Capítulo 3 - As Criaturas da Noite

— Eu não tive ajuda.

Os membros do Conselho se entreolharam quando eu disse aquilo. Ansel e todos os outros queriam que eu confessasse que eu tive ajuda para sair da Área Sombria. Apesar de eu ter os meus palpites sobre o porquê daquela informação ser útil para eles, preferi ficar quieta. Eu não podia prejudicar Hahue e Slahath.

— Lembre-se de que você está sob juramento nesta audiência, Lyhua.

— A senhora não me deixa esquecer. — falei baixo, mas não o suficiente, pois Anlyn ao meu lado se contorceu para esconder a risada. Eu posso estar louca, mas juro que vi o Amor abafar uma risada com a minha resposta também.

— O que disse?

Ansel colocou a mão na orelha e inclinou a cabeça em minha direção. Ou ela se fez de surda ou realmente não entendeu o que eu tinha dito.

— Eu já disse que não tive ajuda para sair de lá, está tudo escrito em meus depoimentos e relatórios. Você teve acesso a todos eles, não teve?

— Bom, sim, mas é praticamente impossível que uma Alma saia viva da Área Sombria, principalmente uma Alma despreparada como você.

A questão é que sim, em todas as cinco vezes em que estive na Área Sombria eu tive ajuda. Porém, se eu delatasse meus amigos, principalmente o irmão de Ansel, tenho certeza de que eles fariam alguma coisa contra os dois. Depois de tudo o que eu vi e passei na Área Sombria, não dava para acreditar que o Conselho seria benevolente ou piedoso. Tenho certeza de que eles queriam que eu tivesse morrido lá, só para não terem que lidar comigo e com meus problemas.

Na primeira vez em que estive na Área Sombria, logo após me despedir de Slahath, eu deixei a clareira e a casinha de madeira para trás e adentrei a floresta em direção as colinas. Segui as placas com as indicações, sentindo uma gratidão imensa por quem quer que tenha feito aquelas plaquinhas. O silêncio ao meu redor não me oferecia a tranquilidade que eu esperava, e meu corpo todo permaneceu em alerta pelo percurso que eu fazia.

Eu sabia que estava bem longe de casa, mas eu não podia desistir.

Eu precisava voltar.

A tocha e a lua cheia que brilhava no céu me ajudavam a enxergar o caminho. Minhas pernas começaram a protestar pela caminhada longa e exaustiva, e eu parei para descansar embaixo de uma árvore.

Aquele foi o meu maior erro.

Não percebi qual foi o momento em que caí no sono, só sei que ouvi barulho de folhas secas se mexendo e acordei num rompante assustado. Segurei a tocha com a mão e me levantei num pulo, olhando para todas as direções possíveis com o coração retumbando no peito.

"Cuidado com as Criaturas da Noite", foi o que Slahath havia me dito. "Se as vir, estará perdida".

Meu coração deu um solavanco quando esse aviso pipocou em minha cabeça. Girei nos calcanhares e apertei o passo para poder sair logo dali, olhando de segundo em segundo para trás para verificar se tinha alguém me seguindo. Continuei me baseando pelas placas para poder seguir, e parei quando vi uma movimentação na mata que pairava ao meu lado.

Sombras se ergueram de trás dos arbustos e das árvores. Pareciam homens grandes e altos, muito altos. Mas não eram homens, eram Sombras luminosas que deslizaram para baixo até sumirem de meu campo precário de visão. Eu corri, mesmo sem saber direito o que estava acontecendo.

Um coiote pulou em minha direção, e eu desviei por muito pouco minha jugular de sua arcada dentária. Tentei afastá-lo com a minha tocha, mas não surtiu o efeito esperado, principalmente quando as sombras voltaram a surgir e mais coiotes apareceram ao meu redor. Mesmo sem forças, obriguei minhas pernas a continuarem correndo. Uma olhada rápida para trás me fez perceber que não eram coiotes os bichos que me seguiam, mas sim diversas Almas Atormentadas.

Almas Atormentadas são uma das Criaturas da Noite. Lembro-me de ter lido um pouco sobre elas em um livro velho e empoeirado que jazia esquecido na biblioteca do Conselho. Essas Almas passam tanto tempo na Área Sombria ou no Limbo das Almas Rejeitadas que se tornam Corrompidas pela Noite. A Noite as transforma em animais de olhos vermelhos e muito parecidos com um coiote, só que são mais letais e sanguinários do que um.

Não são todas as Almas que se tornam Almas Atormentadas, somente aquelas que sofrem com a escuridão e deixam as trevas entrarem em seu coração.

