Capítulo 7 - Os Sentimentos

De onde eu venho, somos ensinados a não tratar mal o próximo. Independente da aparência de uma Alma ou de sua falta de prestígio, somos instruídos a nos tratarmos com respeito. Isso não quer dizer que não exista um ou outro disposto a burlar essa regra, mas diferentemente de muitos lugares no planeta Terra, o meu não deixava esse tipo de coisa ficar impune. Enquanto a Alma não aprendesse a tratar bem os outros, não poderia trabalhar para o Amor.

— O que você fez foi maravilhoso, Lyra. — disse Emily, olhando-me de forma agradecida — Ninguém antes tinha enfrentado o Carlos do jeito que você fez.

— Bom, alguém tinha que fazer alguma coisa. — Dei de ombros, sentindo-me envergonhada com a atenção que eu recebia naquele instante.

— Você não gravou o que ele fez no refeitório, não é? — Maurício indagou, referindo-se a minha ameaça de mostrar um suposto vídeo de Carlos chamando Peter de retardado à diretora.

— Não, mas eu aprendi que se temos a tecnologia ao nosso favor, temos que usá-la mesmo que seja de mentirinha.

Os três gargalharam com a minha frase.

— Acho que vou pintar meus cílios de branco também. — Emily disse, piscando de forma contemplativa. Eu dei uma risada.

Caminhamos em direção à sala de aula para os próximos e últimos tempos de aula. O falatório presente ao entrarmos na sala se intensificou conforme os outros alunos foram entrando.

Emily tinha escolhido se sentar ao meu lado, e Peter se sentou atrás de nós junto com Maurício. Soube mais cedo que não tínhamos lugar marcado, então podíamos sentar onde bem quiséssemos.

A professora não demorou para entrar na sala de aula. Ela carregava uma bolsa grande no ombro e várias pastas em mãos que fez questão de jogar de qualquer jeito em cima da mesa assim que teve a chance.

Prestei atenção na matéria, que descobri ser filosofia, algo que tive por alto no meu planeta.

— Nós teremos um trabalho em dupla nesse bimestre que valerá um terço da nota, então se dediquem. Eu quero que até o final da aula vocês me informem os nomes de suas duplas para que eu possa sortear os temas de cada dupla para esse trabalho.

O falatório que se seguiu após isso foi inevitável. Aquela era a terceira vez que eu ouvia a palavra trabalho. Por sorte, Peter e os outros tinham me acolhido no grupo deles, e eu já tinha uns dois trabalhos em grupo para fazer e um em que eu faria dupla com Emily.

— Emily, você vai fazer esse trabalho comigo? — Peter olhou para Emily que olhou para mim como se estivesse sem saber o que fazer.

— Tudo bem, façam juntos, eu não me importo. — Emily já faria dupla comigo em um trabalho, e eu tenho certeza de que ainda surgiriam outros trabalhos para fazermos. Por sorte somos um quarteto, então pelo menos ninguém ficaria sobrando.

— Se quiser podemos fazer esse juntos, o que acha? — Maurício perguntou, cutucando meu ombro delicadamente. Me virei para trás, o coração quase saindo pela boca. Encontrei seu rosto perfumado e bonito me encarando de um modo sorridente. Seus olhos quase se fechavam quando ele sorria, era uma cena adorável.

— Acho uma boa ideia. — Retribuí o sorriso, sentindo-me vibrante por um motivo que eu não tinha certeza do que era.

Ele assentiu com a cabeça, rasgando metade de uma folha de seu caderno e anotando nossos nomes nela para entregar à professora.

Quando as aulas do dia finalmente acabaram, me despedi dos meus novos amigos. Eles pegavam o ônibus juntos quase todos os dias.

Eu tinha combinado que Anlyn me buscaria durante o seu horário de almoço, porém, ela me mandou um áudio apressado dizendo que não poderia me buscar pois estava enrolada com o serviço. Acabei ficando sozinha ao relento no meio fio. Meus novos amigos já tinham ido embora enquanto eu fiquei ali pensando em como faria para voltar para casa.

Eu estava perdida!

— Se quiser eu te acompanho até sua casa, é caminho. — disse Maurício, surgindo ao meu lado com uma bicicleta. Me senti aliviada ao ver que ele não tinha ido embora.

— Achei que você iria de ônibus junto com Emily e Peter.

— Não estou afim de segurar vela. — Maurício deu uma risadinha enquanto eu tentava entender em que situação ele seguraria uma vela por causa dos amigos.

