Capítulo 8 - O Girassol
ATENÇÃO: Capítulo com mais de 3k de palavras
O tempo naquele dia estava tão quente que eu quase arranquei a blusa do uniforme da escola. Ele era de algodão e seu tecido, grosso demais, o que fazia o calor aumentar. Tive que prender meus fios cor de cobre em um rabo de cavalo alto enquanto limpava o suor de minha testa.
Anlyn tinha me deixado na escola antes de seguir de forma desanimada para seu emprego. Ela não estava confiante de que as coisas melhorariam, mas tinha que seguir em frente de todo o jeito.
Eu me encontrava mais animada que ela, uma vez que encontrei o casal que eu iria juntar. O único problema nisso tudo é que eu ainda não fazia ideia de como os juntaria sem meus poderes. Eu não poderia germinar sementes e nem adentrar o coração dos meus hospedeiros, o que me deixava numa situação bem difícil.
Minha animação diminuiu quando me recordei desse detalhe, mas não deixei que meus novos amigos percebessem o meu desânimo enquanto me aproximava. Emily, Peter e Maurício aguardavam o sinal tocar sentados num banco de concreto que ficava na frente da escola, do lado de dentro.
Eles pareciam animados e davam uma gargalhada alta que atraiu algumas pessoas que passavam por ali. Maurício foi o primeiro a me ver e seu olhar fez meu peito se comprimir de uma forma muito esquisita e preocupante. Essa sensação me lembrou muito o momento que precedia as minhas mortes, quando eu era expulsa dos corações dos meus hospedeiros. Por um momento aquilo me assustou, e eu só me acalmei ao perceber que nada me aconteceria. Eu estava segura ali.
Um sorriso foi se abrindo em meus lábios a medida em que nossos olhares se grudavam um no outro. Porém, quando eu estava prestes a lhe cumprimentar, uma garota loira se jogou em seu colo e lhe deu um beijo de tirar o fôlego.
Estagnei no meio do caminho, me sentindo desconcertada. Emily e Peter também demonstraram certo desconforto com aquela demonstração de afeto exagerada. Cumprimentei a todos ainda me sentindo estranha por dentro. Emily apontou com a cabeça para a garota e Maurício, que também parecia um pouco desconfortável com a reação da garota, uma vez que ele tentou afasta-la com os braços algumas vezes.
Quem é ela, afinal?
— Lyra, que bom que chegou! — Emily disse, desplugando o fone de ouvido do celular — Vamos nos reunir amanhã depois da aula na minha casa para nos organizarmos em relação aos trabalhos, tá?
— Tudo bem, conte comigo.
— Fala com a sua mãe que você vai almoçar lá em casa.
— Minha irmã não liga. — Me arrependi do que disse no momento em que terminei de falar.
— E a sua mãe? — Peter perguntou, e eu o vi se curvar de dor com a cotovelada nada discreta que a Emily deu nele. Notei que Maurício e a garota que ainda estava no colo dele também pararam de se agarrar para me olhar.
— Bom... Somos só eu e minha irmã mesmo. — Abaixei a cabeça, me sentindo mal por ter que mentir daquele jeito. Quero dizer, eu não precisava afirmar que meus supostos pais morreram, eu poderia simplesmente não negar e nem confirmar aquela informação.
Em Klímpf, não temos mãe. Nosso criador é o próprio Amor.
Nós até podemos nos relacionar uns com os outros, mas não conseguimos procriar.
A primeira criação do Amor foi o planeta em que vivemos, e ele se empenhou tanto criando-o que ficou devastado quando um meteoro caiu e escureceu parte de Klímpf. A escuridão reinou para sempre naquele lado, e foi assim que nasceu a Área Sombria. Depois, ele criou nós, as Almas. O Conselho veio alguns anos mais tarde.
— Nossa, eu não sabia. — Emily murmurou. Ficou um clima pesado depois disso seguido de um silêncio constrangedor.
— Meus sentimentos. — Peter disse, se levantando para afagar meu ombro. Maurício também prestou as condolências enquanto a garota loira em seu colo continuou me encarando fixamente.
— Lyra, essa é a Rayane, minha namorada. — Maurício apontou para a garota, que continuou me olhando como se me analisasse. Ela tinha um olhar afiado e desafiador e seus cabelos ondulados eram tão bonitos que dava vontade de tocar.
— Oi, prazer em te conhecer. — Eu disse, acenando com a mão feito uma boba. Ela abriu um meio sorriso para mim e se levantou do colo do namorado.
— Amor, eu tô indo me encontrar com as meninas agora. Te vejo no jantar hoje, até mais tarde. — Eles trocaram um selinho e ela se foi sem se despedir de mais ninguém.
