Capítulo Três
Não existem palavras soltas que escapam de nossos lábios sem motivos ou intenção. Essas, que são chamadas de fugitivas, são o que existe de mais verdadeiro em nós.
Eu estou parada a poucos centímetros para dentro do que será meu novo quarto, não lembro exatamente o caminho que percorri até chegar aqui, apenas sei que segui com passos entorpecidos o mordomo e o empregado que carregavam minha mãe e nossos pertences palácio adentro. Minha mente estava presa na estranha serva que pediu socorro.
— Uau! – exclamou Drystan assim que adentrou o quarto.
Então eu finalmente prestei atenção no cômodo à minha frente. Engoli em seco ao perceber que somente esse quarto era maior e melhor do que toda a minha casa. A primeira coisa que chamou minha atenção foi a ampla cama posicionada contra a parede, depois foi a lareira que abrigava ao seu redor um conjunto de dois pequenos sofás com uma mesinha ao centro com tapetes peludos que abrigavam os pês do piso gelado. Toda a decoração em cores de creme e o mais puro branco.
— Senhorita Mabel? – chamou-me o mordomo — Aquela porta à esquerda conecta a uma suíte extra que pode ser usada por vocês. Como foi solicitado por sua senhora, você e sua família ficaram acomodados nesse andar. Com sua licença.
Ele mal terminou de falar e já deixou o quarto acompanhado pelo servo que depositou a mamãe ainda adormecida na grande cama. Assim que ficamos sozinhos e a porta foi fechada, Drystan correu para um conjunto de cortinas que estavam fechadas, quando ele as abriu uma pequena varanda suspensa se estendeu para nós iluminando todo o quarto com a luz do sol. Quando me aproximei, percebi que através dela teríamos uma visão ampla do pátio traseiro do terreno.
— Eles estão saindo – sussurrou Drystan para os servos que andavam alinhados em fileiras abaixo de nós.
Eles caminhavam sincronizados pelo pátio com os rostos ainda voltados para o chão. De repente, como se soubessem que estávamos observando, levantaram lentamente suas cabeças em nossa direção, mantendo contato visual conosco antes de sumirem do nosso campo de visão. Puxei Drystan para fora da varanda e fechei as portas e cortinas com pressa.
— Vamos manter essa varanda fechada, está bem? – falei para ele. Um pequeno bico se formou em seus lábios, mas ele concordou. — Vou ir encontrar com a Senhorita Cecília, se a mamãe acordar você sabe o que fazer certo?
— Sim. – Depositei um beijo estalado em sua bochecha e sai do quarto.
O corredor era bem diferente do quarto claro e acolhedor. Todos os móveis e paredes eram feitos de uma cor escura de marrom com apenas algumas lamparinas iluminando o caminho. Achar o quarto de Cecília foi fácil, além de ele ficar ao lado do meu, os empregados haviam deixado seus baús em frente a porta. Dei dois pequenos toques na porta antes de abri-la, como imaginei ela deveria estar com o Arquiduque. Fiquei surpresa ao perceber que ambos os quartos, meu e dela eram muito parecidos, qualquer outro membro na nobreza ficaria ultrajado em usar um quarto no mesmo andar que um servo, imagina utilizar um quarto idêntico, mas Cecília não é igual aos outros nobres.
Comecei com meu trabalho de organizar seus pertences que não eram muitos. É notável desde o primeiro baú que Cecília não trouxe consigo muitos objetos, mesmo suas opções de roupas eram consideravelmente escassas para uma jovem dama. Olhando mais atentamente para as peças, é perceptível que são roupas que foram usadas muitas vezes, mesmo que os tecidos sejam de alta qualidade eles estavam desgastados pelo uso. O mesmo ocorreu com os sapatos que estavam em pior estado que o restante das coisas, já que não foram projetados para que fossem usados com frequência como os meus eram. Guardei todas as suas coisas nas pequenas cômodas dispostas pelo quarto, o closet destinado aos seus vestidos de festa, jóias e enfeites ficou completamente vazio. Deixei uma troca de roupa em cima da sua cama, junto com uma tigela com água fria e um pano para tirar o suor do seu corpo.
