Plumeria

Finais do século XVI

- Hibiscus roseus cum polline flavo*. - Murmurava entusiasmado Gonzalo enquanto fazia anotações no seu diário de viagem. - Hibiscus flavo**...

O grupo de conquistadores espanhóis seguia animado e, como não podia deixar de ser, extremamente barulhento. Pisadas pesadas devido ao peso metálico das armaduras dos nobres aventureiros aliadas à conversa em altos berros mesclada com risadas sonoras sinalizavam de forma explícita a multidão de invasores orgulhosos. Gonzalo, naturalista enviado pela Coroa para identificar as espécies exóticas das Índias, via-se atrapalhado com o tremendo alarido que os seus companheiros emitiam e que afastava até o mais minúsculo dos bichos. Tinha que se contentar com as plantas. Essas ao menos não fugiam.

Heliconia rubra foliis latis***... - Continuava o botânico.

- Para quê gastar tanto Latim? - Perguntou um dos castelhanos que seguia ao lado de Gonzalo, aparentemente importunado com os seus murmúrios. - Não te basta escrever e desenhar as flores? É preciso estar aqui a zunir-me aos ouvidos?

Como o mundo era injusto! Do grupo de conquistadores, Gonzalo era o que em maior silêncio se mantinha. Ainda assim, era ele que chamado à atenção era! Que hipocrisia! Incomodava a Hernando as rezas do naturalista, também Gonzalo se aborrecia com a barulheira injustificada dos outros! Não valia a pena criar atrito e desavenças. Se discutisse, ainda o abandonavam naquela ilha entregue às tribos canibais. Por isso, o estudioso continuou calado e de boca fechada.

- Se o tivessem levado para a Florida, estavam tramados. - Comentou Diego, chegando-se ao pé de Hernando.

- Qual Fonte da Juventude, qual carapuça! Enganaram-nos bem, aqueles indígenas. Só flores, flores por todo o lado!

- E Aztlán? Já encontraram?

- Essa é mais outra. Depois do Cortés derrotar os Aztecas, ou Mexicas, ou sei lá como é que eles se chamavam, lá conseguiram capturar o sobrinho do imperador. Mas o teimoso não quis dizer onde é que o povo dele escondia o ouro. Olha, acabou enforcado!

- Pelo menos o Cortés ganhou a aposta.

- Ganhou a aposta, mas meteu-se numa bela alhada com os Reis Católicos! Em vez de estar a explorar e a colonizar as Antilhas, desobedeceu ao superior para ir à procura de um suposto império imaginário! Teve a sorte de voltar de lá com o barco carregadinho de ouro e com uma princesa.

- Uma princesa? - Espantou-se Hernando.

- Dizem que era a primogénita do imperador lá do sítio. Mudaram-lhe o nome para Isabel. A outra, a que traiu o próprio povo, a Malinche, essa é que a casaram com um nobre qualquer e andou fugida!

- Também, tanto amor, tanto amor, mas assim que soube onde é que ficava a capital daquilo, desfez-se dela que foi num instante! Coitada da rapariga.

- Filha de Aztecas, o pai morreu, a mãe arranjou um Txalteca qualquer. Foi-se a mãe, o padrasto entregou-a para sacrifício. Enamorou-se o Cortés dela, foi caso sério para a comprar! Nem ouro, nem prata, nem platina, nem pedras preciosas, nem penas de quetzal, nada lhes servia. Levam os sacrifícios muito a sério. Cuidam que se não derem sangue aos deuses, o mundo colapsa.

- Então e os outros, aqueles que Pizarro encontrou no Sul?

- Os Incas? - Interrogou Diego, soltando uma gargalhada. - Queriam nos enganar, achavam que não tínhamos ouvidos. Falavam de uma cidade com homens feitos de ouro e, vendo que revelavam demais os seus segredos, logo disfarçaram para um ritual qualquer em que lançavam pó de ouro sobre os futuros governantes. Esqueceram-se que tínhamos um tradutor versado na língua maia!

- Mas se esse indivíduo era versado em Maia...

- Maia, Inca, Náuatle, vai tudo parar ao mesmo! Queriam esconder de nós o El Dorado! Ainda enforcámos uns quantos antes de nos indicarem a direção das montanhas que escondem essa cidade!

- E por acaso essa cidade lendária já foi encontrada?

- Ainda não, mas alguns conquistadores têm explorado dedicadamente os Andes. Se os Incas desembuchassem mais...

