Capítulo 19




Muita coisa acontecera nos dias seguintes e foram esses acontecimentos que os levaram a estar ali naquele momento, olhando aquela casa de fazenda isolada no meio do nada.

Anselmo havia percebido o que Rick queria que ele entendesse quando disse:

"Eu não sou um exemplo a ser seguido, como ele é

Espero que você entenda

Eu sou apenas Donatello"

Dessa vez ele não queria que o pai entendesse que era Donatello falando. Queria que ele entendesse quem era o exemplo a ser seguido. Sendo em alguns casos sinônimo de exemplo, havia um modelo a ser seguido e era isso o que Rick queria dizer: Maurício era um modelo.

Com a foto atual e em boa resolução tirada disfarçadamente pelo rapaz da lan house, não foi difícil descobrir o homem no mundo da moda, e até mesmo o nome que constava na razão social da empresa dele. Maurício não usava o próprio nome, por isso fora difícil rastreá-lo.

— Você acha que a gente deve deixar o carro aqui?

— Acho. Precisaríamos estacionar muito longe pra que ele não fosse visto nesse terreno aberto, mas podemos precisar de uma fuga rápida ou ter que carregar o Rick.

Os dedos apertavam o volante para disfarçar o tremor das mãos. Estava com medo, lembrava-se bem das palavras da agente:

— É possivelmente lá, mas eu preciso esperar um mandado de busca e apreensão para invadir e também preciso de reforços.

Reforço era a palavra-chave, se a policial treinada e armada precisava de reforço, quem eram ele e Anselmo para se jogar nisso na cara e coragem?

Suspirando, Fael abriu a porta do carro. Sabia que Rick poderia não ter tempo para esperar pela burocracia. Era provável que Maurício soubesse que estava sendo procurado.

Como se tivessem combinado, ele e Anselmo pularam a cerca que rodeava o pasto ao mesmo tempo, embora Anselmo tenha demorado alguns segundos a mais para chegar ao outro lado.

"Invasão de propriedade. Eu vou ser preso por invasão de propriedade. Isso se não morrer baleado primeiro".

Os dois homens correram o mais rápido que puderam em direção à casa, como combinaram. Depois dariam a volta pra verificar o perímetro. Como não havia vizinhança por perto, era pouco provável que fossem vistos por alguém de fora da casa.

As janelas eram altas, o que facilitava a caminhada deles por baixo delas. Contornaram a casa, que tinha apenas um andar, mas era grande. Viram que todas as portas e janelas tinham grades. Não haviam pensado nessa possibilidade por se tratar de uma cidade interiorana. Se bem que fazia sentido, nos tempos atuais.

— Olhe isso. — Anselmo apontou rastros de pneus partindo do fundo da casa até a estrada.

— Será que são recentes? — sussurrou Fael.

— Não sei, mas tem marca de pneu e nenhum carro estacionado. Ele provavelmente saiu e como Rick não falou de nenhuma outra pessoa na casa, deve estar sozinho. Devemos ter tempo.

— Mas não vamos abusar da sorte. Não podemos ter certeza de que não tem mais ninguém aí nem de quanto tempo ele vai demorar.

— Vamos nos separar, encontrar uma entrada, pegar o Rick e dar o fora daqui — Anselmo afirmou, como se fosse um trabalho fácil.

— Só pra confirmar, você tem aí aquele comprimido que o Chapolin usa pra encolher? Porque tem grade em cada buraco dessa casa.

— Não, mas vamos dar um jeito. Temos que dar! Eu vou tentar pela frente. Tenha cuidado, Fael.

— Você também.

Anselmo foi para a esquerda e Fael, para a direita, sem a menor ideia do que faria para entrar na casa. Esticou os braços e forçou a grade de cada janela que viu. Depois olhou o basculante do banheiro – único lugar sem grades – e sacudiu a cabeça, percebendo que não conseguiria passar nem um ombro de cada vez por ali.

Continuou contornando e parou em frente à porta dos fundos. Felizmente a grade não tinha fechadura, tinha apenas um cadeado. Sabia que sua melhor chance seria ali. Rezou silenciosamente para que o cadeado não fosse papaiz, se fosse estaria ferrado com qualquer instrumento que usasse para tentar abri-lo.