Quando Cecília entrou no quarto, me encontrou costurando um dos seus vestidos, havia um rasgo na cintura provavelmente ocasionado pelo esforço de vesti-lo. Ela nada disse sobre isso, apenas retirou as luvas de seda e as colocou em cima da cama. Sentou-se em frente a penteadeira e começou com o trabalho de retirar os grampos dos cabelos.
— Deixe-me ajudá-la Senhorita Cecília. – Levantei-me e me posicionei as suas costas.
—Me chame apenas de Cecília quando estivermos sozinhas, Mabel – ela disse.
— Sim, Cecília. – Testei.
Soltei seus cachos grossos e espessos do emaranhado de grampos que os prendiam em um coque bem-feito. Cecília é linda, com sua pele lisa da cor de chocolate derretido e seus pesados cabelos negros que apenas destacavam a cor de café dos seus olhos grandes, uma boca carnuda e naturalmente pintada, o rosto em formato de coração acompanhado de um nariz pequeno e achatado. Mas ela não era apenas linda em suas características físicas, existe algo dentro dela que a torna extremamente bela. Desde que apareceu em minha casa, eu senti que ela não era igual a ninguém que eu tenha conhecido, sendo nobre ou não. Ela não me olhou com prejuízos ou como se eu fosse descartável, substituível ao primeiro erro, não se incomodou com o que dizem sobre mim. Eu sei que de alguma forma eu estou atendendo um propósito que ela não me contou, mas não consigo deixar de olhá-la com bons olhos.
— Pronto – disse quando terminei de trançar seu cabelo.
— Obrigada, Mabel – ela disse se levantando. — Pode ir descansar, pedi para que trouxessem nosso almoço no quarto.
— Quer que eu ajude a se trocar? – Me ofereci já me posicionando a suas costas para desfazer o laço do vestido. Ela desviou bruscamente antes que minhas mãos alcançassem as cordas entrelaçadas.
— Posso fazer isso sozinha – falou rispidamente.
— Certo, me desculpe – respondi surpresa e envergonhada por ter causado essa mudança súbita em seu humor.
— Não foi nada, apenas tome cuidado para fazer somente aquilo que eu peço e nada além. – Seus olhos estavam duros quando falou.
— Sim – respondi e corri para sair do quarto, quando estava próxima da porta ela voltou a me chamar.
— Conversei com o Arquiduque para que alguém venha lhe ensinar como as coisas funcionam no palácio. Ele concordou em mandar alguém amanhã cedo para guiá-la, então pode descansar o resto do dia.
— Sim, senhorita – respondi me curvando.
— E Mabel... – Ela parou de falar por um tempo como se estivesse ponderando o peso de suas palavras, lutando com os próprios pensamentos. — Mantenha seus olhos e ouvidos atentos aos detalhes – disse por fim.
Voltei para o quarto e encontrei Drystan arrumando nossas coisas. Desde que ele começou a ter entendimento de como ele afetava a mamãe, ele manifestou um comportamento de que beirava a compensação. Me juntei a ele e não demorou para que terminássemos de organizar todas as nossas coisas e quando nosso almoço chegou, deitamo-nos no quarto em anexo que continha apenas uma cama com uma grande janela de vidraça.
Não sei por quanto tempo dormimos antes de um som estridente de coisas sendo jogadas nos acordar. Drystan ficou rígido quando me levantei da cama e segui para o quarto principal de onde vinha o barulho, a cena que se desenrolou a minha frente não me surpreendeu em absoluto, mas ao parecer havia chamado a atenção de Cecília que invadiu o quarto com olhos assustados. Suas sobrancelhas grossas se arquearam quando ela observou minha mãe delirante destruir o quarto.
— Não está.... Não está aqui... - dizia mamãe com a voz rouca enquanto rodava o quarto em seu desespero deixando uma bagunça por onde passava.
Ela tinha o rosto molhado em lágrimas e jogava tudo ao ar enquanto repetia incessantemente as mesmas palavras em sua busca vã. Fazia algumas semanas desde a última crise que ela havia tido, mas acordar em um ambiente desconhecido deve ter a deixado vulnerável aos pensamentos que espreitam sua mente. Me aproximei na tentativa de acalmá-la e impedir que mais estragos fossem feitos.