- Posso ser sincero contigo, Diego?

- Claro, amigo.

- Não acredito nem em cidades de ouro nem nessas histórias de juventude eterna e imortalidade. Acho que é uma completa perda de tempo!

- Como és capaz, Hernando? - Gritou o outro espanhol, cujo exibia uma cor vermelha furiosa. - Estas terras escondem muitos segredos!

- Alguém encontrou alguma coisa na Florida? Não. Alguém encontrou Aztlán? Não. Alguém encontrou o El Dorado? Não.

- Mas hão-de encontrar um dia! Se os nativos não se recusassem a contar os seus mistérios...

- E essas maravilhas não passarem de sonhos e de imaginação?

- Estás louco, Hernando! É impossível! Esqueceste que o Cortés derrotou um império cheio de riquezas que não era mais do que uma lenda até à sua conquista?

- Daí à Fonte da Juventude, ainda vai uma grande distância. É preciso muito desatino para acreditar nessas histórias.

- Mentira! Mentira! - Protestou Diego, aos berros. - A Fonte da Juventude existe!

- Não existe! - Ripostou Hernando, mais velho e mais terra-a-terra do que o seu companheiro. - É só uma lenda!

- Mentira! Mentira!

- Tanta gritaria, vocês os dois! - Interveio Gonzalo, zangado. - Tinha acabado de observar um exemplar de Trochilus viridis rostro longo, pectore caeruleo et capite obscuro****, que vocês afugentaram com a vossa discussão fútil!

- Que nome tão comprido, credo! Coitado do bicho! - Comentou Hernando.

- É que tenho observado muitos colibris diferentes. Tenho de os diferenciar.

- É que isso não é um nome, é um comboio!

- Chegaremos a um ponto na Botânica e na Zoologia em que os nominativos científicos serão tão longos que será necessário criar uma nomenclatura mais curta, uniformizada e aceite por todos os naturalistas. - Explicou o naturalista, esperançoso.

- Sim, sim, muito interessante! Quando encontrares flores e pássaros feitos de ouro, avisa-me! - Ridicularizou Diego. - Até lá, cala-te com o teu Latim! Como eu estava a dizer...

E o falatório gritante daqueles dois continuou em volume máximo. Permanecessem assim, até as ervas arranjariam maneira de fugir a sete pés. Aliás, parecia que as plantas estavam a pensar no assunto! Ao fundo, um arbusto movia as suas ramagens, ainda que o vento ali fosse inexistente. Depois outro. Depois mais outro. E outro ainda. Estranhamente em círculos, as folhas comunicavam umas às outras uma conspiração qualquer que implicava abanarem-se velozmente. Talvez o seu grupo e a sua agitação tivessem atraído algum predador fatal. Um puma, um jaguar, um bando de coiotes.

No entanto, aqueles movimentos, ainda que temerosamente rápidos, eram graciosos, leves e suaves. Olhos grandes, da cor do chocolate, bebida que calorosamente enchia a alma, feita de água que fervia com sementes de cacau e era depois aromatizada com baunilha requintada que disfarçava o sabor amargo. Cabelos longos, lisos e escuros emolduravam o rosto selvagem salpicado com traços coloridos que camuflavam a criatura humana com a paisagem. Pele bronzeada, figura esbelta, passos delicados como a flor tropical que adornava o cabelo. Cinco pétalas brancas encaixadas em rosácea natural perfeita, com dégradé amarelado no centro e rosado nas bordas.

- Plumeria... - Murmurou o viajante.

- Ah! Até que enfim que ouço um nome curto vindo dessa tua boca. Suponho que seja alguma flor feita de ouro. - Disse Diego com ironia. - Dado o nosso acordo, é bom que seja.

- Não há ouro, nem prata, nem platina que se compare com tamanha beleza. - Retorquiu Gonzalo.

- Capitão! Capitão! Capitão Felipe! - Chamava Diego, avançando entre o grupo de conquistadores com o intuito de alcançar o cavalo castanho cujo dono coordenava a expedição. - Capitão!

- O que é que se passa? Para quê tanta urgência?

- A ilha não está deserta! Acudam!

- Não está deserta?

- O Gonzalo diz que viu uma rapariga escondida atrás de uns arbustos. - Explicou calmamente Hernando.

- Podem ser canibais! Estamos feitos ao bife!

