Capítulo 13




— Vai devagar, isso dói! — reclamou Fael, que estava sentado meio de lado, protegendo a pobre nádega perfurada.

— Pare de reclamar, nem sangrando está! — Anselmo zombou.

— Mas está ficando roxo!

— Aguenta aí, você sabe que é impossível fugir dos buracos quando se está dirigindo sobre um queijo suíço.

— Ahhhh — a cada solavanco Fael gemia como se fosse morrer.

— Será que é aqui? Ela falou que tinha um muro amarelo, então deve ser essa. — Anselmo parou o carro em frente ao portão preto de ferro e Fael logo desceu, ansioso por ficar em pé e acabar com a tortura.

— Não tem campanhia. — Lembrando do que sua avó fazia quando ele era criança, bateu palmas e chamou: — Oh de casa!

Recebeu em resposta uma forte pancada nas pernas que o fez cair numa poça de lama com um grito esganiçado. Ergueu a cabeça atordoado e viu um carneiro saído do inferno partindo para lhe dar outra cabeçada.

— Fael! — Anselmo chamou o rapaz que em um segundo era visto pela janela do carro e no outro, não era mais.

Dando a volta no carro Anselmo encontrou o rapaz jogado na lama e pela posição em que ele se encontrava teve sérias dúvidas se ele não pretendia retribuir na mesma moeda as cabeçadas do animal.

— Sai, sai! — gritava Anselmo e abanava as mãos tentando espantar o bicho.

O portão rangeu e uma mulher bonita, com idade próxima a de Anselmo, saiu e facilmente espantou o animal com uma palmada no flanco.

— Você está bem?

— Já estive melhor — Fael respondeu sentindo o rosto corar. Estava se sentindo um porco no chiqueiro. — Obrigado por espantar a lãzinha ambulante.

— De nada. Eu vou pegar uma toalha molhada pra você limpar um pouco isso. Está mais sujo do que pano de chão. — A mulher não conseguiu disfarçar o leve sorriso ao olhar pra Fael confortavelmente sentado na lama.

— Ela não combina com o lugar, né? A casa também é mais bonita do que as outras. Tem até grama e rosas — Fael comentou enquanto enfim levantava da lama.

Quando Adelaide voltou com a toalha Anselmo explicou a ela quem eram e porque a procuraram. Fael limpava o que podia da sujeira, porém mantinha os ouvidos atentos à conversa.

— Eu temo não poder ajudar vocês. Não sei nada dele há anos.

— Pode nos ajudar falando sobre ele.

— Tudo bem. Entrem antes que a lãzinha volte — a mulher respondeu após pensar se deveria ou não receber os dois homens.

O piso de cerâmica reluzente mostrava que a casa havia sido recentemente reformada. Os móveis eram rústicos e contrastavam com as paredes brancas, mantendo a harmonia do lugar. Um televisor de LCD dava um toque moderno à sala ampla.

— Posso perguntar por que a senhora voltou para cá depois de morar tantos anos na capital? É tão isolado aqui.

— Eu gosto daqui, nunca fui uma pessoa da cidade grande. Morei lá porque conviver com o meu irmão era impossível depois que sobramos só nós dois e porque queria ter uma vida melhor, algo que não conseguiria aqui naquele tempo. Estudei, trabalhei e voltei pro lugar que eu amo com a aposentadoria pra me sustentar.

— Entendo. A sua casa é bonita e o seu gato também. — Fael apontou para o gato gordo dormindo profundamente em um dos sofás.

— Ele é. — A mulher lançou um olhar astuto para Fael. — Porque eu acho que vocês não vieram aqui só porque o meu sobrinho viajou com o seu irmão? O que realmente aconteceu? O Maurício se meteu em algo que não deveria?

Fael não sabia o que responder e olhou para Anselmo em busca de apoio.

— Eu vou te falar a verdade. O meu filho desapareceu e o Maurício foi a última pessoa vista com ele. Eu não conheço o seu sobrinho de fato, só sei que ele é a única pista que temos do meu filho. A polícia também está procurando pelos dois, mas a burocracia é muito grande pra uma família desesperada conseguir esperar. Viemos em busca de qualquer informação que nos ajude a localizar o Maurício ou entender porque o Ricardo sumiu. 