Pegou no cadeado e viu uma marca genérica, pensou se aquilo seria um sinal divino. Deu um forte puxão e ouviu um clique. Franziu o cenho e olhou ao redor, como se esperasse ver alguém apontando uma arma bem para a sua cabeça.

"Cadeados de marcas genéricas são fuleiros, mas não tanto assim". Olhou a mão e viu uma infinidade de pó alaranjado nela, o que explicava a falha, o cadeado estava oxidado. "Vida de ladrão no interior é fácil".

Abriu a grade e olhou a porta de madeira, que era como a de sua avó. O tipo de porta que abre no meio e em cada lado tem uma portinhola com grades, também de madeira. Lembrou que as portinholas eram geralmente fechadas somente por ferrolhozinho também de madeira, que sua avó costumava chamar de tramela.

Forçou a portinhola tentando não fazer muito barulho, e rezou para que o dono da casa tivesse saído pela porta da frente e deixado a chave da porta dos fundos na fechadura, como muita gente fazia.

A portinhola se abriu com um leve crac feito pela provável tramela e Fael colocou o antebraço pela pequena grade. Até o cotovelo passou facilmente, mas o bíceps ficou entalado. Fazendo contorcionismo Fael conseguiu tocar a chave e suspirou aliviado.

"Onde estaria Anselmo?" Pensou, imaginando que possivelmente o braço do pai de Rick fosse mais fino. Sem tempo para procurar pelo homem, Fael forçou o braço lentamente pela grade, arranhando a pele na madeira. "Eu só espero que esse seja mesmo o cativeiro".

Quase deu um grito de viva ao conseguir girar a chave. A porta se abriu com um leve rangido, fazendo Fael arregalar os olhos. O braço ainda estava preso na porta e se o ruído tivesse atraído alguém, a hora de acertarem sua cabeça com uma bala era aquela.

Puxou o braço freneticamente, sem se preocupar tanto com o barulho. Quando se viu livre entrou na casa, encostou a porta e se escondeu debaixo da mesa, se sentindo ridículo por ser um resgate tão atrapalhado.

Puxou o celular do bolso com o objetivo de enviar uma mensagem para Anselmo. Haviam combinado de deixar os aparelhos no silencioso para se comunicarem sem fazer ruído, mas viu que não tinha sinal.

Ao confirmar que o barulho da porta não atraiu ninguém Fael saiu do esconderijo e avançou a passos lentos e silenciosos em direção ao corredor. Estava prestes a chegar ao final dele quando ouviu um som que o fez estacar.

Apurou os ouvidos e quando não ouviu mais nada achou que era imaginação e voltou a caminhar. Quando ouviu novamente o som, o reconheceu: Era o arranhar de unhas na madeira, e ele não vinha do corredor.

Voltou até a cozinha e ouviu de novo. Depois ouviu um miado e suspirou, era só um gato.

Já se encaminhava novamente até o corredor quando ouviu um som mais baixo do que o miado. Um que o fez arregalar os olhos e em seguida sorrir.

— Venha cá, presidiária. Porque você tá estressada hoje, menina?

Fael avançou a passos largos até a porta e a escancarou. O que viu o deixou em choque.

— Oh meus Deus. O que ele fez com você?! — Se sentiu horrorizado ao ver o amigo com vários quilos a menos do que se lembrava, lutando para se manter sentado, vestindo apenas uma cueca e coberto por hematomas antigos e marcas de surras recentes, além de um tornozelo algemado à cama.

— Você veio — Rick sussurrou.

— É claro que eu vim! — respondeu cruzando rapidamente o pequeno quarto e abraçando o amigo. — O seu pai também veio.

— Meu pai?! — Os olhos de Rick se arregalaram em espanto por saber que seu pai estava ali por ele. — Eu sei que ele decodificou a minha música e eu entendi o seu recado no solo, mas não esperava que vocês viessem pessoalmente — afirmou com um pequeno sorriso.

— Nem me lembre disso! Vocês dois me fizeram passar a maior vergonha tocando aquele solo horrível! Isso pode acabar com a minha carreira, sabia?! — A brincadeira tirou uma pequena risada de Rick. — Agora vamos tirar você daqui. — A risada morreu instantaneamente.