- Basta, Diego! Chega de alarido! - Advertiu Felipe. - Se forem canibais, fazemos como o Colombo fez quando chegou às Antilhas. Estamos com sorte, há um eclipse hoje.

- Mas é um eclipse lunar, e não solar. - Lembrou-se o naturalista.

- Podemos sempre argumentar que a Lua desaparecerá se nos cozinharem. - Disse o capitão. - Agora, chega de espalhafato e de clamor. Continuemos a expedição.

- Estranhos, altos e fortes, com um revestimento trabalhado da matéria cinzenta brilhante que a Natureza nos oferece nas suas minas, alguns montados em criaturas quadrúpedes com cabelo e cauda de fios ondulantes...

Toda uma povoação assombrada pelo relato da jovem Ititl se reunia numa clareira ladeada pela densa selva verdejante. Rostos boquiabertos, expressões de aflição caótica. Era o anúncio da chegada do Mal que se fazia ouvir. Profecias de dias sombrios que inesperadamente se realizavam. Adivinhava-se a queda de um povo, morto pela espada reluzente de lâmina afiada, pela traição, pela tortura, pelo cerco, pela fome, pela praga da doença que os invasores traziam. Proclamava-se a destruição e o findar de uma civilização que pelo tempo seria esquecida. Avizinhava-se a conquista e o apagar da História de um povo amaldiçoado, vá-se lá saber o motivo. Os deuses eram implacáveis e cruéis. Os Maias, reduzidos à Península de Yucatán, onde caiu a pedra espacial que ditou o desaparecimento dos lagartos colossais da face da Terra, fatigados pelas terras inférteis e pela escassez de recursos, com a chegada dos Conquistadores vindos de Castela tiveram o seu fim definitivo. Os Aztecas, confrontados pela certeira previsão mitológica do iniciar de um novo ciclo e da vingança de um deus por desavenças divinas, em menor número e tendo de lutar contra os Espanhóis e os seus aliados indígenas, ainda ofereceram resistência, fazendo jus ao seu título de filhos adotivos do deus da guerra, mas sucumbiram com as doenças malditas da varíola e da gripe, tal como os Chichimecas e todos os outros que viram nos homens que vinham do mar uma esperança de recuperar as terras que o Império de Tenochtitlán havia tomado. Os Incas, em guerra civil, tiveram os seus problemas bélicos ainda mais complicados com o anúncio do desembarque dos estranhos vindos de um outro continente distante. Seguir-se-iam os Tutitecas, assim dizia o futuro.

- Perturbam a Natureza e os nossos espíritos selvagens com o seu ruído... - Continuou Ititl.

A agitação tomou conta da plateia. Importunar os espíritos selvagens era uma das infrações mais graves que se conhecia na cultura Tutiteca. Aquele povo, assim como a maioria dos Mesoamericanos, era muito dado à Natureza, aos seus elementos, aos seus astros, às suas forças e, acima de tudo, aos animais que a habitavam. Não havia monstros, nem feras, nem predadores: só seres vivos que cumpriam o desígnio harmonioso da sua espécie. E os humanos, como criaturas da civilização, tinham a árdua tarefa de preservar a união entre a bicharada da terra, do ar e da água.

Os espíritos selvagens, que se apresentavam sob a forma de animais não-humanos, eram entidades conscientes e sábias que tinham o dom de perscrutar a verdadeira essência de alguém. A cada espécie animal era atribuído um conjunto de características e de qualidades que faziam o espírito selvagem encarnar naquele tipo de organismo. Por sua vez, cada membro genuíno dos Tutitecas possuía o seu próprio protetor, um espírito selvagem que estabelecia uma inquebrável união entre o humano e o animal.

- Devemos nos precaver e atacar antes que tenhamos de nos defender. - Apoiou um dos guerreiros da tribo.

- Não. - Contrariou Ititl, sacudindo as flores que adornavam os seus cabelos negros escorridos. - Nem todos têm perturbado a Natureza. Estaríamos a castigar injustamente algumas almas.

- Mas que fazem eles nas nossas terras? - Perguntou uma anciã. - Coisa boa não deve ser.

- E não é! Vêm-nos saquear, roubar, massacrar e conquistar, tal e qual como fizeram com os outros povos. É por isso que eu digo que devemos atacar primeiro, para que não tenhamos o mesmo destino dos nossos irmãos.