Após um tempo dolorosamente longo decidindo o que fazer, Adelaide sentou no sofá e ofereceu a poltrona a Anselmo. A Fael, ainda bem sujo de lama, ofereceu uma cadeira de madeira.

— Eu nunca soube onde, em São Paulo, ele foi morar. Ele nunca ligou pra mim desde que se mudou, há onze anos. — Por mais que tentasse disfarçar, a mágoa era evidente na voz e no semblante de Adelaide.

O fato de que Maurício supostamente morava em São Paulo a mais tempo do que ele e Rick não passou despercebido a Fael.

— O Maurício é uma pessoa agressiva?

Adelaide riu com a pergunta, como se pensar em Maurício sendo agressivo fosse uma grande piada.

— Não, ele sempre foi muito calmo, chegava a ser dócil. — Ela tinha a expressão triste ao narrar a história de Maurício. — Eu não sabia que tinha um sobrinho até receber uma ligação da polícia informando a morte do meu irmão e a existência de um adolescente. Quando eu vim buscar o menino os vizinhos me contaram os maus tratos que ele sofria. No início eu não acreditei neles, o meu irmão era turrão e machista, mas não era violento. Era difícil acreditar que ele tivesse até quebrado ossos do próprio filho e também era difícil acreditar que ninguém tivesse feito nada pela criança. Mas então eu soube da história toda: A mãe do Maurício teve complicações no parto e foi submetida a uma cesariana. Imagine as condições precárias de um hospital no meio do nada há trinta anos. Ela morreu de infecção hospitalar poucos dias depois que o filho nasceu e o meu irmão culpou o menino pela morte dela.

Os dois homens mantinham os olhos fixos em Adelaide. Eles exalavam simpatia pela criança abusada pelo pai e tentavam decifrar o homem que essa criança se tornara.

— O que eu encontrei quinze anos após a tragédia foi um rapazinho magrelo e muito tímido, mas um bom menino, obediente e estudioso. O problema era que ele passava o dia trancado no quarto e nunca falava nada a não ser que a gente perguntasse. Meu marido e eu tentamos fazer amizade, mas ele não permitiu.

— Ele não teve acompanhamento psicológico? — Anselmo perguntou e recebeu de Adelaide um olhar arrependido.

— Não. Eu até levei ele em um psicólogo porque sabia que ele precisava de um, mas ele me disse que não queria fazer terapia. Ele era tão tímido e parecia tão infeliz com essa possibilidade que eu não tive coragem de obrigar. Eu fiquei tranquila porque o psicólogo me garantiu que ele ficaria bem. Ele disse que Maurício tinha medo das pessoas e por isso se isolava, mas que aprenderia a confiar na gente e acabaria tendo uma vida normal.

— E ele teve?

— Eu acho que sim, pelo menos achei até uns meses antes dele resolver sair de casa do dia pra noite. Ele melhorou muito quando eu troquei ele de colégio. Como eu era funcionaria da prefeitura consegui uma bolsa pra ele em um dos melhores de Salvador e lá ele aprendeu a tocar piano. Não vou dizer que ele ficou falante e ele ainda passava horas no quarto, mas era estudando piano. Um dia ele me pediu pra fazer aula particular pra praticar mais, então eu paguei as aulas por anos. Depois ele passou no vestibular da federal e começou a estudar música, eu apoiava o interesse dele, mas fui contra esse curso na faculdade porque queria que ele tivesse uma profissão que garantisse o futuro dele, mas era o que ele queria e estava feliz assim. — Ela deu de ombros.

— Como foi esse período? — Anselmo estava ansioso por conectar o Maurício que conhecera ao que Adelaide descrevia.

— Até o segundo semestre foi bom, mas no terceiro ele começou a ficar irritado, acho que a faculdade estava desgastando ele.

Adelaide parou de falar e franziu o cenho.