— Mamãe, fique calma, sim? – Me aproximei gentilmente dela e segurei em seu braço fino.
Não é a primeira vez que ela reage de forma agressiva, o peso da sua mão atingindo meu rosto é conhecido e sempre deixa um rastro quente em minha bochecha, mas não importa quantas vezes isso aconteça eu sempre tenho que engolir a raiva que amarga minha boca.
— Você. – Ela me olhou com os olhos manchados de desespero. — Não fique parada e me ajude a procurar o seu irmão!
— O seu filho está parado bem ali, senhora. – Interveio Cecília gesticulando na direção de Drystan.
— Aquela criança não é meu filho – respondeu mamãe sem ao menos olhar na direção do Drystan. — Meu bebê não está aqui... Não está aqui... – Ela voltou a balbuciar ignorando nossa presença.
Uma sombra tomou o rosto de Cecília quando Drystan deixou um soluço escapar de seus lábios, ele colocou as mãos gordinhas em frente a boca na tentativa de abafar o som do seu choro, mas seus grandes olhos molhados ainda o denunciavam. Prendi a respiração quando ela caminhou até estar de frente com a mamãe e a encarou firmemente em seus olhos.
— O seu bebê está dormindo, senhora. – disse calmamente.
— Onde? quero vê-lo – mamãe disse prontamente agarrando os ombros de Cecília.
— Não pode, vai acordá-lo – Cecília respondeu com tanta seriedade que eu fiquei me perguntando se realmente havia um bebê.
— Mas ele deve estar com fome...- balbuciou confusa.
Cecília passou o braço pelo ombro da mamãe e a acolheu como se soubesse exatamente o que ela estava passando. A levou gentilmente até o conjunto de sofás e a sentou em um deles.
— Vou levá-la quando ele acordar. Por que não se lava e come alguma coisa enquanto isso? Sabe que quando ele acordar a senhora não vai ter descanso – disse brincando com mamãe que sorriu fracamente para ela, fantasiando com o que ouviu.
Drystan e eu ficamos estagnados enquanto Cecília habilmente lidava com a mamãe. A convenceu a tomar banho e a comer meia tigela de sopa acompanhado de um pedaço de pão, a todo o momento compactuando com a fantasia que mamãe criou desde o nascimento de Drystan. Não demorou para que o cansaço a abatesse novamente e ela voltasse a balbuciar o que rondava sua mente, Cecília a levou para se deitar no quarto em anexo e a enrolou com a coberta como se fosse uma criança.
— Me chame quando ele acordar, sim? – falou mamãe lutando com o sono.
— Claro – respondeu Cecília.
— Ele é lindo, não é? – perguntou com os olhos fechados e um sorriso débil no rosto. — Meu pequeno Drystan de cabelos dourados... – disse em um último sussurro antes de ser rendida pelo sono.
Cecília ergueu seu corpo elegantemente e ficou alguns segundos encarando a mamãe adormecida, absorvendo tudo que presenciou. Quando ela encarou Drystan, algo parecido com carinho e pesar estava beirando em seus olhos, mas ela não disse nada ao sair do quarto nos deixando sozinhos novamente.
⚜
Dois dias passaram desde que eu cheguei no palácio, e de forma alguma estou me habituando a estranheza do lugar, era como se todo o palácio funcionasse em uma sintonia diferente da minha. Já como empregada exclusiva da Cecília, eu não tenho muito trabalho. Eu cuido das suas roupas, limpo seu quarto, penteio seu cabelo, preparo seu banho e busco suas refeições que os servos do senhor Ambrose preparam. Tomo cuidado para não exceder os limites que Cecília impôs, mas ela é muito tranquila e geralmente passa o dia no quarto. Ocasionalmente, ela chama Drystan para tomar chá e passa o dia com ele. Ela não mencionou ou questionou nada sobre o ocorrido, mas Drystan me contou que ela tem ido olhar como mamãe está nesses últimos dois dias.