- Talvez queiram só explorar, admirar a beleza destas paragens. - Argumentou a jovem que observara os forasteiros. - Havia um que tocava com mãos compreensivas as ramagens, as folhas das árvores, as flores, e copiava as suas formas para finas e suaves tábuas maleáveis retangulares.

- Um fazia isso. Então os outros?

- Há muito que se ouve falar nessas gentes. Nunca têm boas intenções, mesmo quando parece que as têm. São a encarnação dos espíritos malignos e traiçoeiros.

- Não estaríamos a ser melhores do que eles ao atacar fundamentando-nos em suposições e intuições. - Arguiu a rapariga.

- De uma coisa eu sei: - Rugiu o guerreiro, convicto. - deem eles um mínimo passo em falso e nós lançaremos as nossas flechas!

Uma chuva de apoio ecoou por toda a selva, a par de lanças elevadas em direção aos céus. Estava levantado o estado de guerra. A posição de Ititl havia perdido. Mas o coração e a emoção continuavam lá, indestrutíveis, sólidos e eternos. E contra o amor nada vence.

A noite erguera-se no céu e cobrira a Terra com a sua escuridão apenas interrompida pela esfera brilhante, luminosa e redonda que é a Lua. Com as gargantas já gastas de tanto linguajar, os Conquistadores seguiam sorrateiros pelos arbustos, árvores tropicais e palmeiras. Estava calor, um abafado típico de uma ilha quase em cima da linha imaginária que divide o Globo em Hemisfério Norte e Hemisfério Sul. Mas o desejo, a ganância eram maiores do que o incómodo climático. Assim sendo, os Castelhanos recusavam-se a largar as pesadas armaduras ou a abandonar as espadas, sacrificando os cavalos cansados a transportar tamanho peso.

Ao fundo, ouviam-se vozes suaves e cânticos compenetrados. Movidos pelo desejo insaciável de conquista e destruição, os Espanhóis seguiram o som.

Afastado o último arbusto tropical que delimitava a fronteira entre a selva densa e a civilização humana, uma pirâmide de escadas erguia-se orgulhosamente no meio do mato. Alguém vestido com pouca roupa acendia solitariamente as tochas no último patamar da construção, ignorante dos atentos olhos sanguinários que observavam o ritual.

- Deve ser um templo. - Murmurou Gonzalo.

- Desde que tenha ouro, não interessa o que é, nem que tenhamos de lavar o sangue das taças como Cortés fez. - Retorquiu um dos Conquistadores, de nome Juan.

- Talvez estejam a comemorar o eclipse. - Sugeriu o naturalista. - É melhor não interferirmos.

- O quê? Quero lá saber se estão ou não a comemorar seja lá o que for! Estamos aqui para conquistar! Atacar!

- É imprudente. Somos meia dúzia de gatos pingados contra todo um povo! - Ainda tentou dizer o botânico e zoólogo.

- Adelante, Castelhanos! Atacar! - Clamou o capitão Felipe.

Nada havia a fazer. A batalha, movida pela ganância, tinha início. Sangue derramado sem motivo palpável senão a cobiça e a mesquinhez, mortes e cicatrizes evitáveis. Não tardou a que as imediações do templo se tornassem um verdadeiro campo de batalha, com espadeirada para um lado, flechas para o outro, um raro tiro de uma arcaica arma de fogo a pólvora, umas quantas lanças e muita dor.

Ouviam-se gritos. Desespero, choro e sofrimento compunham a música do temeroso evento. Gonzalo, ali metido no meio do cenário bélico, tentava chegar-se para trás, pôr-se a um canto. Os seus companheiros de viagem caíam atordoados um por um, atingidos por fatídicas flechas, impregnadas com o mortal veneno do tegumento das rãs dos Trópicos, que provocavam o colapso dos seus alvos mesmo quando os atingiam em zonas do corpo tidas como não vitais. Triste era a guerra.

Porém, o cheiro delicado a flores frescas irrompeu as narinas do naturalista, trazendo uma sensação de conforto e uma estranha esperança familiar. Virou-se. Uma figura conhecida puxava-o pelo braço em direção à selva. Gonzalo, com as forças a abandonarem-lhe o corpo devido ao cenário horrendo que os seus olhos assistiam, deixou-se levar.