— Vela? — perguntei, sentindo-me confusa com aquela expressão.

— É, eles dois se gostam, mas são bobos demais para admitir.

A frase de Maurício despertou em mim uma avalanche de emoções enquanto as peças se encaixavam dentro da minha cabeça. Me lembrei do desenho realista que Peter tinha feito para Emily, e do modo como os dois agem quando estão perto um do outro. São detalhes pequenos que a gente costuma deixar passar despercebido até começar a pensar melhor sobre o assunto.

A empolgação tomou conta de mim ao perceber o quanto isso me ajudaria, pois se Peter e Emily forem mesmo o casal que eu estou procurando, vai ficar ainda mais fácil de cumprir essa missão.

— Eu não fazia ideia...

Sentei na garupa da bicicleta de Maurício, e fiquei encarando a coluna dele enquanto pedalava na bicicleta. Eu nunca tinha andado em uma bicicleta antes, nem na garupa de uma, então a sensação me pegou de surpresa, porque era bastante agradável. Ele pedalava rápido o suficiente para que um vento gostoso corresse por nós.

Indiquei a ele o bairro onde eu morava e meu endereço. Por sorte, Maurício conhecia a cidade toda com "a palma de sua mão". Essas expressões ainda me confundem um pouco.

A movimentação de veículos era tranquila naquela hora do dia. O vento soprava levemente contra meu rosto enquanto eu observava o trajeto que fazíamos.

— Você não é daqui, não é? Quero dizer, você nem conhece algumas gírias que usamos e pareceu não conhecer alguns salgados da cantina.

Permaneci imóvel e em silêncio por alguns segundos a mais, pensando no que falaria em seguida. Mesmo que eu dissesse que não sou daqui, ainda não explicaria a minha falta de conhecimento em coisas tão comuns no dia a dia de um brasileiro.

— Eu e minha irmã vivemos reclusas por muito tempo, por isso não temos muito jeito em socializar com outras pessoas. — Minha respiração desacelerou quando a desculpa apareceu em minha cabeça. Eu torcia para que ele se conformasse com ela e não fizesse mais perguntas.

— Aposto que você se sente como se fosse de outro planeta.

Arregalei os olhos e me engasguei com a minha saliva com a sua observação tão direta.

Poderia ele saber que não sou terráquea?

— Co-como assim?

— Essa coisa toda de ser reclusa acaba fazendo você se sentir deslocada. — observou ele, me fazendo refletir que era exatamente assim que eu me sentia aqui na Terra — Estou certo ou estou falando alguma besteira?

— Não, você definiu direitinho como me sinto.

— Gosto de fotografia então acho que tenho essa coisa de querer entender as pessoas e o que elas sentem para poder me inspirar nas fotos que eu tiro. É bobo, eu sei. Minha mãe ama as fotos que eu tiro, mas diz que isso não vai me levar a lugar nenhum. — Percebi um leve tom envergonhado quando Maurício me revelou esse fato. Eu o conheço há pouco tempo, mas tenho certeza de que bobo nunca seria uma palavra correta para defini-lo.

— Não, não é bobo. Muito pelo contrário. — Eu disse, avistando a minha casa provisória há alguns metros — Eu moro nessa casa branca.

Maurício freou a bicicleta em frente à minha casa para que eu descesse. Segurei a alça de minha mochila e parei na frente de meu mais novo amigo.

— Obrigada pela carona.

— Não precisa agradecer. Me passa seu número para combinarmos os detalhes do trabalho que temos para fazer.

Por sorte eu já tinha gravado meu número na cabeça então essa parte foi fácil. Na mesma hora Maurício gravou meu contato em sua agenda e me mandou um oi para que eu fizesse o mesmo. Nós nos despedimos com dois beijos na bochecha e o observei partir com a mochila nas costas e o cabelo voando contra o vento.

Entrei em casa suspirando enquanto tentava entender como eu me sentia, já que meu dia tinha sido cheio de um jeito que nunca tinha sido. Eu socializei com os terráqueos, fiz novas amizades e de quebra ainda consegui me aproximar do casal em potencial que pode ser a minha salvação do exílio.

Subi as escadas, tomei um banho, pedi uma quentinha para comer — Anlyn tinha deixado o telefone de um restaurante que fazia entregas — e comi até me dar por satisfeita.

Olhei para o comunicador que estava em minha mala, lembrando-me de Slahat e Hahue, meus melhores amigos. Meu coração se apertou de saudade quando peguei o comunicador e acionei o botão para contata-los.