— O que foi?

— Eu tinha esquecido da reação dele nesse período quando me disse que precisava fazer aula todo dia e eu disse que não podia pagar outras além das duas por semana que eu já pagava.

— Ele ficou violento?

— Violento não, mas eu fiquei com medo dele. Os olhos dele estavam esquisitos. Eles ficaram escuros. Geralmente eram claros e tão bonitos, nem verdes nem castanhos, eram cinza, bem diferentes, provavelmente como os da mãe.

Adelaide começou a divagar, deixando Anselmo e Fael impacientes.

— E o que ele fez? — Fael levou a mulher de volta ao foco.

— Nada, num minuto ele estava morrendo de raiva e no outro ele sorriu e disse que estava tudo bem, depois entrou no quarto. — A mulher emitiu uma risada nervosa, como se até relembrar a reação de Maurício naquele dia a deixasse apreensiva.

— Você não achou esquisita a mudança de humor tão rápida?

— É claro que achei, até falei com ele de novo sobre o psicólogo, mas ele foi categórico em dizer que não precisava de um. Nessa época ele já tinha quase vinte e um anos e eu não conseguia mais mandar nele. Aí ele começou a trabalhar em uma sapataria pra ajudar a pagar as aulas e a gente mal se via porque eu tinha dois empregos pra manter.

— Quando ele foi embora? — Anselmo imaginava a resposta e se sentia culpado.

— No final daquele ano. Primeiro ele largou a faculdade e não quis me dizer por que, também parou a aula de piano que fazia de noite. Sem a única coisa que gostava de fazer ele começou a se isolar de novo e a gente começou a brigar porque eu queria que ele se tratasse e ele não queria. Meu marido me dizia pra deixar ele quieto porque ele já era adulto e sabia o que queria e que pelo menos ele trabalhava, não era preguiçoso, mas eu queria mais pra ele. Um dia eu cheguei em casa e ele estava de malas prontas. Eu briguei com Matheus achando que ele tinha feito alguma coisa pro menino querer sair de casa, mas o próprio Maurício disse que ele que decidiu porque tinha conseguido um emprego em São Paulo. Foi um choque pra mim ele querer ir pra tão longe. Eu disse que ele não ia e ele me olhou com cara de "Você não manda em mim".

— Que emprego era esse?

— Ele não me disse, só disse que era bom. Aí eu pensei que ele tinha se metido com drogas, mas ele disse que não era burro pra fazer isso. Quando eu comecei a chorar ele me olhou com pena e me abraçou. — Adelaide olhou para Anselmo com os olhos cheios de lágrimas. — Foi o único abraço que ele me deu. Os que eu dei antes deixaram ele todo teso, desconfortável, então eu parei de tentar. — Ela secou a lágrima que escorreu. — O que ele me disse depois me fez perceber que aquela seria a última vez que nos falaríamos.

A primeira lágrima foi seguida por muitas outras e a mulher se calou. Anselmo olhou para o chão porque se arrependia profundamente das palavras duras que disse a Maurício. Ele não tinha a menor ideia de quem era aquele rapaz e o que se passava na cabeça dele, nem o que ele tinha sofrido na infância.

As lágrimas da mulher eram culpa sua e talvez o sangue derramado do seu filho também.

— Ele me disse pra não me preocupar porque ele ficaria bem, agradeceu pelos cuidados e pediu desculpas por não poder retribuir, mas que assim seria melhor pra todo mundo. Eu não consegui ir até o aeroporto porque não gosto de despedidas, mas o meu marido foi com ele e pra me deixar mais tranquila deu a Maurício o telefone do filho dele, que mora em São Paulo também, disse pra ele procurar o rapaz se tivesse problemas e que poderia voltar pra casa quando quisesse. Aquela foi a última vez que eu falei com ele. — A voz de Adelaide ficara embargada e ela enxugou as lágrimas que ainda escorriam.

— Eu realmente sinto muito, eu entendo a sua tristeza porque estou sentindo a mesma coisa. — Anselmo tentou consolar a mulher. — Pode me dar o número desse rapaz?

