Os Janeiros Com Você
Nome: Os Janeiros Com Você
Gênero: Romance, Drama, Comédia
Sinopse: Se passaria em 10 janeiros diferentes, acompanhando o crescimento da amizade (e do romance) de Benjamim e Wallace, desde os 11 anos de idade até os 21. Ao longo dos anos eles descobririam mais sobre si mesmos, lidariam com as frustrações da infância, as inseguranças da adolescência e as incertezas do início da vida adulta. Sendo que a narração alternaria entre os pontos de vista do Wallace e do Ben.
Média de capítulos: 11.
Capítulos escritos: 3.
Por que eu parei de escrever?: Wallace é um personagem complexo. Ele é um personagem que durante a infância vive em uma família abusiva e conturbada, ele tem que lidar com um pai alcoólatra e, quando chega a adolescência, com o abadono da mãe. Ele tem que aprender a entender e aceitar sua sexualidade sendo um personagem que mora no interior durante os anos 2000. E eu também resolvi apresentar esse personagem como trans. O problema? Eu sou uma garota, hétero de 17 anos. Eu não tenho a vivência e muito menos o estudo necessário para escrever esse personagem de uma forma madura e respeitosa, ele é um personagem complexo e eu gostaria de poder fazer o Wall ser o mais realista possível. Além disso, eu não quero desrespeitar ninguém ou romantizar certas coisas. Ben também é um personagem complicado, mas eu consegui trabalhar melhor com ele porque seus conflitos são mais próximos daquilo que eu já vivi e tenho mais propiedade para falar.
Pretendo voltar a escrever?: Totalmente! Estou no primeiro semestre de psicologia, talvez daqui alguns anos eu possa usar isso para complementar minhas visões e fazer um trabalho melhor.
Aproveitem ⏳
Eu não estava feliz com a viagem. Ficaria tudo bem se me deixassem em casa durante todo período de férias escolares. Lá eu tinha minha coleção completa de carrinhos hot wheels, todos os animais da Fazenda Feliz do Bob e o mais novo Super Smash Bros, pronto para ser jogado durante todo o verão.
Estava fazendo dois meses que papai havia morrido e mamãe, depois de contar a boa e velha história do "ele foi para um lugar melhor" começou a se desesperar quando percebeu que eu não estava lidando muito bem com o luto.
Provavelmente ela estava certa. Eu ainda esperava que meu pai entrasse pelo portão gritando o que teríamos de sobremesa, como fazia todos os dias quando chegava do trabalho. Eu esperava pelos beijos de boa noite, pela pipoca antes dos jogos de futebol na quarta e o pagamento de todas as apostas que ganhei jogando bolinhas de gude na sala com ele.
Quando papai morreu, mamãe teve de começar a trabalhar, e quando isso aconteceu, eu me desesperei. Pelo menos é o que me contam. Meu rendimento escolar caiu, eu não estava me alimentando direito e comecei a ter problemas para conseguir dormir.
Preocupada que durante as férias eu pudesse me tornar um delinquente juvenil precoce, mamãe decidiu que me faria bem passar um tempo com a minha vó em sua casa no interior. Vovó gostava da paz do campo e odiava os altos sons da cidade grande, por isso tirava férias todo mês de janeiro, procurando fugir da cidade e de todos os turistas ansiosos para o carnaval.
Então, dia 8 de janeiro, eu fui posto no banco do meio de um carro muito azul e muito apertado, a cara cheia de protetor solar, setes soldadinhos de plástico entre as mãos e uma sensação de desolação que só as crianças são capazes de sentir. Uma dorzinha que aparece no coração quando não temos escolha do nosso destino, algo irracionalmente comparado ao abandono.
Mamãe não sabe disso, mas dentro daquele carro segurei minhas lágrimas por todo o caminho, me perguntando se ela iria me abandonar assim como o papai. Eu não sabia quando voltaria para casa, nem aonde estavam me levando, ninguém achou que fosse necessário me contar, porque os adultos nunca acham que as crianças merecem explicações. Senti medo, mas prometi ao papai que seria forte quando ele se fosse, então não chorei.
Minha família achava que eu era muito pequeno para entender, a morte, o luto, o abandono. Eu era mais esperto do que pensavam.