Mas mamãe não era a única pessoa que me preocupava no momento. Desde o incidente nas escadarias, eu me coloquei em alerta para todas as coisas que acontecem no palácio. De fato, todos os servos agem de maneira excessivamente controlada, evitando contato visual, conversas ou qualquer outro tipo de interação. Principalmente na presença de Ambrose, quando eles se tornam praticamente estátuas humanas, apreensivos, prontos para serem castigados. Procurei a empregada que me pediu ajuda, mas não consegui encontrá-la novamente. Por vezes tentei perguntar se alguém sabia do seu paradeiro, mas minhas respostas se limitaram a pares de olhos arregalados ou mais absoluto silêncio. Eu não tenho a menor noção quais são os nomes das pessoas que vivem aqui, até mesmo o mordomo não se apresentou formalmente e só fala comigo quando necessário, mesmo durante o dia em que me apresentou o palácio.
Quando me escoltou pelos corredores sinuosos, foi bem enfático em todas as suas instruções. Ele basicamente passeou comigo por todos os cômodos importantes do palácio, explicando a finalidade e o uso de cada um, em suma a grande maioria dos quartos eram inabitados, alguns eram apenas espaços vazios de quaisquer objetos. O arquiduque tem uma ala inteira separada para uso pessoal no terceiro andar, uma grande porta trancada com grossas correntes de ferro ficava entre seu quarto de dormir e seu escritório no qual o mordomo apenas limitou- se a me mostrar a localização, deixando claro que minha presença naquele andar só deveria ocorrer quando solicitada.
Bati na porta sentindo o formigamento se formar no pé da minha barriga, não demorou para eu receber ordens de voltar na ala do Arquiduque, quando Cecília me pediu para entregar uma carta para ele, com ordens expressas para que eu entregasse em suas mãos, o que me deixou apreensiva em ter que contatar o homem que eu tenho tomado o cuidado de evitar ao máximo. Era verdade que ele não saia muito do seu escritório, mas quando o fazia deixava o ambiente por onde passava cheio de pessoas apreensivas e temerosas.
Entrei no cômodo quando sua voz atravessou a porta autorizando minha entrada. Admito que o escritório era bem diferente do que eu imaginava, para começar ele era bem iluminado com uma grande janela que deixava a luz do dia embrenhar-se pela sala, os móveis eram de um marrom claro e eram sofisticadamente esculpidos formando um conjunto de escrivaninha, mesa de centro que sustentava um jogo de chá acompanhada por um par de sofás de cor bege, dois conjuntos de gaveteiros, uma estante recheada de livros que ocupava uma parede inteira do chão ao teto. Faz algum tempo que eu não tenho acesso a nenhum livro e talvez por isso, eu tenha ficado parada observando a estante em uma tentativa de enxergar os títulos.
— Pretende ficar parada em frente à porta? – A voz do arquiduque me fez dar um pequeno pulo com o susto.
— Perdão – disse me aproximando de sua mesa.
Ele estava com vários papéis espalhados em sua mesa, e mesmo que eu esteja olhando de cima não consigo ter a menor noção de qual seja o conteúdo que o faz ficar debruçado lendo atentamente cada palavra. Estendi a carta de Cecília, cujo ele não se deu ao trabalho de olhar, apenas apontou com a pena para onde eu deveria deixá-la. Anunciei minha partida com uma simples reverência, refiz o caminho passando o mais perto que eu pude das prateleiras de livros tentando inutilmente ler o conteúdo das bordas grossas.
— Mabel. – A voz do arquiduque chegou até mim como um gato preguiçoso. — Você parece ser uma garota curiosa. – Ele ergueu seus olhos em direção aos meus e os sustentou. — Essa é uma característica perigosa para quem mora nesse palácio.
Ele manteve seus olhos cor de mel fixos em mim, me examinando minuciosamente enquanto eu fico paralisada incapaz de quebrar o contato. Quando ele me liberou do contato senti que todo o meu corpo estava tremendo e mesmo quando saí do escritório eu não soube dizer se era por medo ou outra coisa.
NOTA DA OUTONNO
Primeiro quero agradecer ao carinho de vocês! obrigada também por apreciarem as histórias dessa conta!
Até breve!
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