— Essa madeira parece rocha, você tem que encontrar um machado, Fael. Seja rápido e tome cuidado com o Maurício, ele é louco. Por favor, não demore. — O senso de urgência era notório na voz de Rick.

— Eu volto logo e vou trazer o Anselmo pra me ajudar.

Os dois amigos congelaram um de frente para o outro. Pelos olhos arregalados de Rick mirando algo por cima dos seus ombros, Fael sabia que o clique que ambos tinham escutado se tratava exatamente do que pensava: uma arma engatilhada às suas costas.

Lentamente se virou para o seu antagonista. Apesar de já ter visto fotos do homem na agência de modelos, a transformação que ele sofreu não deixava de ser surpreendente.

Ele não tinha mais nada a ver com o rapaz magro da foto que a tia lhes mostrou. Muito menos a face tinha algo do garoto espinhento que foi aluno de Anselmo.

O que se mostrava diante de Fael era um homem de 1,90 de altura e com músculos dignos de um protagonista de filmes de ação. "Isso não seria fácil mesmo que o idiota não tivesse uma arma apontada pra mim". Pensou, ou melhor, gemeu Fael, na privacidade da sua própria mente.

— Ora, ora, ora, mas que comovente. Eu sabia que você viria por ele.

Era estranho ver aquele sorriso de propaganda de creme dental ostentando olhos tão taciturnos. Era como se o interior conturbado e cruel não combinasse com a casca que transmitia paz. A natureza humana é estranha, por vezes associa pessoas bonitas a um bom caráter. O mesmo vale para o oposto.

— Eu falei com a sua tia, ela tá preocupada com você. Até chorou de saudade. Por que você não volta pra ela, Maurício? — Ao ouvir falar de Adelaide, Maurício vacilou. — Ela deixou o número e me pediu pra ligar se eu achasse você.

— Ela pediu? — A arma oscilou nas mãos de Maurício, assustando tanto Fael quanto Rick, mas rapidamente o homem a firmou novamente.

— Pediu. O marido dela, Matheus, morreu, sabia? Agora ela tá sozinha e sente muita falta de você. Você deveria voltar a falar com ela. Ela fez tanto por você.

— Eu sei — Maurício sussurrou. — Por isso mesmo eu me afastei dela. Porque ela cuidou de mim.

— Não precisa ser assim. Você pode voltar, Maurício. Ela tá te esperando.

— Eu não posso voltar. Eu não quero voltar. O meu lugar é aqui com o Rick. — Por que você tinha que aparecer pra estragar tudo?! — Maurício exasperou e balançou a arma freneticamente na direção de Fael.

— Maurício, tá tudo bem. É só você abaixar a arma — Rick pediu.

— Tá com medo que eu mate o seu amiguinho?!

— Você não quer fazer isso, Maurício. Daqui a pouco a polícia vai chegar, dá tempo de você ir embora.

— Sério? Foi por acreditar nisso que você veio sem ela? Eu achei que tinha sido por saber o quanto ela é lenta...

— Eu vim porque tive medo do que você poderia estar fazendo com ele.

Sem saber, Fael pressionou o interruptor que aciona o pior lado de Maurício. Ele soube que falou besteira ao ver as feições do homem se transformarem diante dos seus olhos. Era como se a maldade, ou loucura, presente no interior alterasse drasticamente as feições bonitas e as transformasse em algo medonho.

— Ele está bem aqui comigo, você não deveria ter vindo!

— Não! — Enquanto o grito deixava a garganta, Rick encontrou a tão falada força que supostamente surge quando precisamos dela.

Tudo aconteceu tão rápido. Em décimos de segundo Rick lançou os braços sobre Fael e o usou como alavanca para içar o próprio corpo, recebendo no ombro a bala que iria direto para o coração do amigo.

— Ahhh! — Rick gritou, não apenas pela bala, mas também pela torção que sofreu no tornozelo algemado.

Seu corpo foi lançado ao chão e levou junto o de Fael, devido ao impacto.

— Rick! — Fael o segurou e pressionou o ferimento para estancar a hemorragia.

— Olha o que você fez! — Fael tinha esquecido tudo sobre Maurício e quando ergueu os olhos recebeu um soco que o deixou atordoado.