— Tchau, foi ótimo te ver, Ray. — Emily provocou, fazendo a garota virar o rosto o suficiente para que Emily visse que ela não tinha gostado da provocação.
— Quando que vocês vão parar com essa implicância, hein? — Maurício não parecia irritado quando questionou Emily sobre a provocação. Aparentemente, ele não se importava com o fato de que a sua namorada não se esforçava em ser simpática com seus amigos e vice versa.
— Quem sabe quando a sua namorada começar a agir que nem gente?
— Que jantar é esse que ela te convidou? — Peter perguntou, curioso — O pai dela não tinha dado um jantar desses na semana passada?
— É outro jantar de negócios. — Maurício revirou os olhos, demonstrando que não gostava muito disso — O pai dela tá querendo conseguir alguns patrocínios pro novo projeto dele.
— Por que ela te obriga a participar dessas coisas? — Emily guardou o fone de ouvido num compartimento da mochila e se levantou assim que o sinal tocou.
— Ela não me obriga. Quero dizer, ela meio que me intima a comparecer, mas eu vou por livre e espontânea vontade. — Maurício e Peter se levantaram em meio às risadas. Tentei dar uma risada também, mas esta saiu totalmente desprovida de humor. Se tinha um casal incompatível ali, era Rayane e Maurício. Tudo bem que o meu sensor de especialista não é dos melhores, ainda mais agora que estou sem meus poderes, mas era nítido o quanto Rayane e Maurício não combinam.
Fomos conversando até a nossa sala de aula o caminho inteiro. Hoje teríamos biologia no primeiro tempo, algo que me deixou bastante animada.
Descobri que Rayane e Maurício namoravam há quase 2 anos. O relacionamento dos dois foi marcado por diversas idas e vindas e brigas que estão na boca dos alunos do Centro Educacional de Porto Detroy até hoje. Emily tagarelou sobre isso enquanto estávamos na fila da cantina e continuou estendendo o assunto quando nos sentamos para comer.
O fato de Rayane ter arrastado Maurício para ficar com ela e seus amigos foi a motivação que Emily precisava para começar a me contar tudo sobre o casal. Claro que me aproveitei da situação para poder saber um pouco mais da vida dos dois. Aquela curiosidade toda estava tirando o meu foco da missão, mas era bom ter alguma distração, para variar.
Essas informações me poderiam ser úteis, e eu me convenci de que era só por isso que deixei Emily continuar falando.
— A Rayane é insuportável. — Peter entrou no assunto enquanto encarava seu sanduíche — Ela até anda com o Carlos de vez em quando.
— Eu tenho quase certeza de que os dois tiveram um rolo, mas isso seria acusa-la de traição e eu não poderia fazer isso sem provas.
— Você acha mesmo que ela trairia o Maurício com aquele idiota? — Era difícil acreditar que uma pessoa seria capaz de trair alguém como o Maurício. Tudo bem, eu o conheço há pouco tempo, mas o pouco que eu vi me mostra que ele é um cara tranquilo e bacana.
— Dizem por aí que Rayane se encontrou com Carlos na antiga sala do laboratório de química quando ela e Maurício estavam brigados. No mesmo dia eu os vi conversando de um modo bem íntimo, só que a Rayane me viu e disfarçou. — Emily tinha o olhar fixo na mesa onde o casal se encontrava — Eu tenho pra mim que aquela víbora ainda vai magoar meu amigo.
— Eu espero que você esteja errada.
— É o que todo mundo espera.
Refleti sobre as palavras de Emily enquanto encarava Maurício e Rayane. Os dois estavam sentados na mesa da frente. Enquanto ele conversava com seus amigos, Rayane teclava freneticamente em seu celular. Ele tentava abraça-la, tirar sua atenção do seu celular, mas Rayane continuava lhe ignorando e eu percebi que aquilo o deixou chateado.
Não demorou muito para o sinal tocar e nos dirigirmos para a sala de aula. Deixei que meus pensamentos tomassem um rumo diferente, pois observar Maurício e sua namorada começou a se tornar algo incômodo demais para mim. Eu tinha outras coisas para me preocupar, como salvar a minha pele de uma possível morte real no meu planeta. Não havia espaço para distrações, e eu decidi que Maurício e Rayane eram uma.
O último tempo de aula seria livre, pois o professor ficou doente, então eu aproveitei para explorar um pouco o colégio e colocar minha cabeça no lugar. Eu precisava bolar as minhas estratégias para sondar Emily e Peter sobre o que sentiam um pelo outro, pois só assim eu poderia começar a executar o meu plano.