Sete horas depois conheci o que julguei ser minha nova casa. Era um grande retângulo de concreto, pintado de azul e com telhas amarelas, posicionado em um gramado torrado de sol e circulado por um muro baixo que até mesmo eu, com meus 1,34 de altura, conseguia pular.
Saímos do carro para o almoço. Macarrão com almôndegas e suco de uva. Organizei minhas coisas no "meu quarto", um dos cômodos do fundo, com um armário cheio de cupins e um beliche bambo demais para que eu ousasse tentar chegar à cama de cima. Tinha paredes verdes descascadas, uma porta que não fechava e duas grandes caixas com cobertores e travesseiros.
Ao entardecer eu, vovó e minhas duas tias, Melissa e Tânia, fomos conhecer o bairro. Era um lugar pequeno, pouco mais de cinco mil habitantes, sendo que a metade apenas vinha passar o final do ano e iam embora no início de fevereiro.
Perto da nossa casa havia uma avenida com um supermercado, uma loja de roupas, duas igrejas, uma farmácia e uma locadora de DVDs, cujo todos os filmes lançamento eu já havia visto no ano passado. Descendo a rua ficava uma pequena escola com paredes coloridas, uma sorveteria e uma pizzaria.
Voltamos para casa ao entardecer. Tomei banho com uma água mais quente do que pensei que seria, comi duas fatias de pizza e deitei na cama de baixo do beliche. A noite passou ao som dos incômodos ruídos de grilos e cigarras, mas meu cansaço foi tão grande que não pude me importar.
A manhã foi preenchida com biscoitos, pães dourados e um café forte demais para meu paladar viciado em açúcar. Depois enrolei tia Tânia para não a ajudar a lavar o carro, fiz o suco do almoço e posicionei meus brinquedos em ordem crescente no parapeito da janela.
De tarde, tia Mel achou que era uma boa ideia tomarmos sorvete. Ela me chamou para acompanhá-la até a sorveteria, mas estava ocupado lendo, de novo, meu gibi do Cebolinha. Eu não fui com ela.
Estava sentado sob o sol, a grama seca espetando minha pele de maneira incômoda e o suor se fazendo visível como uma grande mancha bem no meio da regata de um dos personagens do Quarteto Fantástico que usava. Mamãe ficaria furiosa se soubesse que não passei o protetor solar. Ao meu redor haviam pequenos sons de pássaros e o silêncio tedioso das tardes em bairros calmos.
Toda a confortável tranquilidade foi abalada quando a porta da casa ao lado bateu. Franzi o cenho ao tomar um susto com o barulho repentino. Que falta de educação.
— Merda — ouvi uma voz infantil reclamar. — Não devia ter deixado a porra da comida queimar.
Eu fiquei surpreso, mamãe cortaria minha língua se soubesse que sequer pensei em um palavrão. Estiquei o pescoço por cima do muro e foi quando vi, pela primeira vez, o Wallace, irritado com algo que seu pai disse e possivelmente segurando as lágrimas.
Wallace se parecia com as crianças que estrelavam as séries do Disney Channel, ele tinha cabelos loiros que iam até os ombros, pele dourada por conta do sol, sardas decorando suas bochechas, dentes tortos recém-chegados e um par de olhos cor-de-mel. Usava chinelos que sem dúvida tinham pregos embaixo, uma bermuda azul encardida e uma camiseta do Bob Esponja com dois furos na axila.
Voltei meu olhar para a revista. Não era bom em interagir com as pessoas, era do tipo que se escondia no banheiro para evitar visitas e atravessava a rua para não cumprimentar meus colegas de classe.
Do meu lugar podia ver a cabeça de Wallace, ele tinha uma expressão engraçada, enquanto varria a frente da sua casa. O quintal dele conseguia ser pior do que o da minha vó, o que significava muito, porque ela só ficava em casa uma vez por ano. Não havia grama, só um longo caminho de concreto cinza e áspero, inúmeras sacolas com latinhas de cerveja e um amontoado de madeira, lixo reciclável, caixas de papelão, peças de automóveis, entre outras coisas não identificáveis, tudo coberto por uma lona preta cheia de furinhos.
Por maior que fosse a minha vontade, minha leitura não tinha mais chances, estava muito consciente do garoto da minha idade há poucos metros de mim. Eu não sabia iniciar conversas, então minha mente vagava por vários cenários onde simplesmente fôssemos amigos de longa data. Cenários onde pulávamos o "Qual é o seu nome?" e "Prazer em conhecê-lo" e poderíamos apenas compartilhar piadas internas na sala da minha casa. Inícios de amizade sempre foram estranhos para mim.