Estava se erguendo, quando recebeu um chute que novamente o jogou de costas no chão. Rolou para debaixo da cama, evitando receber outro golpe.

Quando Maurício se aproximou, Fael puxou fortemente os seus pés, derrubando-o de costas com um barulho estrondoso. Saiu pelo outro lado da cama e passou por cima dela. O homem já estava de pé, mas parecia atordoado com a pancada na cabeça e Fael acertou um chute nele.

Aproveitou a vantagem e desferiu soco após soco. Maurício cambaleou, esbarrando na parede em frente à cama. Quando parecia derrotado deu uma cabeçada em Fael que o deixou tonto. Após receber um soco Fael cambaleou para trás e Maurício lhe deu uma rasteira.

Naquele dia o destino parecia conspirar contra pessoas boas e Fael caiu. Sua cabeça batendo na grade da cama e o sólido carvalho acertando em cheio o ponto frágil no centro da nuca.

Fael caiu em frente à cama e Rick se arrastou até ele, ignorando a dor no tornozelo e no ombro, que ainda sangrava. Ao ver os olhos do amigo abertos e imóveis percebeu que a vida dele estava por um fio, se ainda existisse alguma.

— O que você fez?! — Rick não olhou para Maurício até que ele caiu com sangue escorrendo pela cabeça, então viu seu pai com o cabelo desgrenhado e um taco de beisebol nas mãos, o mesmo que causou tantos de seus próprios hematomas.

— Meu Deus, você foi baleado! — Anselmo correu até Rick, mas parou ao ouvir as palavras dele.

— Eu tô bem, mas o Fael tá morrendo, pai! Ele precisa de uma ambulância agora!

Só então o homem parece ter se dado conta de Fael caído no chão, completamente imóvel.

— Meu Deus! — Se ajoelhou perto do rapaz e checou sua respiração. — Uma ambulância não vai adiantar, ele não está respirando!

Meio sem saber como fazer, Anselmo iniciou uma massagem cardíaca, revesando entre compressões no tórax e sopros na boca, fechando o nariz com os dedos.

— Deus me ajude que aquelas séries médicas que eu sempre gostei de assistir estejam certas! — Apesar de cansado Anselmo repetia o procedimento sem parar. — Vamos lá, Fael, não seja preguiçoso, respire!

Rick fechou os olhos porque não conseguia ver seu melhor amigo morrendo diante de si. Não queria acreditar que Fael morreria por sua culpa.

Se não fosse pelo peso da culpa, ele teria visto o diabo se levantando atrás de seu pai. Talvez tivesse sido mais cuidadoso em vigiar se lembrasse do ditado "Vaso ruim não quebra".

Anselmo foi arrancado de cima de Fael e brutalmente arremessado contra a parede. Rick o viu rastejando até o taco de beisebol.

— Deixe ele em paz, Maurício!
— Quem? O papai carrasco ou o professor ruim?

Rick não sabia o que fazer. Viu a arma e tentou alcançá-la, mas não conseguiu e não podia gritar para o seu pai que a pegasse, pois Maurício chegaria lá primeiro.

— Eu fui injusto com você, Maurício. Você é talentoso, eu só tinha que ser mais paciente.

Rick rezou para que seu pai conseguisse de alguma forma vencer Maurício com palavras, pois sabia que fisicamente ele não poderia. O homem parecia invencível. Era o exterminador do futuro ou o próprio diabo.

Voltou sua atenção a Fael, cujo coração ainda não batia. Tentou continuar a massagem cardíaca imitando os movimentos do pai, mas um braço estava inutilizado após o tiro e o outro não tinha mais tanta força.

Fez, então, do jeito que podia, sentou-se e jogou o peso do corpo sobre o peito de Fael. Sentiu o ar sair pelo nariz dele, então se ergueu e fez de novo. O esforço era sobre-humano, mas não desistiria. Não podia desistir.

Rick não sabia quantas vezes fizera a estranha massagem cardíaca até que ouviu novamente aquele maldito som. Só teve chance de gritar:

— Pai!

O tiro ecoou em seus ouvidos, seguido do som de corpos caindo e do gemido do seu pai. Sangue escorrendo pelo piso foi a última visão que teve antes de desmaiar. Aquilo ultrapassou o limite que mente e corpo tão desgastados podiam suportar.

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