Parei em frente ao lindo jardim da escola, que estava repleto de borboletas coloridas e roseiras de várias cores. Um canto do jardim se encontrava cheio de girassóis, o que chamou ainda mais a minha atenção e fez meus olhos brilharem. Do planeta que eu venho nós também temos nossas próprias flores, e por um momento fui transportada de volta para Klímpf.
Se eu me esforçasse o suficiente eu sabia que conseguiria sentir o aroma doce das flores azuladas e brilhantes que apareciam sempre quando o sol estava a pino no céu. Também consigo me lembrar das borboletas cheias de luzes como vagalumes que insistiam em pousar em meus braços sempre que eu passava. Eu sentia falta de Klímpf.
Lembrei-me da borboleta vermelho neon que eu vi. Nunca em minha vida eu havia visto uma borboleta daquela cor que fosse tão reluzente. Ainda me pergunto se o que vi fora real, ou se eu tinha imaginado tudo, já que a borboleta sumiu como em um passe de mágica.
— Gosta delas? — perguntou o jardineiro, um senhor humilde com um sorriso simpático. Ele segurava uma enxada e alguns vasos de plantas com roseiras e girassóis se encontravam aos seus pés.
— São lindas. — Fiz que sim com a cabeça, abrindo um sorriso. O senhor se abaixou e estendeu um vasinho com um lindo girassol para mim.
— Fique com ela.
— Obrigada! — Abracei o senhor, que pareceu satisfeito por ter me feito sorrir. Segurei o vasinho com a flor como se fosse a coisa mais valiosa que eu tinha e me afastei para que ele pudesse continuar trabalhando.
Encontrei Maurício sentado na grama lendo um livro. Me sentei ao seu lado.
— O senhor Henriquez é muito legal. — disse ele, apontando com a cabeça para o vaso de planta em minha mão. Abaixei a cabeça e o respondi com um sorriso, ainda encarando o girassol de forma admirada. Ouvi o barulho de um clique e olhei para a frente, encontrando Maurício com sua câmera apontada para mim.
— Eu nem tive tempo de me preparar!
— Desculpe, você é tão linda que eu não pude resistir. — Confessou, abaixando a câmera. Minhas bochechas coraram de vergonha.
— O que está fazendo aqui sozinho?
— As vezes eu gosto de vir aqui para ler um livro ou ouvir música. É relaxante. — Levantei a cabeça a tempo de vê-lo retirar um dos fones do ouvido.
— Parece ser uma terapia e tanto.
— Gosta dessa banda? — Ele perguntou, estendendo na minha direção um dos seus fones. Me aproximei mais dele para poder colocar o fone e quando o fiz, uma melodia cheia de rifs de guitarra surpreendeu meus ouvidos. Maurício ficou olhando atentamente para o meu rosto enquanto eu ouvia a canção.
— Eu não conheço eles. — Balancei a cabeça no ritmo da música — Mas essa música é legal.
Não era mentira. Eu realmente tinha gostado da melodia e da letra da música.
— Eles vão fazer um show na Arena Detroy no fim do mês, mas a Rayane não gosta da banda e eu tenho dois ingressos para o show. Tá afim de ir comigo? Sei que não nos conhecemos direito, mas seria legal ter uma companhia.
— Claro que eu topo. Acho que tenho tempo de aprender o resto das músicas até lá.
Um sorriso animado se abriu em seu rosto.
— Está marcado então.
Emily e Peter apareceram no momento seguinte. Eles se sentaram de frente para nós na grama seca.
— Galera, não se esqueçam de que amanhã faremos uma reunião na minha casa sobre os trabalhos. — Emily olhou para nós de forma séria. Ela realmente é muito estudiosa.
— Pode deixar, não vou esquecer.
— O Peter já deve ter anotado esse evento na agenda dele. — Maurício provocou, fazendo com que Peter de branco ficasse vermelho. Emily soltou uma risada constrangida e olhou para baixo.
— Deixa de ser imbecil!
O sinal indicando o fim das aulas não demorou para tocar. Caminhamos todos juntos para a saída do colégio, com nossas mochilas nas costas e celulares nas mãos. Rayane apareceu pulando no pescoço de Maurício e lhe tascando outro beijo impróprio para o horário. Me afastei junto com Emily e Peter, ambos pareciam insatisfeitos de terem que dividir o amigo com a namorada antipática.
Me despedi dos dois e esperei que Anlyn me buscasse. Ela se comprometeu de me levar em casa hoje durante seu horário de almoço.
A platinada parou o carro no meio fio com uma freada brusca que chamou a atenção de quem transitava ali por perto. Abri a porta e me joguei sobre o banco do carona.