A imagem tremida do holograma de um Hahue carrancudo apareceu em minha frente. Sua carranca logo se desfez ao me ver.

— Lyra, que saudades! — Hahue abriu um sorriso e eu me empolguei com a sua animação — Como você está? Já começaram a missão? — Meu amigo virou o rosto para trás e começou a gritar — SLAHAT, A LYRA TA AQUI!

Slahat se aproximou da tela carregando alguns tocos de madeira no ombro. Ele enxugou o suor do rosto e sorriu também.

— Estou com tanta saudade! — Eu exclamei, nem me importando com o fato de que o holograma transparente que eu via em minha frente não eram meus amigos em carne e osso — Eu e Anlyn começamos nossas missões hoje. Fiz amizade com um casal que tem potencial para ser minha salvação do exílio. Minha intuição me diz que dessa vez vai dar certo.

— É assim que se fala! Por aqui as coisas continuam monótonas. A única emoção do nosso dia é ter que espantar algumas Criaturas da Noite que aparecem no nosso quintal de vez em quando. — Hahue disse enquanto limpava a sua espingarda. Slahat largou os tocos de árvore no chão.

— E discutir com o Hahue. Você não tem ideia do quão dolorido é levar um tabefe desse tampinha. — Slahat completou, me fazendo rir e recebendo um olhar atravessado de um Hahue enfezado.

— Deve ser tranquilo viver aí, apesar dos pesares. — ponderei, pensando no tempo em que estive do outro lado da Barreira Mágica — Digo, da escuridão eterna e das Criaturas.

— É tão tranquilo que chega a ser chato. Agora entendo porque o Conselho manda as pessoas que cumprem infrações para cá, para morrerem de tédio.

Gargalhei com a frase de Hahue e Slahat me acompanhou. Queria que eles estivessem aqui, ou que de alguma forma pudéssemos estar todos juntos de novo algum dia. Eu nem sabia se iria conseguir cumprir a minha missão, tampouco se voltaria a vê-los outra vez.

Nós conversamos por mais algum tempo antes que Anlyn chegasse exausta do trabalho. Escondi o comunicador no meu armário e esperei que ela entrasse em meu quarto.

Ela se jogou em minha cama de barriga para cima, a bolsa caída aos seus pés.

— Eu estou exausta! — Anlyn encarava o teto com uma expressão de cansaço no rosto.

— O trabalho foi tão cansativo assim?

— Essa missão é o meu pesadelo! — Ela colocou as mãos no rosto, chorosa — O casal que eu tenho que impedir a separação é... Não tenho nem palavras para descrever! Eles só brigam! O tempo todo!

— Se a situação não fosse tão feia o Amor não teria te colocado nessa missão. — expliquei, ao que minha irmã provisória só tirou as mãos do rosto e me olhou com sarcasmo.

— Eu sei disso! Vai ser muito difícil cumprir essa missão, já estou vendo que vou ser exilada para sempre.

— Calma, hoje foi só o primeiro dia. — Afaguei seu ombro, tentando acalma-la — As coisas ainda podem melhorar.

— Estou te achando otimista demais hoje. Seu dia deve ter sido melhor que o meu.

Contei rapidamente para Anlyn como tinha sido meu dia, incluindo a minha descoberta sobre Peter e Emily serem um casal em potencial, não deixando de fora os sinais que eu só percebi entre os dois depois que cheguei em casa e recapitulei como tinha sido meu dia com os terráqueos.

— Isso significa que você já pode começar a sua missão. — Minha irmã provisória disse, abrindo um sorriso sincero. — Pelo menos uma de nós começou bem. Isso até aliviou meu estresse.

Anlyn se levantou arrumando o amassado de suas roupas sociais e pegando sua bolsa do chão.

— Vou tomar um banho e depois você me conta mais sobre esse Maurício. — Ela disse, caminhando até a porta do meu quarto. Empalideci somente com a menção do nome do meu mais novo amigo.

— O que tem ele?

— Pelo jeito que você falou, o cara parece ter despertado seu interesse.

Engoli em seco, sentindo todas as minhas terminações nervosas entrarem em colapso.

— Ficou maluca? Eu quase nem falei dele!

— Relaxa, boba. Enquanto estivermos aqui, somos humanas e estaremos sujeitas a esse tipo de coisa. Não há mal algum em acrescentar um pouco de diversão ao trabalho. Pense nisso. — E com uma piscadela marota minha pseudo irmã saiu, deixando-me com a cabeça cheia de dúvidas e com o coração batendo rápido dentro do peito.

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