— Merda — o ouvi resmungar de novo.
E mais uma vez ergui o pescoço. Não pude deixar de rir vendo sua briga com a vassoura e a pá, o garoto tinha a língua para fora e as sobrancelhas franzidas.
Ao ouvir minha risada ele levantou a cabeça, seus fios loiros balançado levemente com o movimento, sua boca se abriu em um ligeiro "o" espantado. Como a boa criança tímida que era desviei o olhar no mesmo momento, virando a página do gibi com o intuito de que ele não viesse falar comigo quando notasse que já estava ocupado com outra coisa.
— Ei, Ben — gritou em minha direção, apoiando-se no baixo muro alegremente.
Ergui a cabeça assustado, as sobrancelhas franzidas em um gesto nervoso.
— Como você sabe o meu nome? — perguntei na minha melhor voz de criança-sabe-tudo.
— A camiseta? — apontou para meu peito. — Achei que não seria educado chamá-lo de Coisa, ele é sensível sobre isso. Seu nome também é Ben?
— Benjamim— murmurei com um encolher de ombros, voltando às páginas do... Cascão? Magali? Mônica? Eu não estava mais interessado.
— O do Coisa também — concluiu, a vassoura sendo esquecida para falar comigo, o estranho garoto novo da casa ao lado. — Coisa. Posso te chamar assim? — Não respondi. — Seria um apelido melhor se fosse uma camiseta do Senhor Fantástico, não é?
Gostaria de dizer que ele não foi o primeiro a fazer essa piada (tia Mel passou na frente), que era Benjamim com “M” no final e que não tínhamos essa intimidade, então não, ele não poderia me chamar de Coisa.
— Se for assim, vou chamá-lo de Bob Esponja.
— O que você disse? — levou as mãos as orelhas para demonstrar que não entendeu.
Apertei meus lábios para não repetir. Eu queria que ele fosse embora, não éramos amigos e nunca seríamos. Eu queria que ele desistisse como todas as outras crianças faziam quando percebiam que não iria respondê-las.
Não é como se eu fosse um menino mal-educado, mas sempre que falavam comigo eu travava, minhas cordas vocais falhavam, ninguém conseguia ouvir minha voz. As pessoas me faziam perguntas e quando eu não respondia, não conseguia responder, sentia seus olhares pesarem, julgando minhas atitudes.
— Você não é de falar muito, é? — ele não esperou por uma resposta. — Tudo bem, papai também é assim as vezes, sou o único que fala na minha casa. Sou Wallace, a propósito. Você vai morar aqui agora? Vai ser legal ter um vizinho da minha idade. Você tem minha idade, não é? Tinha um peixe da minha idade, mas ele morreu. Papai o jogou na descarga. Ei, o que você está lendo? Também gosto de gibis, mas não tenho muitos...
Encarei Wallace com grande interesse, deixando a revistinha de lado para analisá-lo. Sentado em cima do muro que separava nossas casas, o que mais tarde chamamos de Ponte Para Terabitia (filme preferido do Wall), balançando as pernas, fazendo perguntas e não esperando pelas respostas. Wallace era diferente das outras crianças com quem tinha contato e, para meu alívio, ele não me julgou, não deduziu coisas estranhas sobre mim ou se afastou. Ele entendeu. Talvez estivesse acostumado a ser ignorado, pensei.
Ficámos ali no sol por uns seis ou sete minutos, o que, no tempo das crianças, se equipara há longas horas. O fluxo constante de conversação me deixou confiante o suficiente para balançar a cabeça ou sorrir para suas piadas, apenas o suficiente para que ele soubesse que estava ouvindo. Achei que isso o incentivou, sua voz ficando mais alegre e seus gestos mais amplos, quase teatrais.
Foi no meio da sua opinião sobre como o morango era a melhor fruta do mundo que tia Melissa chegou, trazia uma sacola cheia de picolés, a teste brilhando de suor por causa do calor.
— Ben, você deveria ter vindo comigo... — ela alternou o olhar entre nós quando percebeu Wall. — Quem é o seu amigo?
Wallace sorriu tímido, olhando para baixo, levando uma das mãos a orelha em um gesto envergonhado.