Tropecei em um pedregulho e caí no chão. Joguei a tocha na cara de uma das Almas, fazendo-a ganir. O problema é que isso a deixou ainda mais irritada. Ela rosnou com tudo e se jogou em cima de mim. Eu via que meu fim estava próximo. Atrás dessa Alma de olhos vermelhos e famintos, vinham outras Almas Atormentadas e as Sombras, que eu percebi que me deixavam fraca mentalmente.

Eram Monstros de Sanidade, e no momento em que se aproximassem o suficiente para encostarem em mim, eu ficaria louca.

Eu vi a Alma se jogar em cima de mim e tentei me proteger engatinhando para trás com desespero. O salto dela foi tão preciso e certeiro que eu sabia que seus dentes iriam direto para o meu ombro ou pescoço. Eu torcia para que fosse no ombro.

Porém, nada aconteceu.

Uma bala atravessou a cabeça do coiote, que caiu aos meus pés. Confusa, encontrei Hahue com o rifle ainda apontado na direção da Alma Atormentada. Slahath estava ao seu lado. Eles me ajudaram a levantar, e por mais que eu quisesse muito perguntar porque eles estavam ali, ainda tínhamos muitas coisas para nos preocupar, principalmente com as Criaturas da Noite vindo para cima de mim — de nós agora.

— Acredito que na Cidade das Almas vocês ainda não tenham treino de tiro, estou certo? — indagou Hahue, atirando em uma das Sombras que sumiu com um pequeno clarão no ar.

As Sombras não tinham morrido, mas as balas iriam atrasa-las por pelo menos um tempo.

— Não, mas eu sei usar arco e flecha.

— Isso é tão clichê! — Revirei os olhos com a referência de Hahue, lembrando-me que a representação de cupidos no mundo humano justamente é com um anjo portando arco e flecha.

— Por sorte, eu trouxe um. — Slahath me entregou uma aljava cheia de flechas e um arco tão bonito que eu fiquei admirada. Ele atirou em duas Almas Atormentadas, e eu percebi que a dupla era realmente muito boa atirando.

— Pronta para abater Criaturas da Noite? — Hahue indagou, com um olhar ferino de batalha.

— Eu nasci pronta. Quero dizer, mais ou menos.

Não sei dizer por quanto tempo ficamos ali lutando. Só sei que abatemos muitas Almas Atormentadas e deixamos muitas Sombras à deriva com as flechadas e balas que usamos contra elas. Ganhei alguns arranhões dos coiotes que ainda conseguiram me alcançar, e Hahue e Slahath também tinham conseguido alguns machucados similares aos meus.

Só sei que quando tudo acabou, que eles me conduziram em segurança para a Barreira Mágica. Ninguém que era banido ou fugia para a Área Sombria conseguia voltar para a Cidade das Almas. A Barreira Mágica não os deixava passar, e eu via em seus olhos o quanto eles queriam voltar para o outro lado.

Hahue encarava a Barreira com um olhar que não consegui decifrar. Eles conseguiam ver como a vida podia ser mais tranquila ali do outro lado, e com certeza sentiam falta do sol.

Me virei para os dois com um semblante pesaroso.

— Eu sinto muito... — Eu disse, encarando os dois com tristeza. — Queria tanto poder ajuda-los de alguma forma...

— Não é culpa sua, apesar de termos feito parecer que é. — Slahath me tranquilizou com um sorriso.

— Só agora eu percebi que não disse meu nome. Me chamo Lyhua Lyra Iseult.

— Prazer em te conhecer, Lyra. — Hahue disse, estendendo a pata peluda em minha direção. Eu a apertei com firmeza.

— Ninguém nunca me chamou de Lyra antes.

— Se importa se te chamarmos assim? — perguntou Slahath me encarando de forma mais amigável do que quando nos conhecemos.

Abri um sorriso cansado.

— Não, eu meio que gostei de não ser chamada por Lyhua.

— Acho melhor você ir, devem estar atrás de você.

— Obrigada por terem salvado a minha vida.

Parei bem na Barreira mágica e encarei meus dois novos amigos com uma expressão de cansaço e felicidade.

— Tente não morrer de novo.

— É, se morrer vou ter que deixar um manto reserva no meu varal. — provocou Hahue, me fazendo gargalhar com vontade.

Alguma coisa me dizia que aquela não seria a última vez que os veria. Me virei e na direção da Cidade das Almas eu segui, com uma sensação estranha e latente corroendo todo o meu ser. Eu estava esgotada física e mentalmente falando, mas pela primeira vez em todos os meus anos de vida, eu senti que tinha amigos, e isso me deu forças para enfrentar tudo o que estava por vir quando eu chegasse na sede do Conselho.

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