha:
- Lucille, o que diabos está acontecendo?
Spencer cobre a boca com a mão, mas suas gargalhadas são audíveis.
- A chefe teve um bom encontro! Tem um cara aqui no carro com ela.
- Mentira!
- Juro por Deus!
Eu me jogo contra o banco do carro, fecho os olhos e respiro fundo.
- Oi, cara no carro.
- Spencer. - ele se apresenta.
- Hmm, gostei da voz dele. Grave. Bonita.
- E ele é bem bonito também! Muito bonito mesmo!
- Obrigado.
Ainda estou de olhos fechados. Minha esperança é acordar na minha cama daqui a dez minutos e descobrir que isso tudo foi um pesadelo esquisito.
- A chefe perdeu a hora com ele, Julia.
- Ela NUNCA perde a hora.
- Foi o que eu disse! Escuta! Eu acho que eles deviam continuar saindo. Esse foi o primeiro que deu certo até agora e a chefe tá precisando voltar ao cavalo depois da queda e tudo o mais.
- FOI O QUE EU DISSE!
- Mas, nesse site as mulheres precisam pagar, não é? Não por sexo! - ela acrescenta. Parece ter dito isso diretamente pro Spencer e eu quero morrer. - Não se paga por sexo nesse site, eu acho - ela soa particularmente confusa - Essa parte ainda não me explicaram direito.
- Lucille, quieta! - Julia ri - Spencer, ela pode pagar seu aluguel e... o que você faz da vida?
Ele fica mudo e eu preciso abrir os olhos para ver o que aconteceu no universo. Spencer está me observando como se não tivesse certeza do que fazer.
Eu também não tenho certeza do que fazer.
Na verdade, a única certeza que eu tenho é que, se eu não fizer o que aquelas duas estão sugerindo, essa história vai chegar na Pamela e aí eu não vou ouvir o fim disso NUNCA MAIS. E pior: eu serei leiloada para um homem que tem toda intenção de me comprar e estragar sua própria vida por uma chance que eu sequer estou certa se quero lhe dar. Melhor ficar a frente da curva. Traçar um plano, estabelecer metas, cumprir etapas.
Ao contrário de toda a bagunça que aconteceu nos últimos minutos, essa é a parte que me deixa calma.
Respiro fundo e deixo a Tatiana Pragmática assumir o controle:
- Eu posso pagar seu aluguel. - confirmo - Um book novo e conseguir uma agência pra te representar. - o queixo de Spencer cai como se a lista fosse mais dinheiro do que ele sabia contar - E quando isso tudo terminar, em troca do seu cuidado e discrição, posso te dar... cinquenta mil dólares. - considero - Mas não preciso que me ensine a sair em encontros... Só preciso que seja meu namorado de mentira por algum tempo.
Vejo Lu estreitando os olhos pelo retrovisor.
Marcus está indo para São Francisco.
Só preciso ganhar tempo.
- Vou precisar de sua companhia para um evento beneficente, daqui a duas semanas. - inclino o rosto, tentando ignorar o peso da vergonha que começa a dar as caras - Não é black tie, mas ainda assim acho que era melhor sairmos para comprar umas roupas para você. Sabe? Para você não ter que pegar emprestado. - encaro sua camisa.
- Dá pra notar?
- Você não parou de mexer na gola a noite toda, parece que a coitada é sua inimiga.
- Meu amigo é menor do que eu. - admite.
- Vamos fazer compras. - decido. Eu amo a Tatiana Pragmática. Vê como ela conseguiu lidar com toda essa situação surreal sem gaguejar uma única vez? - Outra coisa: O evento é organizado por uma amiga minha e eu vou dizer pra ela que nós estamos... sexualmente envolvidos. Para que ela não me coloque a leilão.
Spencer me encara em descrença.
- Tem tanta coisa nessa frase que eu não entendi.
- Eles leiloam mulheres. - explico.
- Tipo escravidão? - faz uma careta horrível.
- É, Spencer. Eu sou uma bilionária, desenvolvedora de software de ponta, e vou, voluntariamente, me oferecer para escravidão. Ficou louco? É uma brincadeira que alguns eventos beneficentes fazem. Eles "leiloam" as mulheres. Os interessados fazem lances e o mais alto ganha um jantar com a acompanhante escolhida. Todo o dinheiro é doado. Todas as mulheres solteiras participam. Se eu aparecer nesse evento "solteira", Pamela vai me enfiar na lista para leilão. Então, se alguém perguntar, nós estamos juntos há um mês e sexualmente ativos. A parte do sexo é importante.
- Posso perguntar por quê?
- Porque essa minha amiga tem um fraco por sexo. Se eu disser que estamos apenas saindo, ela não vai me liberar. E, Spencer, eu não pretendo ser leiloada, entendeu?
- Sim, senhora. - sorri. Pela primeira vez na noite, seu sotaque sulista aparece forte. Esteve tentando disfarçá-lo pelas últimas horas. Talvez isso signifique que ele, finalmente, está a vontade. - Então talvez a gente devesse sair em outro encontro antes desse evento. Se você quer convencer sua amiga que estamos transando, vai ser melhor se a gente já estiver um pouco mais a vontade um com o outro.
- Tudo bem. Alguma sugestão?
- Se "estamos juntos há um mês", é importante a gente saber algumas coisas sobre o outro. Que tal... - ele pausa por um instante enquanto considera - vermos o filme favorito do outro? Cada um escolhe o seu. Assistimos os dois e eu cozinho o jantar?
- Ótimo. Na minha casa?
- Combinado.
- Chegamos. - Lucille avisa, mordendo a ponta da língua.
- Tchau, linda. - ele belisca minha cintura e me dá um beijo na bochecha, desnecessariamente perto da boca.
- O que está fazendo? - encaro-o, congelada.
- Se você vai fingir que é minha namorada é melhor fingir um pouco melhor. Porque depois que eu levo uma mulher pra cama, ela não fica tensa desse jeito.
A única coisa mais aberta que meus olhos é minha boca.
Não consigo colocar em palavras o...
- O que foi? - ele inclina a cabeça - Você disse que todo mundo que trabalha pra você é inapropriado, não é? Estou tentando me incluir na família. - pisca um olho, exibindo toda a glória do seu sorriso safado ladeado pelas covinhas inocentes. Algo em mim treme... bem de leve.
- Garoto, eu gostei de você! - Lucille defende, de imediato.
Ele ainda está rindo quando sai do carro.
- Chefe, eu gostei dele! Julia! Eu gostei muito dele.
Julia está gargalhando quando eu me enfio de volta no banco e peço a minha motorista que, pelo amor de Deus, me leve de volta pra casa.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top