— Desculpe, eu não posso ajudar, mas acho que ele também não. Quando o Maurício não deu notícias o Matheus ligou pro filho e ele disse que Maurício nunca ligou pra ele.

— Talvez tenha ligado depois.

— Eu também queria poder perguntar, mas a única coisa que sei do rapaz é que o nome dele é Matheus, como o pai.

— Não tem o telefone ou o endereço dele?! — Fael perguntou, espantado.

— Não. Quando Matheus se separou da primeira esposa, ela colocou o menino contra ele, pelo menos foi o que ele me disse. Depois que ele se mudou pra Salvador a trabalho se afastaram de vez. Eles se falavam raramente e a conversa nunca era boa.

— Então o seu marido tinha o contato dele...

— Claro, mas estava no celular que foi roubado. — Adelaide olhou para o chão quando falou: — Ele foi assassinado durante um assalto e eu nem consegui avisar ao filho dele. Coloquei a casa de cabeça pra baixo, mas não encontrei nenhum contato.

— Que horror! Sinto muito! — exclamou Fael.

— Não se preocupe, já faz alguns anos.

— A senhora tem alguma foto deles?

— Eu não tenho quase nada dos meninos, ambos já devem estar bem diferentes do que eram. Matheus era criança quando os pais se separaram e Maurício odiava tirar foto, a única que eu tenho tirei quando ele estava dormindo, logo que ele chegou. Eu vou buscar.  

A mulher deixou os dois homens na sala e foi até o quarto pegar as fotos.

Fael e Anselmo confirmaram que as fotos não ajudariam a identificar os dois homens que eles seriam atualmente, mesmo assim tiraram fotos delas com o celular. Fotografaram também a foto do marido de Adelaide e anotaram o nome completo dele.

Adelaide abriu uma gaveta ao lado do sofá e tirou de lá um bloquinho e uma caneta, anotou um número de telefone e entregou a Anselmo. — O telefone fixo funciona. Por favor, me avise se descobrir algo sobre Maurício — pediu com os olhos ainda vermelhos.

— Aviso sim e obrigado pelas informações. Eu sinto muito por ter feito você recordar tudo isso. "E por ter causado tudo isso". Pensou.

— Eu também avisei a polícia, sabe? Mas eles nunca fizeram nada. Talvez eu devesse ter feito o mesmo que vocês.

— Não se culpe por isso, o Maurício queria desaparecer, o Ricardo não.  


***

— Você acha que ele tem algum transtorno?

— Eu não sei, mas talvez isso explique porque só agora ele fez alguma coisa. Talvez tenha tido um surto, sei lá.

— Ou talvez tenha encontrado o Rick por acaso. Será que ele sabia quem era? O Rick também é um cantor, algumas pessoas perseguem famosos.

— O sedativo mostra que ele planejou isso e seria muita coincidência sequestrar o meu filho sem saber que é ele! Já falamos sobre isso.

— O sequestro foi planejado, mas o motivo pode ter sido coincidência. Só agora a banda está ficando realmente famosa, ele pode ter se tornado um fã obsessivo. Isso explicaria porque ele agiu tanto tempo depois e tão longe de onde tudo aconteceu.

— Ou talvez na época ele ainda conseguisse se controlar. A tia falou que ele pareceu agressivo, mas logo se acalmou.

Um silêncio torturante se estabeleceu dentro do carro enquanto ambos pensavam o mesmo: Será que Maurício tem ou não um transtorno mental? E se tiver, isso piora ou melhora a situação do Rick?

Fael já estava guardando o celular após avisar aos pais que dormiria na casa deles quando lembrou da música que havia recebido e não teve tempo de analisar.

Abriu o e-mail e novamente olhou o nome do remetente: Bruno Márcio. Não conhecia ninguém com esse nome. Após reler a mensagem que acompanhava a música revirou os olhos. Pela arrogância do remetente já criara antipatia pela música e naquele momento não estava de bom humor. Bloqueou o aparelho e o recolocou no bolso.

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