Acostumada com minha dificuldade de interação, tia Melissa esperou paciente por uma resposta. Wallace foi mais rápido do que eu em dá-la.
— Moro aqui do lado, mas já estou indo embora — apontou para sua casa, descendo do muro. — Vou deixar Ben terminar sua leitura em paz.
— Não, não, não, fique para um sorvete — tia Melissa disse em tom quase desesperado, mal disfarçando sua alegria por me ver interagindo com outro ser humano além da minha família. — De que sabor você gosta?
A mão de Wallace travou em sua orelha, os ombros encolhidos, as bochechas tingidas de vermelho. Ele parceria tão deslocado quanto eu, se não mais.
— Ben, de que sabor ele gosta? — minha imperativa tia insistiu.
— Morango — respondi, recebendo um olhar chocado do garoto.
Tia Melissa cavou em sua sacola em busca do picolé de morango, encontrando primeiro o meu.
— O de sempre — falou, jogando-o em minha direção.
Abri a embalagem devagar, sorrindo aliviado quando finalmente provei a delicia azeda de limão, afastando a atenção incômoda do sol quente. Observei como Wallace hesitou antes de estender a mão e aceitar o picolé da minha tia, soltando um obrigado sussurrado.
— Vou deixar vocês dois, a mãe deve estar ficando louca com a minha demora — despediu-se do seu jeito, sumindo pela porta da frente.
Um pouco mais confiante com a repentina quietude de Wall, levantei-me, indo em direção ao muro para ficar mais perto dele.
— Você estava me ouvindo — ele exclamou, também se aproximando.
— Você estava falando comigo.
— Geralmente as pessoas não me escutam de verdade — confessou, ficando quieto por uns segundos enquanto mordia o picolé.
— Eca, como você consegue morder isso?
E então ele voltou a sorrir. Sapeca, animado e cheio de energia.
— Papai diz que sou resistente. Você não consegue? Co...
— Não, eu não consigo.
Ele me encarou chocado novamente quando o respondi. Mordeu o picolé, sorriu e voltou a falar, dessa vez me dando tempo para responder as suas perguntas e fazer outras em troca.
Ficamos conversando até o anoitecer. Contei a ele do meu pai e que talvez fosse morar ali para sempre; falei da cidade, dos pássaros do meu vizinho e de como queria ser um policial quando crescesse. Wallace contou da fada que viu em seu quintal, das bancas de jornais e das galinhas que o moço no final da rua criava e que acordavam todas as casas próximas logo cedo.
Essa foi a primeira vez em muito tempo em que me diverti com alguém de verdade. Nós rimos, trocamos segredos e brincamos com alguns soldadinhos que levei para fora. Quando anoiteceu minha vó me chamou para tomar banho com um ligeiro grito que todos na rua devem ter ouvido.
— Eu tenho que ir — olhei para a porta, lá dentro conseguia ver minha vó esquentando o jantar. Era macarrão de novo?
— Beleza — disse Wallace indiferente, mas então: — Amanhã podemos conversar de novo? — sua voz mais baixa e insegura.
E eu não poderia ter ficado mais feliz, porque se ele não tivesse perguntando, eu não teria feito.
— Claro! — devo ter parecido mais alegre que o apropriado, se sim, Wallace não falou nada. — Amanhã no mesmo horário. Tchau, Wall!
Voltei para dentro de casa acenando, rindo contente por ter feito meu primeiro amigo em muito tempo.
Durante o jantar as três Mulheres da Minha Vida me encheram de perguntas, animadas por eu, nas palavras da tia Tânia, "finalmente estar superando a situação e socializando como uma criança normal".
Dormi sem me importar com as cigarras, grilos, brigas dos vizinhos e a conversa das minhas tias ao telefone com a minha mãe. Foi um dia legal.
☼•°•°
No dia seguinte fiquei surpreso ao acordar com o canto do galo, tal como Wallace havia me dito. Animado com a oportunidade de brincar com meu novo amigo durante o dia todo, tomei banho logo cedo e escovei os dentes, recusando o tradicional leite com Toddy que costumava tomar toda manhã, estava pronto para esperar por meu amigo.
Ainda era muito cedo, então minha vó não me deixou sair. Fiquei trancado no quarto inquieto, subindo pelas paredes. No final, aceitei o leite e mais um pão quente com mortadela, também conversei com a minha mãe, que garantiu que eu iria voltar para casa no mês seguinte. Não sei se acreditei nela.