— Ele me lembra Rewick. — Anlyn apontou para Maurício com a cabeça. Ele ainda enfiava a língua na boca da Rayane.
— Credo! Ele e o Rewick não tem nada a ver. Da onde você tirou isso?
— Eles dois parecem ter a mesma pegada. — comentou ela de forma maliciosa. Fiz uma careta de quem tinha ficado incomodada com o comentário.
Percebendo que tinha algo estranho ao olhar para mim, Anlyn guinchou e cobriu a boca com as mãos para poder abafar as risadas que ela dava.
— Não vai me dizer que ele é o Maurício que você me falou! — Ela tinha os olhos arregalados e o riso preso nos lábios — É ele mesmo, não é?
Fechei os olhos, sentindo que aquela conversa ficaria cada vez mais estranha.
— É ele sim.
— Uma pena que ele tenha um gosto tão duvidoso. — Anlyn olhou para o vaso que estava em minhas mãos — Gostei da flor.
Antes de dar a partida no carro, eu e Anlyn ainda demos uma última olhada na direção de Maurício e Rayane. Os dois agora caminhavam de mãos dadas para a direção oposta a que eu seguia.
— Nós vamos ao show de uma banda no fim do mês.
— Ele tem namorada e te chamou para sair? — Minha irmã provisória tirou os olhos do trânsito por um momento para olhar para mim.
— Qual o problema? — indaguei, estranhando a pergunta — Nós vamos como amigos.
— Será que a namoradinha dele pensa como vocês?
— Se ele me chamou para ir com ele, é sinal de que ela não liga.
Para o meu alívio, Anlyn ficou em silêncio, indicando que o assunto finalmente tinha morrido.
— O cara tem um charme, isso eu tenho que admitir.
Aquele comentário fez um calor subir pelas minhas entranhas. Me lembrei do sorriso que Maurício esboçou em minha direção quando me fotografou, dos seus olhos tão bonitos que me encaravam como se enxergassem através de mim e de como me chamou de linda.
— Eu não reparei nisso. — Minha voz falhou, e eu tive que limpar a garganta para prosseguir — Como eu disse, somos apenas amigos.
Anlyn me olhou como se duvidasse do que eu tinha dito.
Eu também duvidava.
— Me engana que eu gosto.
Decidi mudar de assunto antes que eu começasse a pirar. Eu precisava me concentrar na minha missão, Maurício não podia me distrair daquela forma.
— Como tá sendo o trabalho hoje?
— Parece que o Amor começou a me castigar antes da hora com essa missão. Meus chefes não estão se falando e acho que essa irritação deles faz com que descontem tudo em mim. Estou com pilhas e mais pilhas de relatórios para redigir então não tenho tempo para me concentrar nos dois como casal. Eu não sei o que vou fazer.
— Calma, ainda estamos no segundo dia de missão. As coisas devem melhorar. Precisamos acreditar que iremos conseguir.
— Acho que eu preciso mesmo é de um milagre.
Anlyn parou o carro em frente a nossa casa. Retirei o cinto de segurança, pus a mão na maçaneta e olhei para minha irmã.
— Vai dar tudo certo, você vai ver. — Sorri para Anlyn, tentando encoraja-la pelo menos um pouco. Ela retribuiu o gesto com um sorriso fraco.
— Obrigada. Nos vemos daqui a pouco.
Saí do carro e entrei em casa, sentindo um pouco de preocupação em relação à missão de Anlyn. Seria difícil salvar um casal que parece que não quer mais ser salvo.
Às vezes eu fico pensando que se o Amor a colocou nessa missão e escolheu esse casal, é porque acredita que tem algo ali que ainda vale a pena ser salvo. Ele não faria uma escolha tão aleatória se não tivesse certeza de que o relacionamento deles ainda tem chances de se salvar.
A minha missão não era tão objetiva, pelo menos não na parte do casal. Eu basicamente tinha que fazer o que eu sempre fiz, só que como humana. E com jovens adolescentes. Sem meus poderes. Isso era tão desanimador que me fez lembrar que eu ainda não sabia o que fazer com Emily e Peter.
Tenho tentado me manter otimista e pensar que meu destino não cruzou com o deles por acaso. Algo dentro de mim me alerta isso, e é nesses momentos que eu penso que a minha Intuição de Alma ainda esteja me guiando no fim das contas.
Tratei de cuidar do girassol que ganhei plantando-o em meu jardim e regando-o com carinho. Ao olhar para aquela flor tão bonita eu senti que aquilo era verdade.
Eu não tinha meus poderes, mas a minha Intuição ainda estava aqui, e isso nem o Amor e nem ninguém poderia tirar de mim.
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