O Sol espreitava sorrateiro através da entrada da gruta. Gonzalo, ainda abalado pelos acontecimentos da noite anterior que dificilmente se apagariam da sua memória, olhou em volta. Uma figura feminina esbelta e de traços elegantes regressava com um cesto com carne fresca já cortada, frutas e bagas. Pelos vistos, a ameríndia era uma habilidosa caçadora, papel que, no mundo de Gonzalo, jamais seria conferido a uma mulher. Os olhos da recém-chegada e do naturalista encontraram-se por um breve instante. Olhares profundos e confiantes de quem se entrega ao outro até além da eternidade. A íris castanha do Castelhano fundiu-se com a íris cor de chocolate de Ititl. Juramento permanente de proteção, carinho, companheirismo, afeto e compreensão que ali era escrito. Bem-vindos ao Amor.

Terminada a refeição, o casal embrenhou-se na selva de densas árvores tropicais de folhas cerradas. Os pássaros conversavam animadamente ao som do despertar da manhã, as rãs coaxavam alegres. Harmonia natural perfeita, transportada para um caderno pelo jovem naturalista. Ititl espreitava curiosa. Apercebendo-se do interesse da rapariga, o Espanhol começou a folhear as páginas em que estavam representadas as mais variadíssimas espécies animais e vegetais do Novo Mundo. Falava e explicava feliz, para perplexidade da Tutiteca que não percebia uma palavra de Castelhano. Vendo o sobrolho franzido da indígena, Gonzalo apressou-se a se calar. Assim seria. A verdade é que, por vezes, gestos, atitudes e olhares valem mais do que longos e maçadores discursos.

Exploraram a selva entre risos, gargalhadas e gritinhos alegres. Como os cantos dos lábios da Tutiteca ficavam belos quando sorria. Globos oculares a brilhar, aos quais o canto eufórico dos papagaios se associava em cumplicidade.

Rompendo a paz selvagem, um jaguar subiu a uma rocha e, anunciando o seu reinado, soltou um rugido forte e potente. Gonzalo, apavorado, tratou de se precaver, recuando lentamente. Pelo contrário, Ititl parecia confortável com a presença do felino e instigou o estrangeiro a permanecer quieto onde estava.

O animal aproximou-se cautelosamente do jovem. Primeiro uma pata, depois a outra. Avançava com prudência na direção do naturalista, cuja espinha estremecia com arrepios de temor.

Chegado ao humano aterrorizado, o carnívoro franziu o nariz. Parecia que pedia permissão para captar o odor singular do explorador. A Tutiteca puxou o pulso do seu apaixonado, instruindo-o a dar a conhecer a sua mão ao predador. Com o pressuposto de que a indígena conhecia melhor a fauna e a Natureza da zona do que qualquer europeu, Gonzalo, enchendo-se de coragem e enfrentando os seus receios, obedeceu. O jaguar, num primeiro momento, também ele receoso, cheirou a mão do jovem com cuidado. Em seguida, vá‐se lá saber o que é que lhe deu, como gato de casa, roçou a sua cabeça na palma do naturalista.

Ititl contemplava satisfeita a interação entre o Castelhano e o jaguar. De repente, com uma súbita alegria que Gonzalo nunca vira, a Tutiteca soltou um chamamento típico das aves. Esvoaçando ao sabor da brisa com as suas belas asas, uma enorme arara vermelha não tardou a aparecer. Pousou confiante no braço da nativa, como se já a conhecesse desde sempre. A mulher fez-lhe uma festa terna, que a ave agradeceu com um piado melodioso.

A Tutiteca exibiu ao Espanhol uma pena vermelha que completava o seu penteado floral. Apontou para a arara. Depois, dirigiu o seu indicador no sentido de Gonzalo, deslocando-o em seguida para o jaguar.

O naturalista ficou mudo. Que raios é que a indígena queria? Jaguares não têm penas.

A rapariga repetiu a sequência de gestos e pronunciou uma série de palavras desconhecidas aos ouvidos do europeu. O que é que ela queria? Que arrancasse um tufo de pelo do felídeo?

Perante a insistência de Ititl, Gonzalo aproximou-se a medo do animal, que estranhamente se curvou numa vénia solene. O naturalista, a suar, respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar puro da selva tropical. Cuidadosamente, cortou uma mecha de pelo do predador impávido e sereno. A Tutiteca pulou de contentamento. Com uma ramagem flexível, a ameríndia fez um colar com o pelo do jaguar e colocou o acessório à volta do pescoço do Castelhano, dizendo um palavreado qualquer que se assemelhava a umas rezas.