Às nove deixaram eu sair.
Segui para o quintal com dois bonecos do Goku e uma caixa de blocos de montar, esperando que Wallace aparecesse mais cedo... Sem criar expectativas, é claro.
Goku e Goku fizeram uma viagem espacial de três horas até o Castelo Torto de Peças (que construí com mais uma hora) nesse tempo não vi nenhum sinal de Wallace. As janelas e portas da sua casa estavam fechadas, mas havia barulho de panelas e armários batendo uma vez ou outra. Primeiro pensei que talvez Wall ainda não estivesse acordado. Depois ouvi sua voz gritando alguma coisa, então pensei que ele não queria me ver.
Voltei para dentro de casa na hora do almoço. Tia Mel se ofereceu para ir até a casa de Wall convidá-lo para comer com a gente.
— Melhor não — disse baixinho, nesse tom magoado infantil, meio manhoso demais.
Passei o resto do dia dormindo, não foi uma boa ideia acordar com as galinhas.
Acordei com alguém batendo na janela. Com um bocejo sonolento, caminhei cambaleante até as cortinas azuis comidas por traças, apenas para encontrar Wallace. Parecia o mesmo, exceto por um band-aid perto do olho esquerdo, alguém desenhou uma aranha em cima dele.
— Ei, Bem, tá na hora do pau?
— O que você está fazendo aqui? — perguntei confuso.
— Ah, bom, marcamos de nos encontrar, mas você não estava no quintal, então... — atrapalhou-se com as palavras.
— Não, quero dizer, o que está fazendo na minha janela? Por que não entrou pela porta?
Ele encolheu os ombros, um sorriso tímido nos lábios. Agora que estávamos mais perto, conseguia ver uma cicatriz pequena no topo da sua testa e a sugestão de uma covinha na bochecha direita, o que me lembrava:
— O que aconteceu com seu olho?
— Maneiro, não é? Me cortei tentando fechar a janela — apontou para algo atrás de si.
Pela primeira vez notei que meu quarto e o de Wall ficavam um de frente para o outro. Eu não conseguia ver muita coisa, além de paredes cor de creme e cortinas vermelho vinho.
— É melhor você entrar pela porta, é menos estranho.
Não esperei por uma resposta, saindo do quarto e indo em direção a entrada de casa. Wall pareceu minúsculo perto das minhas tias e da minha vó, que o encheram de perguntas e enfiaram-lhe na boca inúmeros biscoitos de polvilho, sob o pretexto de que ele estava magro demais, o que era verdade, mas ainda mais verdade era que ninguém queria provar os biscoitos da tia Tânia.
— Desculpe, desculpe — pedi assim que consegui arrancar Wall das garras educadas da minha família.
— Tá tufo nem — disse ainda mastigando um biscoito.
Fiz uma careta de nojo, tirando do parapeito da janela os poucos brinquedos que havia trago para passar as férias.
Wall ficou encantado. Ele me contou que não haviam lojas de brinquedos por perto, todos os seus eram ganhados ou achados em brechós. Fiquei com pena e prometi deixar meu Aquaplay novo para ele caso fosse mesmo embora em fevereiro.
Quando anoiteceu Wall precisou ir embora, dessa vez pela janela, ou minhas tias iriam obrigá-lo a ficar para o jantar.
— Podemos fazer isso de novo amanhã? — dessa vez fui eu quem perguntei.
— Seria ótimo — ele sorriu, indo em direção ao muro. — Boa noite, Bem.
— Tchau, Wall!
☼•°•°
Continuamos nessa rotina durante toda a primeira semana de janeiro. Wall vinha até minha casa, era alimentado pelas Mulheres da Minha Vida, brincávamos durante toda a tarde e ao anoitecer ele ia embora, pela porta, minha vó disse que se ele pulasse a janela ou o muro de novo iria "dar um coro" em nós dois.
Durante esse tempo, Wallace e eu, nos tornamos grandes amigos. Ele era tudo o que eu sempre quis ser. Wall se dava bem com todo mundo, era extrovertido, brincalhão e criativo. Tia Tânia gostou dele porque ele era "muito educado e inteligente", enquanto tia Mel se encantou pelos seus cabelos loiros. Minha vó não tinha passado muito tempo com Wall, mas já o aprovava, porque ele sempre elogiava sua comida.
Parecia que o conhecia há anos. Juntos viajamos para florestas obscuras, vulcões em erupção e planetas distantes da nossa imaginação. Conhecemos o presidente, impedimos um incêndio e exploramos um formigueiro.
Wall me contou as lendas locais, explicou a história emocionante das várias cicatrizes que tinha e sobre seus planos de ir para a cidade quando fosse mais velho, ter um cachorro e uma cozinha cheia de panelas elétricas que fariam a comida sozinhas.
— Mas não existem panelas elétricas — protestei risonho.
Wall se virou para mim com aquela expressão séria que segurava uma risada no fundo.
— Estamos falando do futuro, quando você for o senhor Benjamim e tivermos carros voadores.
Ele era sonhador, ainda acreditava no Papai Noel e no Coelho da Páscoa, mesmo que nenhum deles nunca tivessem vindo visitá-lo. Wall segredou certa noite que tinha uma lista na qual anotava todas as suas ações ruins para tentar compensá-las depois, ele acreditava que assim teria chances de ganhar um ovo de páscoa ou uma bicicleta de natal.
Não tinha visto sua família. A mãe trabalhava como balconista no supermercado local e o pai ficava em casa cuidando dele. Quando questionei porque o pai dele não trabalhava, Wall explicou, com uma emocionante história, sobre como o seu pai havia sofrido uma forte lesão na coluna e fora afastado do trabalho, sendo assim ele recebia para ficar em casa. Achei incrível.
Na semana seguinte tive de ficar sem ver o Wall, fomos para o bairro vizinho, iríamos passar alguns dias no sítio das minhas tias. Foi divertido, tia Mel me ensinou a usar um estilingue e tia Tânia me ensinou a nadar. Pelas próximas duas semanas fiquei sem ver Wallace. Já estava me perguntando se algum dia iria recontratá-lo quando finalmente voltamos para a casa da minha vó, só eu e ela, minhas tias ficaram no sítio.
Chegamos em casa à noite, as estrelas brilhavam como nunca e apesar de ser noite, ainda haviam pessoas passando pelas ruas e estabelecimentos abertos. Encontramos Wall na porta de sua casa, poderia estar observando o céu ou procurando por alienígenas. Assim que viu o carro estacionar correu em minha direção.
— Bem! Bem! — agitou o braços, olhando para mim e as duas mochilas que tinha ao meu lado. — Achei que nunca mais o veria.
Eu sorri contente. Não tinha amigos na cidade que sentissem a minha falta, foi reconfortante saber que ele sentiu.
— Desculpe, não sabia quando iria voltar — nem se iria voltar, minha família não costumava me contar muita coisa e eu não perguntava.
Ficamos parados um em frente ao outro, balançando sob nossos pés, dando sorrisos mal contidos. Wall parecia o mesmo, exceto por dois novos band-aids adicionados em seus braços e pelo cabelo que estava um pouco mais longo.
— Então... — comecei sem jeito, não querendo dar adeus.
— Você quer ajuda com as mochilas? — falou ao mesmo tempo.
Olhei para baixo, estavam leves, tinha certeza de que não precisava de ajuda, mas como não queria me despedir tão cedo...
— Sim, por favor.
Entramos os dois em casa, estranhando a diferença de temperatura do ambiente abafado. Colocamos as mochilas na minha cama e Wallace começou a enrolar para ir embora, me fazendo um monte de perguntas sem sentido. Minha vó deve ter percebido (ou talvez ela apenas quisesse ser educada) pois chamou Wall para jantar conosco.
— Sim! — respondeu em alto tom, rápido demais para parecer natural. — Desculpe...
— Tudo bem, querido — minha vó riu, passando a mão nos cabelos do garoto de forma carinhosa. — Ben, pegue os pratos, Wallace sente-se ali.
— Por que Wall não faz nada? — reclamei.
— Porque ele é uma visita.
— Ora, nesse caso eu também sou.
Jantamos a mesma comida do almoço, frango ao molho pardo. Eu não sabia como era feito na época. Assim que descobri parei de comer.
Comemos toda a comida que tia Tânia mandou, junto com uma Coca-Cola sem gás que estava na geladeira desde que chegamos. Wallace era educado demais para reclamar, mas minha vó e eu passamos todo o tempo criticando a marca por perder o gás tão rápido.