Aproveitando-se do momento a sós que o par tinha, o naturalista encostou os seus lábios na boca da jovem. Para espanto do europeu, a mesoamericana afastou a cara e limpou o beijo. Talvez tivesse sido um pouco precipitado. No entanto, a rapariga não demonstrava quaisquer sinais de repúdio, bem pelo contrário. Com um sorriso no rosto, a indígena levou pela mão o enamorado. Se calhar, o amor ali não se expressava com beijos, mas com colares de pelo de jaguar.

- É muito insensato, Ititl. Ele é uma ameaça para o nosso povo.

- É impossível, pai. O espírito selvagem dele é um jaguar, o animal mais nobre, imponente, sábio e corajoso do nosso mundo.

Um burburinho percorreu a população incrédula. Ter como espírito selvagem um jaguar era raríssimo. Nem alguns dos grandes guerreiros tinham a honra de serem abençoados pelo felino que governava os Trópicos.

- Ele é diferente dos outros.

- Mas integrava o grupo de invasores que atacou o templo durante o eclipse. - Afirmou alguém.

- Ele passou a noite na selva, entre os nossos irmãos? - Quis saber o feiticeiro.

- Sim. - Assentiu a rapariga. - Sou testemunha.

- E um jaguar escolheu-o?

- Sim. Um jaguar saudável, forte e jovem.

- E ele cumpriu o ritual?

- Sim. O amuleto está pendurado no seu pescoço. - Retorquiu a indígena, chegando-se ao seu amado e mostrando aos Tutitecas embasbacados o tufo de pelo do animal silvestre.

A discussão prosseguia intensa. Apesar de não perceber uma palavra do que os ameríndios diziam, Gonzalo lia nos seus rostos pensativos uma certa incerteza prudente. Não era de estranhar. Os Conquistadores, dada a sua ganância por vezes satisfeita com recurso a meios pouco éticos, tinham construído uma certa má fama entre os mesoamericanos.

- Mesmo assim... - Principiou o progenitor de Ititl. - Não sei se será boa ideia.

- Não podemos condenar todo um povo pelos erros de um conjunto de indivíduos. Ele adora a Natureza.

E, sem aviso prévio, a jovem arrancou o diário de viagem do naturalista da mala que transportava a tiracolo. O Castelhano pareceu incomodado. Porém, a rapariga lançou-lhe um olhar de "confia em mim". O europeu assentiu com a cabeça, dando a sua permissão para que o caderno passasse pelo manuseamento de cada Tutiteca presente.

Ouviam-se murmúrios de espanto e cochichos particulares. O coração de Gonzalo batia descompassadamente. Fosse lá o que fosse que se decidia ali, tinha a ver com a sua pessoa. E o assunto era sério, pelo que as expressões graves dos nativos davam a entender.

- A decisão final é do chefe. Entre nós, há  uma divisão bastante igualitária.

O líder Tutiteca permaneceu durante morosos instantes reflexivos em silêncio surdo e mudo. Pelo contrário, a população alvoroçada trocava conversas agitadas e discordantes que iam aumentando de volume.

- O estrangeiro ficará. - Declarou o chefe dos ameríndios. - Um espírito selvagem como um jaguar só escolheria uma alma justa e generosa. Devemos respeitar a vontade daqueles que contemplam o interior humano.

Ititl deu um pulo de alegria e abraçou Gonzalo com força. Fosse o que fosse que se tivesse passado naquele consílio, a decisão aparentava ser favorável ao naturalista.

O Castelhano, mesmo que fosse ignorante do que fora dialogado entre os Tutitecas, compartilhava a felicidade da jovem de cabelo enfeitado com plumérias doces e perfumadas, flores que determinariam o nome carinhoso pelo qual a nativa era chamada pelo seu apaixonado. Retribuiu o abraço. Seguiram-se momentos daqueles que nunca se esquecem, por mais anos que passem. O toque suave da pele da indígena aliava-se ao canto harmonioso e magistral da arara vermelha. Por seu lado, a ternura do europeu era completada pelo ronronar mimado do jaguar. Ititl e Gonzalo, arara e jaguar, ave das palmeiras altas que cruza os céus e mamífero do solo, juntos eternamente através da árvore que transcende mundos, onde a arara pousa e o jaguar repousa.

Notas:

* Hibisco cor de rosa com pólen amarelo

** Hibisco amarelo

*** Helicónia vermelha de folha larga

**** Colibri verde de bico longo, peito azul e cabeça escura


(3882 palavras)

Monte, 2024

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top