Vovó também encheu o tímido Wall de histórias do sítio, me envergonhando ao contar de todas as vezes que achei que iria me afogar enquanto aprendia a nadar.
— Então eu larguei a panela no fogo e corri em direção à piscina, apenas para ver Ben, e ouça bem, com boias nos cotovelos, se debatendo como um peixe fora d'água — vovó imitou meus movimentos graciosos. — Eu vou me afogar, eu vou me afogar, vovó!!!
Meu pequeno amigo traidor riu com gosto, curvando-se sobre a mesa, enquanto seu corpo chacoalhava com suas risadas. Eu não estava achando graça, comia o resto da comida em silêncio protestante.
— Eu, como toda boa avó, voltei para a cozinha e terminei essa galinha que estamos comendo agora.
— A galinha é mais importante que o Bem — ele concordou, mordendo um pedaço do frango para ilustrar. — O que aconteceu depois?
— Ben bebeu toda água da piscina e agora precisa ir ao banheiro a cada cinco minutos.
— Isso não é verdade — gritei de dentro do banheiro.
Não pude evitar de sorrir, vovó tinha um jeito de contar histórias que deixava tudo divertido. Minha família inteira era assim, sempre me impressionou a capacidade deles de transformarem tragédias em história cheias de risos e piadas, que alegravam a gente ao relembrar nos almoços de domingo e à algum convidado eventual.
As vezes eu me sentia deslocado, porque não tinha esse dom. Contar histórias nunca foi minha especialidade, deixá-las divertidas então, era uma tarefa árdua. Sempre me embolei com as palavras, troquei os nomes e os cenários, tinha que voltar do começo ou esquecia onde queria chegar na metade. Já cheguei a questionar se realmente pertencia a minha família, eu era tão diferente da minha vó, das minhas tias, do meu pai...
Quando estava voltando para cozinha ouvi Wall e vovó sussurrando:
— Ele tem sorte de ter encontrado um amigo igual a você — vovó disse em tom conspiratório.
— Você acha? — Wall respondeu em tom igual.
— Benjamim tem dificuldades para fazer amigos, principalmente agora que Otto se foi... — vovó pigarreou. — Obrigada por...
Sua fala foi interrompida quando me viu entrando na cozinha. Odiava quando as pessoas falavam de mim pelas costas.
— Sobre o que estão falando? — questionei em tom acusador, mal humorado.
Minha vó, esperta como sempre, levantou-se da cadeira, começando a tirar à mesa, tempo suficiente para inventar uma mentira.
— Estava contando a Wall que vou pagá-lo para regar a grama durante o ano.
Observei seus movimentos com desconfiança. Vovó, para uma senhora de 60 anos, era bastante jovial. Era magra, com cabelos brancos em um corte Chanel que a fazia se sentir na adolescência de novo. Sempre que me lembro dela estava usando braceletes e colares com grandes pedras falsas, saias floridas e blusas de tecido leve com estampas coloridas. Essa era minha vó. Sorriso alegre, cheia de artimanhas e anedotas para contar.
— Você vai? — os olhos cor-de-mel de Wallace se arregalaram, entregando a mentira da vovó.
— Se eu chegar aqui ano que vem e a grama estiver verdinha vou lhe dar vinte reais.
— Uau — falamos em uníssono, imaginando o que poderíamos fazer com vinte reais.
— Vou poder alugar todos os filmes da locadora — Wall sorriu sonhador.
— Você pode conseguir todos os prêmios do fliperama.
Seu sorriso sumiu.
— Não temos um fliperama aqui — resmungou, cutucando a tinta descascada da mesa.
— Garotos, o papo está bom, mas — vovó começou em seu tom de adulta. — Ben precisa escovar os dentes e os pais de Wallace devem estar preocupados.
Wall tropeçou ao levantar da cadeira, corando quando caminhou tristemente até à porta.
— A senhora está certa, é melhor eu ir — abriu a porta de saída. — Obrigado pelo jantar dona Madá, até amanhã, Bem.
— Espere, vou com você — disse apressado, calçando os chinelos.
— Tchau Wall. E, Ben, não demore — minha avó gritou de dentro da cozinha.
Me encolhi quando senti o frio da noite se chocar contra meu rosto, guiando Wallace até o portão. Ele poderia pular o muro, mas era melhor obedecer a vovó.
— Foi divertido, eu nunca tinha feito isso antes.
— Jantado?
Ele riu.
— Jantar em família, nunca tive, não com a minha avó.
— Você não tem uma vó? — perguntei chocado.
— Eu acho que ela está morta — olhou deprimido para sua casa. — Tchau, Bem.
— Tchau, Wall — acenei para ele.
Andei rente ao muro que separava as casas junto de Wall.
— Amanhã podemos nos ver?
— Claro — ele sorriu. — Podemos brincar de piratas. Se você não ficar com medo do mar também.
— Seu idiota — gritei da porta de casa, vendo Wall mostrar a língua em minha direção.
Entrei risonho na cozinha.
— Se divertiu? — vovó brincou, balançando as mãos molhadas.
— Está gelada — resmunguei quando algumas gotículas de água caíram no meu rosto.
— Muito bem mocinho, está na hora de dormir.
Ela me empurrou para dentro do banheiro, cantarolando pela casa enquanto desfazia suas malas.
A noite foi fria, mas eu dormi com o coração quente. Sorrindo sem me importar com as cigarras, grilos, gritos dos vizinhos e a conversa da minha vó ao telefone no cômodo ao lado.
☼•°•°
Essa foi a última semana que passei com Wall, depois vovó e eu tivemos de voltar para a cidade.
Passamos os dias fazendo do quintal nosso pequeno mundo de fantasia e diversão. No segundo dia tudo já estava cheio de brinquedos e embalagens de picolés, as quais vovó fez questão de fazer a gente limpar depois.
Wall se tornou um amigo, por isso todas as noites eu ficava um pouco mais triste, sabendo que teria de deixá-lo em breve. Não falamos sobre isso, apenas brincávamos sem compromisso com o amanhã. Acho que não falei nada porque não queria que Wallace pensasse que era muito sentimental. Conhecendo-o como conheço hoje, ele não disse nada pelo mesmo motivo.
Portanto, quando o dia de ir embora chegou, foi com pesar que eu percebi que não teria a chance de me despedir de Wall.
Minha vó deve ter me comunicado que iríamos embora no dia anterior, enquanto arrumava minha mala e falava ao telefone com a minha mãe, mas eu estava agitado, tagarelando com Wallace sobre como ninjas eram melhores que super-heróis. Wallace foi irredutível em sua opinião sobre os ninjas serem um bando de malucos fantasiados, dizendo-me que eu não poderia odiar heróis, pois eu era um deles, o Coisa. Protestei contra a apelido novamente. Além disso, super-heróis também são malucos fantasiados.
— Tchau, Benji — gritou do outro lado do muro. — Nos vemos amanhã?
— Claro, Wally, até amanhã.
Acordei cedo no outro dia, quando percebi já estávamos dentro do carro e não tive oportunidade de me despedir.
— Aonde vamos? — perguntei, tentando manter os olhos abertos, era madrugada e minha voz estava enrolada.
— Casa — vovó respondeu, cobrindo-me com uma velha manta e me acomodando melhor no banco de trás.
— Eu não avisei ao Wall — disse para então me render ao sono.
A próxima vez que acordei estava no meu quarto, o familiar papel de parede com balas e chocolates, que em algum momento achei original, 3 anos depois me lembraria apenas da fala do assustador e macabro e nada legal, Willy Wonka: Bom dia, estrelinhas, a terra diz, olá!
Levantei com um pulo e corri em direção à cozinha, vendo minha vó e mãe conversando na bancada. Perguntei quando iríamos voltar, eu precisava ver Wallace de novo.
— Se gostou tanto, pode voltar no ano que vem — mamãe respondeu, puxando-me para um abraço. — Ben, você não usou o protetor solar que mandei?
Ignorei.
De volta ao meu quarto, guardei o Aquaplay que tinha prometido em uma caixinha, um dia eu o entregaria ao Wallace como prometido. Era isso, não tive chances de me despedir. Só me restava esperar que ele não se esquecesse de mim.
Obrigada a quem leu.
Existem 3 capítulos escritos, então, se alguém se interessar e estiver curioso, eu sempre posso postar o 2° com a narração feita pelo Wallace que diverge bastante da do Ben.
Beijinhos caramelados ⌛
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